“A vida das mulheres no estado está precarizada, há diversas violências em todas as regiões, estamos liderando em feminicídios. Quem está no comando precisa ouvir o Conselho Estadual do Direito da Mulher (CEDM) que representa a sociedade no debate, precisamos ter condições estruturais para poder exercer o controle social”, alerta a presidenta do Conselho, Fabiane Dutra.
:: Caso Julieta Hernández alerta sobre aumento do feminicídio no Brasil ::
Mãe do Vicente, de seis anos, e do Ethan, de 13, Fabiane é graduada em Marketing e cursa MBA em Gestão Pública. Também preside a seção gaúcha da União Brasileira de Mulheres, além de compor a direção nacional da entidade.
Em um ano que começou marcado pela violência contra as mulheres, Brasil de Fato RS conversou com Fabiane sobre as políticas para as mulheres no estado, a retomada do Conselho que, em março, completa um ano de funcionamento, assim como os desafios para seu funcionamento.
De acordo com o Lupa Feminista a cada 62 horas, uma mulher foi vítima de feminicídio no RS, no mês de janeiro. Em comparação com janeiro do ano passado, o aumento é de pelo menos 20%.
Ainda segundo o levantamento, há acréscimo também quando a comparação é realizada com anos anteriores. Em 2022 e 2021, foram registrados 11 casos em janeiro, enquanto em 2020 foram 10 casos. No ano passado, os meses de janeiro e outubro foram os que registraram o maior número de feminicídios no Estado, ambos com 10 casos. Entre os fatores citados pela polícia como propulsores para a incidência desse tipo de crime estão o consumo de álcool e drogas, que costuma ser mais acentuado em algumas épocas do ano.
Brasil de Fato RS – Após quatro anos paralisado, o Conselho empossou novas conselheiras. Como tem sido essa retomada?
Fabiane Dutra – Foi uma luta muito grande junto ao Ministério Público para fazer o governo do estado respeitar esse espaço de controle social. Estávamos super animadas mas o governo não apresentou as condições estruturais (necessárias) para podermos realizar um bom trabalho. De qualquer forma, graças ao empenho das representantes da sociedade civil em parceria com as funcionárias do departamento fomos trabalhando, mesmo não tendo as melhores condições.
Cobramos a nossa sede nova, pois a antiga foi interditada. Nesse segundo mandato do Leite, construímos um diálogo com o governo mas isso, infelizmente, não garantiu a celeridade das resoluções. Não tivemos condições estruturais até agora.
Antes tínhamos um governo do estado que não dialogava. Agora temos um governo que só dialoga, sem garantir as condições necessárias
Antes tínhamos um governo, no primeiro mandato, que não dialogava, não tinha conselho e não havia disposição nenhuma. Passamos a ter (agora) um governo que apenas dialogou, sem garantir as condições necessárias.
A vida das mulheres está precarizada, há violência em todas as regiões, estamos liderando em feminicídios. Quem está no comando precisa ouvir o CEDM que representa a sociedade no debate. Não temos acesso para poder exercer o trabalho também de fiscalização, de monitoramento, propor mudanças em determinados projetos. Não temos uma secretaria de políticas para as mulheres. O trabalho fica muito prejudicado.
O próprio Departamento de Políticas para a Mulher é excluído no debate interno sobre as políticas públicas. Não há articulação. Daí a necessidade urgente da volta da Rede Lilás, para integrar toda rede de prevenção e combate à violência.
BdFRS – Qual é o papel do Conselho?
Fabiane – É normativo, deliberativo, fiscalizador. É autônomo. O governo (estadual) tem a obrigação de garantir a estrutura para que se realize o trabalho. Um dos papeis do conselho é fazer esse diálogo e a articulação do movimento social. E entre o movimento social e o governo. Além de fiscalizar, propor políticas, fazer parceria com organismos locais, regionais e até internacionais.
Hoje é composto por 33 conselheiras. Onze são governamentais, as demais da sociedade civil. Tem as eleitas pelo Fórum Estadual de Mulheres e pelos fóruns regionais. Na última eleição, tivemos pouquíssimas inscrições nos fóruns regionais, pela desarticulação dos movimentos e das próprias políticas públicas no interior.
Nessa articulação entre os movimentos, que também nos cabe, avançamos lindamente com a Marcha das Margaridas. O Conselho patrocinou um ônibus para integrarmos a luta das mulheres do campo e da cidade em Brasília. Foi lindo demais. Mulheres das hortas comunitárias, da luta pela moradia, estudantes, as pequenas agricultoras, as assentadas da reforma agrária. Todas na luta pela alimentação saudável e a ecologia.
Não queremos meninas perdendo a vida com gravidez forçada
Tema sempre presente - e que precisamos nos posicionar e cobrar agilidade - foi pela garantia do aborto legal e seguro. Para que não tenhamos meninas, crianças, perdendo a vida com gravidez forçada, que nada mais é que tortura, após elas sofrerem estupro, que já é um crime hediondo.
BdFRS – Uma questão que o Conselho cobra trata da Secretaria do Direito das Mulheres. Como a inexistência da pasta prejudica?
Fabiane – Nossas principais pautas do 8 de Março Unificado do ano passado foram o retorno do Conselho, a saída do Centro de Referência da Mulher do porão do CAFF (Centro Administrativo), a volta da Rede Lilás e a recriação da Secretaria. Com a volta da Secretaria o trabalho funcionaria muito melhor.
Criamos uma rede para realizar um diagnóstico das políticas públicas para as mulheres. Envolve 13 universidades e institutos federais. Com ela queremos mostrar a necessidade do governo do estado dar o exemplo. Os municípios estão muito carentes de qualquer assistência, prevenção, de acolhimento e as mulheres estão vivendo em péssimas condições e muito, muito sobrecarregadas. Fizemos o que foi possível.
BdFRS – Como foram as caravanas no Interior?
Fabiane – Já visitamos a maioria das regiões. Na maioria delas tinha bastante gente presente. Pudemos também fazer um pouco desse diagnóstico das políticas ali no local, ouvindo as pessoas. Foi muito positivo, a mulherada fica feliz do Conselho estar de volta, estar ali ouvindo, propondo a articulação.
Precisamos estar articuladas para disputar todos os espaços e os recursos. Esse ano tem eleições e, no ano que vem, a Conferência Nacional de Política para as Mulheres. E temos de fazer avançar os planos municipais, estadual e nacional, retomar o que já fizemos de bom e avançar em várias frentes.
Vamos focar naquilo que podemos conquistar imediatamente se estivermos fortes e unidas
Falamos muito sobre unidade feminista. De quem sofre mais as consequências de estarmos fora das decisões, que são as mulheres mais pobres, as negras, as com deficiência, as que sofrem mais preconceito e exclusão. As mães, cuidadoras, não remuneradas, chefe de famílias atípicas, as mulheres trans. Todas nós temos de fazer política pelas nossas vidas. Só em levar nosso recado para todo lugar, através do Conselho, já é uma vitória.
BdFRS – Como se descreve a situação dos direitos das mulheres no estado?
Fabiane – Temos muitos retrocessos, principalmente no interior. Perdemos muitos conselhos municipais, centros de referência, delegacias especializadas no atendimento à mulher, que foram transformadas em delegacia de proteção a grupos vulneráveis, e isso é inadmissível. Porque todos estes grupos vulneráveis precisam de um atendimento especializado, tanto as mulheres quanto idosos, crianças. Tivemos retrocesso inclusive no diálogo, na visão da importância das políticas para as mulheres.
Viemos enfrentando essa política antifeminista de misoginia, de ódio, que acabou desarticulando, gerando até medo das mulheres se organizarem e saírem para rua em determinados lugares. O que fazer para avançar? Como sair da defensiva? Precisamos reagir, construindo unidade, amplitude dentro dos marcos possíveis. Não vamos combinar em todas as pautas. Tem alguns grupos, por exemplo, favoráveis à descriminalização ou até mesmo a legalização do aborto, e grupos que não debatem essa pauta. Vamos focar naquilo que podemos conquistar imediatamente se estivermos fortes e unidas, que foi a proposta da volta da secretaria.
No Interior, temos casamentos que são combinados, muito casamento infantil
BdFRS – O Rio Grande do Sul está entre os cinco estados mais violentos para as mulheres no país. Fechamos 2023 com 55.623 registros de violência contra as mulheres, sendo 87 casos de feminicídios e 231 tentativas. Só em janeiro já foram pelo menos 15 feminicídios. O que provoca essa violência?
Fabiane – Essa violência é histórica, estrutural do capitalismo, do patriarcado, que aprisionou, digamos assim, as mulheres num espaço dominado pelos homens. Temos trabalhos domésticos não remunerados, que nos forçam a ficar muito mais tempo no espaço privado. E temos que enfrentar isso. Não é só o machismo. É o racismo. Vemos que as mulheres negras sofrem muito mais que as não negras. Tem a cultura de que o corpo da mulher é propriedade, objeto. Então, a violência física, a violência do estupro, do assédio, da importunação, é uma visão de inferioridade imposta.
No Interior, temos, por exemplo, casamentos que são combinados, muito casamento infantil, meninas jovens com homens bem mais velhos e que logo viram mães. E aí não tem a creche, não tem a geração de trabalho. Se não temos geração de trabalho e renda, como superar essa violência?
Quando nos unimos conseguimos vencer muitas barreiras. A gente precisa de um movimento articulado. Recursos para vencer a violência não podem ficar só na segurança pública. Precisa ter geração de trabalho e renda, educação não sexista, investimento no esporte, uma série de coisas que passam pela participação política das mulheres.
BdFRS – Qual é o papel do Estado no combate à violência contra a mulher? E o que tem feito?
Fabiane – É dar visibilidade para desmistificar o tema, dar segurança da resolução do crime para a tranquilidade na denúncia. Precisa conjugar uma série de políticas públicas de prevenção e de enfrentamento. Mas o Estado não tem feito. O próprio Departamento de Política para as Mulheres tem poucos recursos financeiros e humanos.
BdFRS – Começamos o ano com a notícia do feminicídio da artista venezuelana Julieta Hernandez, a Miss Jujuba. O episódio trouxe à tona o debate que, para nós mulheres, nunca nos abandona: a insegurança de andarmos sozinhas. Dados de 2019 do ranking Women Danger Index indicam o Brasil como o segundo lugar do mundo mais perigoso para mulheres viajarem sozinhas, perdendo apenas para a África do Sul. Como vês essa situação e como superá-la?
Fabiane – Falamos que os homens têm medo de serem assaltados, da violência do crime organizado. E nós temos o medo de sermos violadas. Pode levar tudo, mas me deixa quieta aqui no meu canto. É muito difícil pela falta de conscientização. Enquanto movimento feminista, precisamos parar de dialogar só entre nós e dialogar também com os homens.
Os homens têm medo de serem assaltados e nós temos medo de sermos violadas
Eles precisam aprender a nos respeitar. Se ninguém ensinou, nós vamos ter que ensinar. Nós enquanto sociedade, com essa outra educação inclusiva, não sexista, sem preconceito, que vai deixar de ver as mulheres como rosa e os meninos como azul. Mas precisamos também de políticas urbanas nas cidades que contemplem iluminação e postos de segurança. Polícias que sejam comunitárias, para nos proteger. Hoje, a gente não sabe se corre do bandido ou se corre da polícia. Tem casos de mulheres que são estupradas dentro de viaturas policiais.
Como se sentir segura no país? Elegeram antes um presidente, um fascista que estimulava ódio contra as mulheres... Em um país onde temos o aumento de 6,5% da violência contra a mulher, segundo o Anuário da Segurança Pública, não tem como nos sentirmos seguras em lugar nenhum.
Na nossa própria casa é onde mais sofremos violência. As mulheres são mortas em sua grande maioria dentro dos seus lares. Então, não é só iluminação, não é só a viatura passando. É um conjunto de políticas para superar a cultura machista.
O patriarcado vem se sentindo, talvez, ameaçado, e aí aumenta a violência
BDFRS – Perguntei para as artistas circenses – depois do caso da Julieta Hernandez – se elas não ficaram com medo...
Fabiane – Medo nós temos, mas temos que colocar a nossa coragem em primeiro lugar. Margarida Alves disse “Medo nós têm mas não usa”. Porque é isso que eles querem.
O patriarcado vem se sentindo, talvez, ameaçado, e aí aumenta a violência. Querem, através do medo, fazer a gente retroceder. Mas não podemos. Temos que superar o medo porque se não só vai piorar para as próximas gerações e precisamos construir um outro legado. E aqui quero fazer uma homenagem às mulheres palestinas que ainda resistem, às que não tombaram e seguem lutando contra o genocídio do seu povo. Lutando contra a violação de seus corpos, seu território, sua cultura, sua história. Não podemos silenciar.
BDFRS – Eduardo Galeano disse que “O medo que as mulheres têm da violência masculina é o espelho do medo que os homens têm das mulheres destemidas”. Seria o machismo o reflexo desta afirmação?
Fabiane – Com certeza. Preferimos que tenham respeito, mas entendemos que tenham medo. Somos a alternativa. Estive em uma palestra com a Márcia Tiburi, nossa amiga do movimento feminista, onde ela disse que “a mulher é única e última alternativa da sobrevivência da espécie e do planeta”. Sou feminista emancipacionista da União Brasileira de Mulheres. Nós não somos sexistas. Eu sou marxista. É a análise concreta da realidade.
Não fomos nós que comandamos os governos, os exércitos, as igrejas, e o planeta está colapsando
Não fomos nós que comandamos os governos, os exércitos, as igrejas, o planeta está colapsando, e a terceira guerra está aí praticamente em curso. O medo que eles tem é de que mudemos o sistema, que superemos o patriarcado.
Nossa resposta tem que ser conseguir colocar mais mulheres em todos os espaços. Nos DCEs, nas associações de moradores, nas empresas, mas sobretudo no poder político, no executivo e no legislativo. Construir bancadas feministas, comunitárias, matriarcais, ecológicas, porque conseguimos ter essa visão mais ampla. Os homens sempre foram a maioria na política, e hoje a sociedade tem uma visão da política que é a da corrupção, do individualismo, dos interesses próprios. E na pandemia vimos que os locais governados por mulheres tiveram uma outra postura, tiveram menos dificuldades de enfrentar a pandemia.
No nosso último congresso da UBM dizia-se assim: “Luta mulher, muda a nossa história”. Controlemos a política, a economia, a cultura, mudemos o rumo da história. Falávamos, quando eu ainda estava no movimento de jovens feministas, sobre escolher entre socialismo e barbárie. Agora, a barbárie chegou. Não temos tempo a perder.
BDFRS – Há uma questão que diz respeito a política de cuidados, que foi abordada no Enem...
Fabiane – É muito trabalho não remunerado. Às vezes, me perguntam: Fabi, tu fazes um monte de coisas. Como que tu dás conta?” Nem eu sei... Temos que dar conta da casa, do filho, do trabalho, da faculdade, forma e faz pós. Não paramos nunca.
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Precisamos de políticas de cuidados que sejam da sociedade. O Estado precisa compartilhar também a questão das crianças e da maternidade, por exemplo. O Estado tem que garantir uma rede com lavanderias públicas, restaurantes populares, educação infantil. Educação infantil é lei. O Brasil é um dos melhores países quando se trata das leis para garantia dos direitos das mulheres mas a maioria está só no papel.
BdFRS – Como que a crise climática atrapalha a vida das mulheres?
Fabiane – As mulheres são as mais atingidas em todos os conflitos, seja pela guerra, seja pelos efeitos da crise climática. Seja pelo envenenamento dos nossos alimentos, pela poluição dos nossos rios. Quando tem essas catástrofes de temporais, enchentes, as mulheres são a maioria que vivem nos territórios periféricos, em casas sem muita estrutura, muitas em encostas de morros, em beira de rios. Então acabam perdendo tudo. E tendo de recomeçar sempre.
O Brasil é um dos melhores países em leis para garantir os direitos das mulheres, mas só no papel
E aí não basta fazer campanhas de solidariedade. São muito importantes, contudo os governos precisam pensar alternativas. Não basta dizer que as pessoas precisam sair daquele espaço. Quais são as alternativas que elas têm? Não existe política de prevenção, de acolhimento. Precisamos nos preparar, desde a educação ambiental, estudar novas políticas de geração de energia.
BdFRS – Uma mensagem final?
Fabiane – A sociedade precisa entender que nós, feministas, não queremos oprimir os homens. Não queremos trocar de lugar, não queremos mais do que o justo. Queremos o compartilhamento das decisões, incidir sobre os rumos que a nossa sociedade está tomando quando estamos sempre ficando para trás, com menos oportunidades, com menos direitos, com menos garantia de vida.
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Queremos o fim de todas as formas de violência - e várias também atingem os homens, principalmente os homens trabalhadores, da periferia, que são os menos privilegiados. Queremos trabalho digno, salário decente, alimento saudável na mesa, o respeito dos serviços públicos aos quais a gente tem direito e que, muitas vezes, não são prestados, são negligenciados ou boicotados para gerar privatizações.
Queremos uma sociedade emancipada em que homens e mulheres possam viver as suas diferenças biológicas, sem desigualdades de oportunidades por gênero, raça ou classe. Viver com respeito, em harmonia com a natureza, de forma digna, uma vida cidadã.
Edição: Ayrton Centeno