Dizem que escrevemos para nós mesmos. Não nós, como indivíduos. Mas um nós histórico, que faz parte de uma geração, de um tempo. Escrevemos para pessoas que se reconhecem em símbolos, signos e significados. Isso não quer dizer que escrevemos para quem concorda com o que dizemos, mas para quem entende sobre o que estamos dizendo. Sem isso, sem essa identidade, não haveria comunicação entre quem escreve e quem lê.
:: Fórum Social Mundial 2023 convoca sociedade ao resgate da democracia e da participação ::
Dito isso, escrevo aos jovens de espírito, pessoas que tem como referências a ciência das coisas e os processos históricos. Que compreendem como funciona a sociedade humana, que reconhecem os mecanismos perversos do capitalismo e que, apesar de tudo, sabem que a humanidade é, e sempre será, senhora do seu destino. Escrevo para quem crê que a história faz sentido, que enxergam os movimentos sociais e econômicos, que entendem a força transformadora da política e que sabem que sempre há um objetivo que move as pessoas. Essa crença é que dá sentido a vida. Saber que podemos mudar o estado das coisas. Que, quem criou o mundo como ele é, pode modificá-lo e construir outro mundo distinto. Que quem promove a desigualdade, pode criar uma sociedade onde caibam todos os seres em condições de dignidade. Jovens de espírito que acreditem que ali na frente, num futuro palpável, pode haver uma sociedade de iguais, livre e com todas as circunstâncias que compõe um bem viver, enfim, que acreditem na utopia.
Os motivos que nos levaram, em 2001, a desejar um outro mundo possível no FSM de Porto Alegre, nunca estiveram tão latentes. A humanidade caminha à passos largos para uma sociedade cada vez mais excludente, violenta e injusta. A supremacia do indivíduo sobre o coletivo, valores do neoliberalismo que começaram a ser difundidos em 1980, hegemonizam o pensamento global. Aliás, um pseudo-individualismo, porque é a supremacia de quem detém poder econômico para comprar direitos em relação ao restante da sociedade. Esta pseudosociedade do indivíduo nada mais é do que a sociedade do capital, onde os direitos das pessoas e dos coletivos estão todos em suspenso. Quem tem direitos é o capital. Direito sobre a vida e a morte de tudo e de todos.
Infelizmente, parte da chamada esquerda política foi capturada para este pensamento e não consegue mais enxergar um mundo diferente, um mundo onde o papel do estado é implementar mudanças estruturais, radicalmente democrático, que crie mecanismos de valorização do coletivo e que, para isso, tenha poder para planejar e organizar a vida econômica, social, ambiental e política, de toda sociedade. Um estado que combata os valores neoliberais que sustentam o pensamento capitalista. Parte da esquerda política não acredita mais na força transformadora dos movimentos sociais e cada vez mais tem apostado em alianças com o capital, caminho que leva a reformas pontuais, mas que fortalece os valores que mantém esse mundo profundamente desigual e insustentável.
Por isso, mesmo quando a esquerda assume espaços de poder em algum lugar do mundo, é difícil enxergar um fio condutor, mesmo que tênue, que indique que há um processo histórico, uma transição para mudanças capazes de subverter e superar o capitalismo. Vivemos uma era de distopia, onde o pensamento crítico está confuso e perdido, num ambiente caótico, de opressão econômica, de domínio tecnológico, de poder militar, onde as circunstâncias e as condições de vida de bilhões de pessoas são insustentáveis e intoleráveis. Onde não há liberdade de escolha e nem esperança no futuro, em síntese, onde não há utopia.
Chamo este estado de espírito de ideologia da desesperança. A crença de que a realidade presente é a única possível. Que as coisas são imutáveis. A ideologia da desesperança limita nossas ações. Nos coloca submissos aos fenômenos de agora. Alimenta a resignação com o sistema político, com a divisão de classes sociais, com o poder das big techs, com o eminente colapso climático, com o sistema de (des)governança global. A descrença na mudança, base da ideologia da desesperança, faz acreditarmos em medidas pontuais, meramente mitigadoras do sofrimento humano, que não tem a força capaz de transformar a realidade. A ideologia da desesperança faz acreditarmos - nos iludirmos - que o mundo como o vemos é o único mundo possível, como sempre foi e seguirá sendo assim.
Mas isso não é verdade.
Tudo o que conhecemos hoje, um dia foi uma utopia humana. O fim do absolutismo, a superação do estado feudal, a criação da república com poderes independentes e harmônicos entre si, o próprio capitalismo, tudo nasceu de uma utopia. O mundo como vemos hoje é resultado da utopia de seres humanos como nós. Ao nos negarmos o direito de imaginar o novo, estamos desistindo de sermos seres humanos autênticos. O que nos caracteriza como sujeitos é nossa capacidade de imaginação, de criação, de invenção e, principalmente, de transformação.
Utopia não se confunde com ilusão. Ela está alicerçada numa interpretação da história, na forma como compreendemos os fenômenos humanos, no reconhecimento das possibilidades e potencialidades da tecnologia e na crença de que todos os seres humanos se movem por um instinto de sobrevivência e por seus interesses, mas que também são, em essência, inteligentes, solidários e cooperativos.
A ideologia da esperança nos ensina que as mudanças começam no nosso imaginário, que sempre há algo a fazer, que a estruturais podem ser modificadas, que o exemplo é a força com maior poder de transformação, e que ninguém, está fora de seu tempo histórico, portanto, aquilo que tivermos capacidade de imaginar, teremos capacidade de fazer.
O FSM nasceu motivado por uma utopia: um outro mundo possível. Nestes 24 anos, algumas coisas imaginadas, hoje são realidade. Muitas outras não. De 15 a 19 de fevereiro de 2024, em Katmandu/Nepal – www.wsf2024nepal.org - movimentos sociais de vários continentes, movimentos altermundialistas e representantes da comunidade internacional estarão reunidos em mais uma edição do Fórum Social Mundial. É um momento para combater a ideologia da desesperança e reconstruir a utopia de um outro mundo possível.
Reconstruir porque já sabemos que não basta reunir nossas bandeiras e pautas de luta. A nova utopia precisa estar alicerçada numa nova leitura da realidade. Ser capaz de imaginar um outro mundo realizável a partir dos fenômenos humanos que experienciamos hoje. E ser capaz de materializar os valores de uma nova civilização humana a partir dos acúmulos e consensos civilizatórios que construímos ao longo dos últimos séculos. A nova utopia precisa dar conta de imaginar um projeto de sociedade capaz de alimentar 10 bilhões de pessoas até o fim deste século sem destruir o frágil equilíbrio ambiental, capaz de democratizar a produção, o controle e o acesso as tecnologias, de produzir toda energia necessária de forma sustentável, de reorganizar o fluxo de produto e de pessoas pelo mundo, de desmontar a indústria da guerra, de repensar a relação dos seres humanos com o trabalho e de reparar as consequências de séculos de extermínios de povos, de genocídios, de desigualdades, racismos e de patriarcado.
O fascismo simplifica a história, cria argumentos míticos, tentando desconectar as classes populares da reflexão sobre as causas da sua condição concreta de vida. O fascismo transformando quem luta por mudanças, em inimigo do povo. Para combater esse pensamento, é preciso apresentar propostas que dialoguem com um outro modo de vida, um modo capaz de superar a miséria material e a miséria de espiritual. Esse novo imaginário deve incorporar os avanços tecnológicos, as mudanças sociais e as cosmovisões que reconhecem os seres humanos como parte e fruto da mãe terra.
O desafio é imaginarmos como dever ser este outro mundo pelo qual valha a pena lutar, pelo qual valha a pena viver e, por pressuposto, valha a pena morrer. A desesperança na mudança, gera descrença e desunião. Infelizmente, este é o momento da luta global. O FSM tem sido um espaço que busca superar a desesperança. Espero que o FSM Nepal 2024 dê pistas para que possamos reconstruir nossa utopia e com ela, nossa capacidade de mobilização e articulação. Mas enquanto isso, me diga, como seria este outro mundo possível para você?
Bibliografia Consultada:
ARENT, Hannah – Sobre a Revolução. São Paulo, Cia das Letras, 2011;
GREEN, Duncan, Da pobreza ao poder: como cidadãos ativos e estados efetivos podem mudar o mundo. São Paulo, Ed. Cortez, 2009.
GUARESCHI, Pedrinho – Sociologia Crítica: alternativas de mudança. Porto Alegre, Ed. Mundo Jovem, 1997;
MARQUES, Luiz – O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo, Ed. Elefante, 2023;
TAVARES, Maria da Conceição, A era das distopias, Revista Quo Vades, Jan/2014, pg. 20 a 28;
* Advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós-graduação em direito à cidade e mobilidade humana. Diretor do Instituto de Direitos Humanos – IDhES, Diretor da Usideias Comunicação e Pesquisa, membro da Diretoria Colegiada da Associação Brasileira em Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19. Membro do Coletivo Brasileiro do FSM e do CI-FSM.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira