Frequento uma loteria legal, onde se joga qualquer jogo da Caixa. Mas ali também se faz jogo do bicho, um jogo teoricamente ilegal, sem lei, e nem qualquer regra. Via ali, com certa assiduidade, o motoqueiro que vinha recolher as apostas para os sorteios das 14 e das 18h. Alguns bicheiros expandiram para outros horários as extrações para ampliar os ganhos – tipo 11 e 21h.
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Pode-se apostar em várias possibilidades, como dezena, centena, milhar. Não há quem não tenha arriscado uma ou várias vezes, ou seja completamente viciado na jogatina. Papeizinhos simples e reconhecidos facilmente pela casa. Hoje até fazem pela internet. Não há golpe até onde se sabe. Quem ganha sempre leva. Há até um Tribunal do Bicho que julga os desonestos e os pune com a perda da exploração de pontos ou de áreas. Hoje, uma aposta de R$ 1,00 leva R$ 500,00. Os sorteios são baseados nos números da loteria federal ou feitos pelos próprios bicheiros. Dizem que as apostas muito elevadas são redistribuídas por vários chefões da contravenção para que, em caso de acerto, o vencedor seja devidamente premiado e os bicheiros não levem um prejuízo gigante no lombo.
Espalhado por todos os recantos do país e com donos de áreas, bairros ou cidades, o jogo do bicho sempre foi ilegal. Há eventuais e raras repressões. Hoje até os policiais jogam. Só foi legal em períodos curtos em um ou outro estado, como na Paraíba nos anos 30 do século passado. Os números apostados representam 25 animais. Foi criado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, em Vila Isabel. A expansão a partir daí foi um rastilho de pólvora. Era a esperança do favelado e do pobre de ganhar alguma coisa através de algum sonho que tenha tido ou simplesmente de uma fixação em determinado número. Qual é o significado do sonho e a interpretação de sonhos para o jogo do bicho? Pesquisadores apontam dois mil termos que formam uma verdadeira enciclopédia sobre todas as interpretações relacionadas ao jogo do bicho.
A exploração do jogo do bicho
O motoqueiro que vi na loteca trabalhava para um bicheiro do bairro Bom Jesus, em Porto Alegre. Segundo me informam, aquele bairro é controlado por um contraventor da cidade de Viamão. Não é um jogo ingênuo, apesar da aparente paz que reina no zoológico das apostas. O bicho, ao longo da sua história de 132 anos, se infiltrou no aparelho do Estado, e se impôs pela violência e corrupção e nada o detém, mesmo que os tempos sejam de tranquilidade. Com os anos correndo e de esperança para gente humilde, virou fonte de outras ações dos donos de zonas e bairros, como contrabando, tráfico de drogas e até o Carnaval – festa bonita, mas umbilicalmente ligada a estes caras pelo financiamento de escolas, tribos, cordões, desfiles, e assim por diante.
Para entender bem o enredo do jogo do bicho, o seu envolvimento com corrupção, mortes, violência, escândalos, o ideal é ler o livro “Os porões da contravenção” dos jornalistas cariocas Aloy Jupiara e Chico Otávio. Eles passaram anos conversando, pesquisando, estudando, entrevistando, até lançar o livro em 2022, hoje já na sétima edição. Pedi emprestado, pela relevância do tema, ao amigo jornalista Marco Estivalet, que o comprou no Rio. Aqui no Sul é difícil achar, mas pelas plataformas é fácil adquiri-lo.
Na obra, bem escrita, em linguagem simples e didática, a gente vai conhecendo as histórias do Capitão Guimarães – cara que saiu do Exército para ser bicheiro e outras maracutaias mais; Anísio da Beija-Flor de Nilópolis – o rei da matança de adversários; e Castor de Andrade – de cartola do time de futebol do Bangu a bicheiro gigantesco de imensa área do Rio. Os três não ficaram satisfeitos com o dinheiro arrecadado nas apostas do bicho. Ampliaram seus horizontes. Atuaram com brutalidade em ações de contrabando, jogos eletrônicos caça-níqueis e nas mortes de rivais. Para ganhar uma aparência legal dominaram escolas de samba do primeiro grupo no Rio, como Vila isabel, Beija-Flor e Mocidade Independente de Padre Miguel. Debochados, cínicos, davam entrevistas para jornais e tevês como se fossem santinhos. Circulavam em ambientes sociais de alta categoria e estavam, sempre, com a polícia (nem todos, é bom que se diga) no bolso e na carteira, que jorrava dinheiro sem parar para que eles fizessem vista branca para os seus desmandos.
Mas não era só isso. Na ditadura militar (1964-1985) atuaram também com agências de informação dos militares. Formavam uma aliança que profissionalizou o crime organizado, segundo os autores do livro. Foi nesta época que o mau ‘milico’ Guimarães (capitão como o outro que queria dar um golpe no país no ano passado) saiu do quartel para entrar na gandaia para enriquecer ilicitamente. O bicho também andou de mãos dadas com os militares na caça, tortura e morte de integrantes de grupos de esquerda. Até a famosa Casa da Morte de esquerdistas em Petrópolis (RJ) teve o apoio e a mão na massa de contraventores ou de gente financiada por eles. Impossível mais barbaridades e selvagerias. Eles agiram acima de qualquer coisa sensata e de qualquer lei. Alguns julgamentos e prisões da época foram fumaça engana bobo, sem incêndio nenhum. A mamata era tão grande que Castor de Andrade foi preso em determinada época na Ilha Grande. A sua cela tinha oito cômodos e um luxo de fazer inveja a ricaço.
Mas as coisas não param por aí. O ideal é ler o livro e se ‘assustar’ um pouco com as maldades e tragédias que ocorrem sob nossas vistas. Ah, só para concluir, no primeiro sorteio do jogo do bicho em 1892, deu avestruz, erroneamente conhecida como a ave que enterra a cabeça em um buraco para se esconder.
* Jornalista, ex-editor-chefe e ex-editor de Economia do Correio do Povo.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira