Neste feriado de 2 de fevereiro fiéis da santa e do orixá celebram juntos suas crenças
Quando os católicos portugueses, expansionistas, escolheram Nossa Senhora dos Navegantes como sua padroeira nos mares, não imaginaram a associação surgida entre sua santa cristã e a rainha das águas, mãe da criação e dos demais orixás que compõem o Orumalé (panteão das divindades africanas).
Proibidos de professar suas crenças, os escravizados trazidos à força para as Américas não abandonaram seus cultos. Estabeleceram correspondências entre santos cristãos e entidades da África, recorreram ao sincretismo capaz de permitir, mesmo na diáspora, a preservação de sua fé e cultura.
É deste caldo que surgem as religiões afro-brasileiras, como o candomblé no Nordeste e Sudeste e o Batuque ou Nação no Rio Grande do Sul, bem antes do início da imigração europeia. Mais tarde, no início dos anos 1900 é que nasce a Umbanda, reunindo elementos do espiritismo, cristianismo, candomblé e pajelanças indígenas, no Rio de Janeiro.
O Brasil teve o catolicismo como religião oficial do Estado até 1889 e somente em 1988 a liberdade religiosa tornou-se lei. Negros escravizados, mesmo depois da dita abolição, sofriam violência e perseguição quando exerciam sua fé. A polícia prendia, misturava candomblé com capoeira e era praxe prender negros e negras sob a alegação de vadiagem ou perturbação da ordem. Foi preciso manter as associações entre santos e orixás por proteção. A ridicularização da religiosidade afro-brasileira foi e é uma das tantas formas de depreciar seus fiéis.
Mesmo criminalizada, a intolerância religiosa tem aumentado de forma assustadora nos últimos anos, principalmente no Rio de Janeiro e Bahia. Aqui no RS, há poucos meses, uma roça de candomblé foi depredada. Profanação de objetos sacros, ameaças e destruição de uma propriedade privada, ainda não solucionada. Narcomilícias da fé estão se disseminando pelo país, embaladas pelo fundamentalismo criminoso, perseguindo sacerdotes, proibindo inclusive o uso de roupas brancas.
Aqui no Estado, segundo mais branco do país, com o maior número de seguidores das religiões afro-brasileiras, é imperativo visibilizar a opção de fé de 1.5% de brancos e negros, praticantes de Batuque, Umbanda, Nação ou Candomblé. Imperativo que os milhares de fiéis destas crenças, dos cerca de 65.000 terreiros, não precisem mais do abrigo em Nossa Senhora dos Navegantes, quando estes milhares de porto-alegrenses e gaúchos celebrem, em verdade, Yemonjà.
A lei 350/2021, de autoria da vereadora Fran Rodrigues, PSOL, Porto Alegre, vem ao encontro da reafirmação desta fé. Orientada pela liberdade religiosa e pelo combate ao racismo religioso, ao incluir, no feriado de 2 de fevereiro, o orixá celebrado na data. Resgata um pouco da cidadania dos homens e mulheres que construíram a riqueza deste país e permanecem, em grande maioria, na miséria. Permite que fiéis da santa e do orixá celebrem juntos, na mesma festa, suas crenças e homenageiem a padroeira de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul e mais 37 cidades gaúchas. Ou torna de direito o que há décadas já é fato.
Ashé para quem é de Ashé, Amém para quem é de Amém!
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko