O Povo Guarani Mbyá, do Rio Grande do Sul, cansado de viver nas margens de suas terras originárias, dentro de áreas degradadas ou em acampamentos de beira de estradas, realizou a retomada de um de seus territórios ancestrais nesta quinta-feira (15). O território cujo povo designa de Tekoá Nhe'engatu fica localizado no município de Viamão, região metropolitana da Capital.
A área com mais de 148 hectares abriga fauna e flora remanescentes do bioma Pampa, com espécies ameaçadas de extinção, cursos hídricos, áreas de preservação ambiental e pesquisas agropecuárias que correm risco de perder mais da metade de seu território para a especulação imobiliária.
Com essa retomada, o Povo Guarani Mbyá também presta homenagem a seu avô Turíbio Gomes, que morreu com 101 anos de idade, assim como todos seus anciões e anciãs que lutaram e padeceram pela busca de uma vida mais digna para o seu povo. Muitos deles não conseguiram, ao menos passar alguns de seus dias de existência, dentro da terra demarcada.
Para Genira Pará, neta de Turíbio Gomes, que era chamado pelo seu povo de Karaí Nhengatu, essa retomada representa a força da resistência de seus ancestrais. “A gente nomeou essa retomada como Nhengatu, em homenagem a ele. Para muitos estudiosos, Nhengatu significa o nome que era dado aqui no Brasil antes da invasão dos portugueses, existia uma língua só que era chamada nhengatu. Então essa retomada é em homenagem a ele, mostrando essa resistência no qual ele vem ensinando os netos, filhos”, comenta Genira.
Ainda para ela, a importância da retomada é justamente o poder de ter um lugar para viver, já que o grupo passou a maior parte do tempo vivendo em casas improvisadas - barracos de lonas - sem terra para plantar suas roças, sem água potável para beber, sem mato e sequer tinham um lugar para construir sua Opy, casa de Reza.
:: Xeramoi Turíbio Gomes! ::
“É para realizar os sonhos desses velhos e nossos também de criar os filhos, os netos, dando essa oportunidade de viver nesse espaço sagrado, também pela iluminação de Nhanderu, que essa retomada foi bem sucedida, que ainda não aconteceu nada, ocupamos esse espaço com grande luz, ninguém ainda está nos incomodando até agora. Esperamos que isso aconteça de forma pacífica, que a gente espera sempre, e aí criar e preservar o futuro das crianças, principalmente o meio ambiente”, almeja Genira.
“Hoje estamos retomando uma área da antiga nossa conforme pesquisas da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), aqui em Viamão. Hoje a gente está em 30 pessoas fazendo essa ocupação sabendo que todo esse território aqui na região de Viamão era Guarani. Hoje estamos voltando às nossas origens nessa retomada aqui e também justificando a importância da ocupação dessa área que é uma das poucas que ainda permanece um pouco da mata nativa, fonte de água, de rio”, explica o jovem líder Arnildo Werá.
Para o grupo, não é justo verem suas crianças nascerem e crescerem em situação de profunda vulnerabilidade, sem perspectivas de uma vida tranquila, justa e saudável. “O motivo pra gente vir pra cá são os grandes empreendimentos que estão invadindo e destruindo essa mata que resta, destruindo essa nascente do rio, que abastece toda a região, e hoje tá sendo repassado pro município, e o município está querendo passar pra empresa privada pra fazer o condomínio, e aí seria uma destruição total”, comenta Werá.
Nesse momento, o Povo Guarani Mbyá requisita que a Funai assuma suas obrigações e agilize os procedimentos de demarcações de terras para o seu povo. Também que sejam retomados os procedimentos paralisados e que se inicie a demarcação dessa Tekoá Nhe'engatu, agora ocupada pelos Guarani Mbyá.
“Hoje a gente está aqui fazendo essa ocupação em nome do povo Guarani, de muita luta, muita sofrência, muitas mortes no passado das lideranças que já foram, já morreram, que ainda permanecem em espírito. E a gente está aqui reivindicando esse espaço para políticos, para que nos ajudem a permanecer e regularizar essa área, pra gente ficar aqui, criar nossas famílias, crianças, olhando pro futuro das crianças, que permaneça essa língua, essa cultura, que ainda pouco resiste e existe”, complementa.
Servidores temem pelo meio ambiente e pelo trabalho de pesquisa
Já o pesquisador do Centro de Pesquisas de Viamão, João Rodolfo Guimarães Nunes afirma que foi surpreendido com o grupo de indígenas que foi para retomar as terras. Ele ressaltou a importância do desenvolvimento dos trabalhos de pesquisa que são feitos dentro do território.
“Nós temos várias pesquisas. Não só o pessoal daqui atua no local, mas o pessoal da sede de Porto Alegre atua aqui na unidade. Também vários alunos da Ufrgs desenvolvem pesquisas aqui fazendo seus mestrados, doutorados e projetos de pesquisa. Temos trabalhos também sobre o bioma Pampa porque aqui é uma área de preservação muito importante desse bioma, com espécies raras, uma parte do bioma muito preservada, muito presente”, ressalta o pesquisador.
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Segundo Nunes, a área é rica em espécies do bioma Pampa. Além disso, existem bancos de preservação de germoplasma de várias espécies nativas da região. “Nós estamos bastante preocupados com a preservação da área. Além disso, a área é muito importante, porque tem um manancial de água muito rico, tem dois córregos que passam aqui dentro. Tem o Mendan e Águas Belas que vão contribuir com a bacia do Gravataí. Esse rio, como todo mundo sabe, tem vários problemas e abastece Porto Alegre também com água. E aqui é um lugar que faz a filtragem da água, por ter banhados e tudo mais, que é muito importante”, afirma o pesquisador.
Para ele, após o governo do estado extinguir a Fepagro, que era voltada para pesquisa agropecuária, o desenvolvimento das pesquisas só tem decaído. “Não se contrata mais ninguém, nosso quadro é um quadro de extinção. Então, a gente está bastante preocupado com a pesquisa agropecuária em um estado que se diz agrícola, com um setor primário forte, que, a meu ver, tem perdido para outros estados, e uma das causas talvez seja a falta de investimentos no setor primário, na parte de pesquisa. Então, a gente tem também a sede aqui, que tem um valor histórico grande, e a gente está muito preocupado mesmo com a área de pesquisa aqui de Viamão”, ressalta.
O número de beneficiários diretos atendidos pelo Centro de Pesquisa é de aproximadamente 75 pessoas. Dentre elas pode-se destacar a comunidade escolar de nível técnico (estudantes dos cursos de técnico agrícola) e de nível superior (estudantes de graduação, de mestrado e doutorado das faculdades de Agronomia, Medicina, Veterinária, Zootecnia, Biologia e Farmácia), entre outros (comunidade do entorno e agricultores que buscam informações técnicas para as atividades na propriedade rural).
Conforme as lideranças, a retomada do território não pretende inviabilizar as pesquisas que são feitas na área, mas permitir que a preservação seja assegurada pelos órgãos governamentais.
A Secretária da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação foi procurada pelo Brasil de Fato para manifestar-se sobre a retomada, mas não enviou resposta. O espaço segue aberto para manifestação.
Confira fotos da retomada:
Edição: Katia Marko