A conjuntura mundial dos semicondutores alterou-se significativamente no último período, sobretudo por uma injunção de questões, que podem assim serem elencadas expeditamente: demanda, tragédia do período pandêmico, a guerra da Ucrânia, a falta de chips no mercado e pela necessidade da desconcentração da fabricação do Pacífico do Leste. Tudo isto força a realização de rearranjos nas cadeias produtivas globais e no setor no particular, onde os investimentos passaram a ser mais consistentes e resilientes, de modo a forçarem criar uma manufatura mundial desconcentrada, fundamentalmente com mais segurança jurídico-legal e mesmo do ponto de vista político.
O setor tem um amplo mercado de aplicações, que se divide aproximadamente em uma terça parte que são as áreas de redes e comunicações; outra terça parte na área de processamento de dados; e a terça parte final envolve as áreas industrial, bens de consumos eletrônicos, automotivo e governos. Sua ordem de grandeza global foi em torno de US$ 664 bi, em 2022, afetando em torno de US$ 40 tri mundialmente, com uma previsão de ir para uma casa de quase US$ 2 tri, até o fim da década.
No Brasil a produção é voltada para a indústria de TIC’s, com componentes para computadores e celulares, mas também para o setor automotivo e eletroeletrônico. Que teve um crescimento muito importante ano passado, indo para a casa de US$ 1 bi, apesar do déficit da balança comercial de produtos eletroeletrônicos ter chegado à ordem de US$ 22 bi em 2021 e dobrado em 2022.
No âmbito do que se nomina de Chips War (Chris Muller, 2023) as previsões de investimentos são robustas, alavancando enormes subsídios públicos. Por exemplo, USA em torno de US$ 280 bi e China US$ 1,4 tri até o fim da década, onde as razões desta disputa são a necessidade de desconcentração da indústria do Pacífico do Leste, a questão comercial, a soberania científico-técnica e os temas geopolíticos.
Seus projetos e sua produção, se realizam em três (3) etapas: (i) o desenvolvimento e design, (ii) a fabricação, que é a injeção de partículas na lâmina de material semicondutor, e, (iii) o encapsulamento. Onde as (i) e a (iii), se realizam em vários países do mundo, inclusive no Brasil; mas a (ii), praticamente se concentra no Pacífico do Leste, mais precisamente em Taiwan e suas proximidades.
Necessitamos, portanto, aproveitarmos este cenário e definirmos qual a estratégia do país neste promissor campo dos semicondutores, partindo de que temos nosso ecossistema setorial brasileiro, que se compões hoje de 20 empresas que encapsulam, portanto fazem backend; oito que realizam design house, e duas empresas que teriam capacidade para a realização da produção completa, frontend. A Unitec em MG, que sequer foi comissionada, e a Ceitec, no RS, que está sendo levantada do processo de liquidação, que estava desde dezembro de 2020, e vai ser reativada. Ela tem os requisitos básicos para a manufatura: (i) a fábrica com equipamentos com uma sala limpa, (ii) água ultrapura e (iii) um sistema de filtros de ampla descontaminação e isenção de qualquer impureza; ambientes necessários exigidos de controles para auxiliar a manufatura destes dispositivos. Além é claro, de uma fortíssima (iv) capacitação de RHs, inteligência e massa crítica na área, que vêm desde o início da criação dos pós-graduações na área, aliás demandados cada vez mais por empresas de fora do país, mas que necessitam serem formados mais ainda.
Entretanto, por ter recebido os equipamentos há duas décadas, e ter tido sua curva de aprendizado ou maturação interrompida antes que ela se completasse efetivamente, como exigem tais empreendimentos, sobretudo pela tentativa de liquidação, a planta da fábrica requer atualização. Necessitando definir sua rota tecnológica, seja com processo CMOS, que utiliza o Silício (Si), ou seja com os avanços dos novos materiais, tipo Carbeto de Silício (SiC), Nitreto de Gálio (GaN) ou Grafeno, para se submeter a um upgrade capaz de conferir a ela a capacidade de colocá-la num mercado mundial para chips maduros de tamanho bem significativo e promissor.
Para se ter uma ideia, as grandes foundries mundiais, que manufaturam chips no estado da arte, ainda mantêm em torno de 10% a 15% de sua fabricação e presença no mercado, em segmentos tecnológicos na ordem de 100 nanometros ou mais (Gartner, 2023), exatamente por seu vigor e demanda. E mesmo estudo revela que mercado ainda hoje, tem demandas na casa de 14,1% para dispositivos com nodo tecnológico maior ou igual a 400 nanometros; 10,3% para os confeccionados entre 400 e 200 nanometros e 21,8% para os fabricados entre 200 e 80 nanometros.
Com estas evidências e não “achismo”, tomando-se por exemplo, uma atualização para um nodo tecnológico na ordem de 100 nanometros, uma fábrica nova para ser construída hoje exigiria um investimento de US$ 2 bi (McKinsey & Company, 2023). Mas para fazer a atualização na planta da Ceitec se realizaria com 10% ou menos deste valor, dependendo da rota tecnológica escolhida. Ou seja US$ 200 mi, que seria R$ 1 bi, ou menos.
Neste cenário são também fundamentais e importantíssimos a necessidade de atualização dos principais instrumentos de políticas para fomentar a cadeia produtiva destes dispositivos, como o PADIS, PPB, um novo PNM, dentre outros, de modo a combinar benefícios tanto para o backend, como também o estímulo ao frontend, tornando-se instrumentos universais para beneficiar o conjunto da cadeia, não só parte dela.
E no tema retomada da Ceitec, que é uma fábrica de solução completa e deve operar a partir do 2º semestre de 2024, pois ainda depende de orçamento e da contratação de pessoal para colocá-la em funcionamento, ela poderá trabalhar combinando dois objetivos: um com (I) horizonte imediato, e outro, mais de (II) médio prazo, que devem estar conectados enquanto processo de retomada da operação da fábrica.
(I) Produtos com Horizonte Imediato
Com enorme potencial de mercado para compras públicas, uma vez que empresa já tem capacidade e expertise de fazer, sobretudo porque já realizou a entrega de 163 milhões de unidades de chips, módulos e tags, mais da metade deles entre os anos de 2018 e 2021, confirmando ser uma concept of proof, ela poderia focar, por exemplo, nestes produtos, que são demandas recorrentes dos setores públicos e privados no país:
Identidade veicular: Etiquetas no para-brisa ou placas de veículos com chip Ceitec com dados criptografados. Com padrão de comunicação seguro, que permite além do controle de dados, efetuar pagamento automático em pedágios, estacionamentos, postos de gasolina, entre outros estabelecimentos. Deve ser fornecido pelo governo (segurança contra roubo e fraudes) e ter adesão das empresas privadas (o chip já detinha 45% desse mercado antes da tentativa de liquidação, que era ainda incipiente, frente ao mercado geral).
Identificação pessoal segura: Emissão de documentos com chips que guardem registros do usuário e dados biométricos com alta segurança. É o caso do chip para passaportes desenvolvido pela Ceitec. Tem também o dispositivo desenvolvido para os pneus da Pirelli, que pode alcançar o conjunto do setor.
Identificação patrimonial e logística: As etiquetas com chip permitem fazer a leitura simultânea de vários bens sem que a etiqueta esteja visível. Isso possibilita reduzir o tempo gasto e acelera o processo de revisão física do inventário. Evita fraudes e impede a falsificação. Pode ser usado também em parceria com Inmetro. E sensores para a área da saúde, que já era uma expertise da empresa.
Identificação animal: Além de melhorar o manejo, oferece mais agilidade e segurança na coleta de informação e qualifica o controle sanitário, agregando valor à carne para exportação. No Uruguai é disponibilizado gratuitamente pelo governo.
(II) Produtos com um Potencial de Médio Prazo
Estes estarão submetidos mais a implantação da nova rota tecnológica definida pela empresa, suas parcerias e seu novo modelo jurídico que devem estar sendo redesenhados com outras relações do ramo da eletroeletrônica e possíveis stakeholders, bem como um consistente business plan, que deverá ter também como objetivo o mercado latino-americano. Cujo alvo estratégico, neste potencial de médio prazo, se coloca no sentido de auxiliar o país em duas frentes fundamentais estratégicas: (i) o desenvolvimento do setor automotivo via carros elétricos e (ii) a transição energética.
Questões fundamentais
E frente a tudo isto, tem-se também, duas questões fundamentais.
De um lado, na medida em que mercado para chips maduro existe, fazer um estudo rigoroso dele, que não tem, para se detectar que produtos intensivos neste dispositivo o Brasil importa, localizar suas zonas (nodos) de tecnologia, para vermos quais poderíamos fabricar com um upgrade na fábrica. Pois só a partir daí poderíamos ter previsões de breack even factível, e não meras suposições, para que investimentos sejam feitos com evidências e critérios.
De outro, para alavancagem da retomada da empresa, será necessário a combinação de uma forte estratégia de encomendas e compras governamentais, em todos os níveis da esfera pública, nacional, nos estados e municípios; com a gravação de forma continuada e sistêmica de recursos nos principais instrumentos de planejamento e efetivação das reais e necessárias políticas públicas: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO), o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) e o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Pois sabemos, que para uma empresa pública de manufatura operar de fato, ela necessita: de projeto estratégico, relações com atores, mercado, financiamento, planejamento, gestão e entregas.
O Brasil não pode, portanto, perder esta oportunidade, sobretudo no que concerne às possibilidades da manufatura dos semicondutores, fundamentalmente a partir deste novo cenário mundial que se descortinou nos últimos anos. O tema tem que ser colocado como Missão de País e deve estar no eixo das nossas Políticas de Neoindustrialização e Desenvolvimento Sustentável. De modo que possamos passar a integrar definitivamente, este seleto grupo mundial de países/regiões, que dominam e detêm expertise na fabricação dos dispositivos de chips.
* Também conhecido como Villa, é professor de Gestão do Conhecimento na PUCRS. Foi deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul por quatro legislaturas.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira