Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

‘Forças Armadas investiram em espionagem seis vezes mais do que a Abin’, alerta Jeferson Miola

Pesquisando a arapongagem, o articulista descobriu que até a Polícia Rodoviária Federal comprou o software espião

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Articulista foi entrevistado no podcast De Fato que tratou do tema: A espionagem que ameaça a democracia - Foto: Alexandre Garcia

Articulista de diversos sites da mídia independente, Jeferson Miola, a partir de 2018, começou a pesquisar sobre o papel dos militares brasileiros na política do país. Suas iniciativas, seus recursos, seu modo de atuar, seu comportamento no golpe de 2016, na ascensão de Temer e no governo de Jair Bolsonaro.

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Recorrendo ao Portal da Transparência, resolveu levantar os negócios da Cognyte – empresa que produz o software espião FirstMile - no Brasil, onde descobriu informações muito interessantes, entre as quais que o maior cliente da empresa de Israel não é a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, mas as Forças Armadas. Com qual finalidade? Não se sabe. E a Abin sequer ocupa o segundo lugar na lista de compradores, este preenchido estranhamente pela Polícia Rodoviária Federal, do hoje preso Silvinei Vasques.

Sobre essa apuração e outros temas, Brasil de Fato RS conversou com ele. Confira:

BdF RS – Em artigo publicado no Brasil de Fato RS, que trata desse software espião, o FirstMile, observas que se fala muito na Abin como adquirente do software mas o grande cliente dessa empresa israelense, a Cognyte, é o Exército. Que gastou algo como R$ 87 milhões nessas idas ao supermercado da arapongagem. O que mais se pode dizer sobre isso?

Jeferson Miola – Estamos, na verdade, diante da confirmação de relações já conhecidas desde o início do governo anterior. São assuntos que, inclusive, foram objeto de algumas denúncias e de pronunciamentos do próprio Bolsonaro, quando ele dizia que tinha um sistema particular de investigações e se vangloriava disso. Ele não confiava nas estruturas formais de estado brasileiro.

Estamos diante de uma realidade de espionagem, de instrumentalização dos órgãos e do aparelho do estado, para um projeto político ideológico para perseguir e combater os inimigos e adversários políticos, desafetos pessoais inclusive, da família (Bolsonaro). E também o uso desse sistema para proteger especialmente o próprio Bolsonaro e os seus filhos em relação aos ilícitos cometidos. Eles interferiam nos processos e inquéritos policiais, mediante a alteração e destruição de provas por esse sistema.

Isto é, digamos assim, o ramo civil de uma ilegalidade. Mas tem uma outra dimensão que é o sistema de espionagem civil instalado dentro da própria Abin quando subordinada ao GSI (Gabinete de Segurança Institucional) primeiro do general (Sérgio) Etchegoyen e depois do general Augusto Heleno. E finalmente tem uma outra camada que não está sendo revelada, que apurei através do Portal da Transparência da União, que são as Forças Armadas e notadamente o Exército, que também detém essa tecnologia e foi seu principal adquirente de 2014 a 2023.

Nesses anos, de R$ 127 milhões, quase R$ 90 milhões foram usados pelas Forças Armadas, especialmente o Exército. E chamam a atenção outros aspectos. Os recursos para a aquisição desta tecnologia foram usados através das comissões de representação do Exército brasileiro nos Estados Unidos, em Washington, e de parte da comissão de representação da Aeronáutica na Otan, na Europa. Em segundo lugar, o representante da empresa Cognyte, que é essa fornecedora do FirstMile, era o filho do general (Carlos Alberto, ex-ministro de Bolsonaro) Santos Cruz. Chama-se Caio Santos Cruz, representante da empresa até maio passado, quando ele caiu.

E há outra vinculação com os militares. Pela primeira vez na história brasileira, um general foi nomeado embaixador. Foi nomeado embaixador em Israel. É o general Gérson Menandro (Garcia de Freitas, removido do posto em janeiro de 2023). Há uma espécie de um ecossistema militar em torno do assunto. Os atores implicados são militares de alto escalão.

É difícil imaginarmos as Forças Armadas investindo em espionagem quando sua função não é bisbilhotar os seus compatriotas

BdF RS - Por que foste fazer essa pesquisa? Já tinhas informações, estavas estudando isso?

Jeferson Miola - A partir da eleição de 2018, o tema dos militares, a presença deles na cena política, ficou muito evidenciada e me chamou a atenção. A partir daquela guerra cibernética contra a campanha do Haddad e da Manuela, em contato com desenvolvedores de auxiliares do WhatsApp fui descobrir que aquilo era uma tecnologia militar. A partir dali, comecei a me dedicar ao exame e tenho conversado com pesquisadores da questão militar.

Quando surge essa situação da Abin, fui fazer essa verificação que se materializa na forma concreta da execução do gasto público. O problema é como tirar o véu disto. As Forças Armadas investiram seis vezes mais do que a Abin na aquisição e não sabemos para qual finalidade. É compreensível que a Abin tenha essa tecnologia. Ela não é ilegal. O que pode ser ilegal é o uso dela. Agora, é difícil imaginarmos as Forças Armadas fazendo investimento seis vezes à própria Abin quando suas funções não são bisbilhotar os seus compatriotas. Deveriam estar cuidando da defesa nacional.

Na verdade, tem um sistema montado de bisbilhotar os inimigos internos.

BdFRS - Outra coisa que chama a atenção é que a sede dessa empresa, a Cognite, não é São Paulo mas Florianópolis. Coincidentemente ou não, é a cidade também do Silvinei Vasques, que era diretor geral da Polícia Rodoviária Federal...

Jeferson Miola - ...e que está preso...

BdFRS -... e está respondendo a processo sobre o caso das eleições de 2022, quando a PRF realizou blitzes para dificultar o deslocamento dos eleitores, sobretudo do Nordeste.  E tem mais um dado: a PRF do Silvinei também comprou esse software...

Jeferson Miola - Temos um roteiro para uma série... Esse bando que passou pelo Estado brasileiro nos últimos anos passou em revista o Código Penal. Poderia ser o roteiro de uma investigação. Acho que CPI não é o palco. Existem comissões dentro do próprio Congresso que poderiam se dedicar a isto.

Muitos temas nebulosos precisam ser explicados. Este, por exemplo, da empresa ser sediada em Florianópolis, representada pelo filho de um general – aliás uma das hipóteses da demissão do Santos Cruz em junho de 2019 é exatamente a divergência com o Carlos Bolsonaro, que defendia a aquisição de um programa chamado Pegasus, da NSO Group, também de uma empresa israelense de espionagem. Defendia porque é um programa mais invasivo.

A Polícia Rodoviária Federal foi o segundo maior comprador do software, acima da Abin...

O FirstMile faz a identificação geográfica, a localização dos celulares, monitora a localização. O que é suficiente para saber, por exemplo, onde as pessoas estão se encontrando e com quem. Mas o Pegasus é mais agressivo. Acessa os conteúdos, inclusive os diálogos.

Isso pode ter sido, supostamente, a divergência fundamental que levou à demissão do Santos Cruz. Ele fazia lobby para o programa do seu filho e o Carlos Bolsonaro defendia outro. Existe uma série de pontas soltas e elementos que permitiriam uma investigação mais dedicada  que é sobre os R$ 127 milhões -  digo R$ 127 milhões mas é muito maior porque tem dados sigilosos.

A Abin (em gastos com a Cognyte) está atrás da PRF, que foi o segundo maior adquirente. O terceiro é a Abin mas só a Abin está na alça de mira dessa crise hoje. É conveniente para os militares que essa crise fique restrita à suposta guerra corporativa entre a Abin e a Polícia Federal porque eles continuam ocultos numa situação onde tem uma centralidade de participação.

No esquema da PRF, todas as suas aquisições foram feitas – para todas as superintendências regionais – a partir da superintendência de Santa Catarina. Tem uma série de aspectos que mereceriam um aprofundamento de investigação. Não acredito que durante a ditadura houvesse algo tão sistêmico, tão estruturado.

BdFRS - E que vem desde 2014.

Jeferson Miola - Aí a gente faz o itinerário dos militares. Eles já estavam recompondo a antiga comunidade de informações, o SNI, o Serviço Nacional de Informações da ditadura. Nos meses prévios ao golpe, os generais que traíram a Dilma, o Sérgio Etchegoyen e o (Eduardo) Villas Bôas – que ela nomeou ambos, o Villas Bôas para o Comando do Exército e o Etchegoyen para a chefia do Estado Maior. Traíram a Dilma, conspiraram com o Temer e já estavam tramando o que viria.

Daí em diante, o Etchegoyen passa a ministro do GSI, começa a militarizar, tinha a Abin subordinada ao GSI, com esta visão de um serviço nacional de informações. Assume aquilo, bota o GSI nos mesmos mecanismos e princípios da época da ditadura e aí a expansão. O salto é desde 2014, quando é feita a primeira aquisição do FirstMile, no valor de R$ 2,6 milhões. Passou para R$ 60 milhões no período Temer. O mercado da arapongagem multiplicou por 23 com o Temer. Depois vem o Augusto Heleno que herda a estrutura. É uma situação que nos coloca diante de uma realidade sumamente preocupante e que precisa de uma apuração rigorosa.

BdFRS - Este sistema, o FirstMile, não é uma ilegalidade. É a corrupção do seu uso que se transforma numa ilegalidade. É razoável que seja adquirido pela Abin para ser empregado com critérios legais, o que não foi o caso. Mas depois das aquisições pelo Exército e a PRF, a gente não acredita que tenha um uso republicano por uma instituição ou por outra. Por que o exército quer o FirstMile e o que está fazendo com isso? Por que a PRF fez esse investimento maior do que o da Abin e o que está fazendo com isso?

Jeferson Miola - São aspectos que revelam a gravidade do assunto. Qualquer tecnologia de monitoramento não só não é ilegal como é fundamental. Os investimentos em segurança pública tem que ser também na área da inteligência. Reclamamos muito disso. Não basta a repressão. As polícias devem ser dotadas de uma capacidade de investigação mais atualizada, preferencialmente à frente do crime.

BdFRS - Ou seja, esse é um uso virtuoso...

Jeferson Miola - É um uso virtuoso. Qual é o problema que estamos vendo? Que houve um processo de espionagem industrial de mais de 30 mil pessoas que sabemos, fora outros sistemas de espionagem. Não estamos falando só do FirstMile. O problema é quando seu uso não observa os aspectos regulamentares, não está vinculado à autorização judicial, deixa o usuário desse programa no seu livre arbítrio de dizer para quem vai direcionar o programa. O uso sem amparo judicial e direcionado como foi o caso é absolutamente ilegal em qualquer democracia. Cairia a casa, os praticantes desses crimes estariam presos.

BdFRS - Faltariam celas...

Jeferson Miola - Seguramente. Diria que até que, se vale o critério de quem comprou mais tem mais comprometimento, então quem mais comprou foram os fardados. A atuação institucional das Forças Armadas e da PRF não é para isto. E, mesmo que demandassem uma investigação específica de certos indivíduos, o princípio da interoperabilidade dos sistemas de inteligência, permitiria que a PRF se socorresse da Polícia Federal ou da própria Abin. Não encaixa a forma como foi feita essa aquisição.

Imaginem a guerra de dossiês, a implantação de provas falsas, a alteração de processos...

BdFRS - Sobre a arapongagem, vale lembrar, por exemplo que, no regime militar, tínhamos o SNI, que deveria atender a todas as expectativas de todas as forças. No entanto, cada uma dessas forças tinha o seu próprio centro de informações: o centro de informações do Exército, o da Aeronáutica e o da Marinha. E fazendo o que nós todos sabemos, aquilo que manchou a reputação do Brasil no cenário internacional. Havia tortura nesses lugares, no da Aeronáutica foi inclusive onde morreu o Stuart Angel... Parece que esse interesse pela vida alheia é bastante disseminado, tanto é que o próprio SNI não seria o suficiente para atender as expectativas das três forças...

Jeferson Miola - Estamos falando aqui de estados policiais ou policialescos. É disso que se trata. E isto tem uma decorrência da nossa cultura, a da presença das Forças Armadas como um ente de tutela da nossa democracia. Somos bestas ou infantes que precisamos da tutela? Mas isso cria uma cadeia de transmissão que abarca as polícias militares estaduais, que são constitucionalmente consideradas forças auxiliares das Forças Armadas.

A subordinação orgânica deles não é aos governadores estaduais mas ao comandante do Exército. Essa cadeia de transmissão faz com que esses sistemas, que eles tem essa disseminação geral, também abarca as PMs na forma das P2, as polícias secretas dos estados, que é outro reino dessa arapongagem.

Dentro desse ambiente de necessidade de auscultar as conversas alheias, as próprias três forças tinham os seus próprios centros de informação. Nos tempos atuais é o que estamos vendo. Temos a Abin do clã Bolsonaro, temos sistemas de espionagem das Forças Armadas, temos as espionagens específicas da Polícia Federal, temos outros órgãos. Isto se mantém porque eles não ficam espionando só os adversários. Também ficam controlando os seus próximos, que podem ser seus desafetos futuros. E esse mundo é um mundo de muita insegurança e muito perigoso porque são instituições muito sensíveis que lidam com temas muito cruciais.

Então, imaginem a guerra de dossiês, a produção falsa de informações, a implantação de provas falsas, a alteração de processos, especialmente agora com tecnologias de inteligência artificial. Maus agentes dessas instituições podem gerar uma crise política institucional que derruba governos. Tenho uma preocupação central quando, dentro do processo virtuoso e que tem que ser aplaudido desta investigação, se produz uma crise de governo. O governo passou a viver uma crise da Abin com a PF. É muito perigoso para o governo Lula. Acho que o governo tem que buscar uma saída rápida dessa crise.

Quando os militares entram na arena pública, entram utilizando os conceitos de uma guerra

BdFRS - Esta história agora da Abin, o Lula demitiu o número 2 da agência e tal, lembra o que aconteceu logo após o 8 de janeiro quando, de repente, criou-se uma CPI e se passou a discutir o general G. Dias. Que foi muito mais vítima de má informação que recebeu dentro da própria estrutura que ele comandava. Botou-se o governo dentro do quebra-quebra. Agora, coloca-se o governo de novo nessa arapongagem dos Bolsonaro.

Jeferson Miola - Tem um pouco de ciência nisto. É método. Quando os militares entram na arena pública, entram utilizando os conceitos e os conhecimentos de uma guerra. É como se estivessem no campo de batalha. No campo de batalha, é preciso distrair teu inimigo, enganá-lo, plantar uma ação de um lado para que o cara vá para o outro. É próprio dos militares. O G. Dias foi herdou a estrutura do general Augusto Heleno. Todos os secretários e chefes de departamento tinham sido nomeados ainda pelo Etchegoyen e os restantes pelo Heleno. E o G. Dias comprou. O Luís Fernando Correa, diretor geral da Abin, também cometeu um pecado, foi alertado, mas bancou o número 3 (da agência) que havia sido alvo de uma operação da Polícia Federal, onde foram apreendidos 171 mil dólares na casa. Ou seja, temos cavalos de troia.

É aconselhável que o governo pare um pouco e faça uma revisão sobre esses operadores do bolsonarismo. Estamos falando de um setor, mas são vários. O aparelho do estado brasileiro está colonizado por uma espécie de milicialização das instituições. São funcionários públicos empregam as prerrogativas dos seus cargos para uso privado, pessoal e material. Sérgio Moro e o Deltan Dallagnol são exemplos notáveis disso. Criaram uma escola. Não vamos achar que são só os de hoje.

Nossa democracia está muito debilitada. Estamos sob uma ameaça muito séria

BdFRS - Sabemos de toda a rede de ódio do bolsonarismo. Na eleição de 2018, a gente sabia do que estava acontecendo. Como a questão da vigilância também subsidia essa rede de ódio e esse mundo cada vez mais paralelo que eles criam?

Jeferson Miola - As conexões são evidentes mas não saberia te dizer como isso se operacionaliza. É um sistema que se retroalimenta também. Pode alimentar as lógicas que transitam nas redes e se retroalimentar disso depois na forma de informação boa ou deformada. Informação enquanto instrumento de poder e de influência é capaz de atuar na conjuntura e definir agendas políticas. É um problema gravíssimo.

Acho que, mais além da prática industrial com milhares de pessoas atingidas, tem um problema central que é a nossa democracia. Ela está muito debilitada. Estamos sob uma ameaça muito séria. No contexto das guerras híbridas há a instrumentalização de várias técnicas de manipulação da realidade, com o objetivo sobretudo de mudanças de regime. Então, esse dispositivo é uma arma poderosíssima sob controle e domínio de bandos delinquençais que ocuparam o aparelho de estado e que se associam também com essas facções externas ao Estado.

BdFRS - O presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, pediu a lista dos parlamentares que estariam sendo espionados através do FirstMile pela Abin paralela. Se a gente fosse fazer um bookmaker disso, quem é que apostarias que estaria nessa listagem dos espionados?

Jeferson Miola - Eu não me surpreenderia se forem identificados tanto senadores leais ao bolsonarismo como senadores oposicionistas. Dou um exemplo, que não se trata de um senador leal ao bolsonarismo, mas que saiu e voltou que é o Sérgio Moro. É evidente que o Moro é monitorado. Até mesmo o Ciro Nogueira. Aqui tem esse sentido da espionagem e da contra espionagem e os interesses que essas informações podem produzir para quem as detém.

Se hoje eu não tenho nenhuma rusga com o Ayrton, tudo bem. Só coleciono as informações. Mas quando eu tiver alguma desavença e tendo aqui no meu acervo as informações picantes a teu respeito naturalmente eu posso empregar essas informações. Não me surpreenderia se tivesse (na lista) tanto senadores de oposição quanto da direita ou da extrema direita.

Os aliados de hoje podem ser os inimigos de amanhã. A espionagem é um instrumento de poder

BdFRS - Até porque essa ideia dialoga muito bem com a personalidade do Bolsonaro. Várias vezes ele demonstrou ser extremamente inseguro, paranoico até com questões de segurança, dos filhos e do governo, tanto é que os corpos começaram a ser jogados na calçada muito cedo: Gustavo Bebiano, Santos Cruz, sem contar João Dória, Joice Hasselmann etc. Então faz muito sentido que figurem aliados.

Jeferson Miola - Os aliados de hoje podem ser os inimigos de amanhã. A espionagem é um instrumento de poder. Imagina a possibilidade de produzir dossiês. É um recurso atemporal. Posso não usar hoje mas daqui a 10 anos.., Tenho a informação, destruo uma reputação,  aniquilo com o inimigo político...

A emergência da extrema direita se dá em um contexto de crise muito aguda do neoliberalismo

BdFRS - O bolsonarismo continua super ativo na política e com certeza vai polarizar a eleição neste ano. A live do Bolsonaro teve mais 1,3 milhão de pessoas. Eles continuam vivos, apesar de tudo isso.

Jeferson Miola - Não sou daqueles que imagina que o 30 de outubro de 2022 resolveu tudo, estabilizou nossa democracia. Estamos diante de um fenômeno com o qual a nossa geração nunca tivera contato, que é a emergência da extrema direita. Ele se dá em um contexto de crise muito aguda do neoliberalismo na sua fase de ultrafinanceirização e, portanto, é uma resposta do próprio capitalismo para uma gestão autoritária da barbárie neoliberal. O capitalismo requer - é o que estamos vendo na Argentina - esse padrão das gestões violentas da barbárie, a partir de tradições fascistas, ou de extrema direita não fascista.

Segundo, esse fenômeno não é só brasileiro. É mundial e está longe de nós vermos o fim dele. Pelo contrário, estamos vendo esse processo expandir enormemente. Me preocupa imensamente pensar que a segunda metade do mandato do presidente Lula vai se dar tendo (Javier) Milei na Argentina e, no norte, que é o problema central, tendo o Donald Trump. Para mim, é uma espécie de um prazo de validade dessa escolha que o governo está fazendo com os militares.

Estamos diante de um fenômeno que tem engajamento de massas não só nas redes mas nas ruas. Bolsonaro fez 58 milhões de votos. Entendo que mesmo com Bolsonaro preso  ou inelegível, isto tem uma força de tração própria. Pesquisas demonstram que 90% de quem votou em Lula repetiria o voto em Lula, e 90% de quem votou em Bolsonaro, repetiria o voto em Bolsonaro. Se isto é verdade, a luz amarela tem que ficar ligada. Porque requer uma outra estratégia de parte do campo progressista e democrático, inclusive liberal democrata. Estamos sob ameaça e sob risco permanente.

Estamos diante de uma convocatória permanente em defesa da democracia

BdFRS - Ou seja, o discurso de 2022 de união, de aproximação da esquerda do centro, da grande frente pela democracia, continuará sendo o grande argumento de 2026?

Jeferson Miola - Acredito que sim. Acho também que devemos abandonar as ilusões. A classe dominante, as oligarquias, não tem compromisso. Sua relação com a democracia é instrumental. Se, para a esquerda a democracia é um valor fundante de uma vida, para esses caras não. A qualquer ameaça distributiva do país, eles não hesitam e derrubam os governos. Levaram Getúlio ao suicídio, quiseram impedir a posse de JK, depois não quiseram que o Jango assumisse quando o Jânio renunciou, inventaram o parlamentarismo que foi derrotado no plebiscito de 1963, deram o golpe em 1964, derrubaram a Dilma em 2016, prenderam o Lula.

Estes atores representam aqueles que sempre estiveram atrás dos golpes. Se o governo vai mal e não consegue responder minimamente à necessidade de acumulação e de reprodução do capital, esses setores que apoiaram o Bolsonaro em 2018 e fizeram meia volta em 2022 -- porque ele foi longe demais -- poderão novamente aderir a uma onda de extrema direita? Estamos diante de uma convocatória permanente em defesa da democracia, as eleições de 2024 e de 2026 se dão muito em torno desta moldura.

Como ponto de partida fundamental para podermos existir e disputar qualquer pleito, temos que ter democracia. Estejamos todos juntos aqui e daqui em diante se vê quem é o melhor para executar, qual é o programa que cada um pode oferecer. Não quero ser pessimista, prefiro que isso seja considerado mais realismo do que pessimismo, mas estamos em uma situação em que, quando imaginávamos que tínhamos todas as respostas, nos damos conta que mudaram as perguntas. São outras perguntas que temos que responder.

Esta entrevista é uma versão compactada do podcast De Fato. Assista:


Edição: Ayrton Centeno e Marcelo Ferreira