Está claro que já estamos em campanha eleitoral para todos os níveis de governança
Não sei reproduzir aquela história do prato de lentilhas, mas sei de sua simbologia e vejo o quanto ela se ajusta de forma piorada ao nosso presente. Se vê a toda hora, como evidência de erosão dos processos educativos, da ausência de responsabilidade coletiva e do deboche à solidariedade humana, que pessoas iludidas e sem esperança, engambeladas por oportunistas, se deixam levar e desistem de sua autonomia, em troca de nada, ou quase nada.
Na Bíblia o filho mais velho teria aberto mão da herança paterna, trocando seu direito a tudo, com o irmão mais novo, espertalhão e oportunista, por um prato de lentilhas. E aqui, desatentos à metáfora, alguns moradores de Porto Alegre, berço do Orçamento Participativo, palco dos Fóruns Sociais, espaço relevante para a construção de mecanismos de transparência e intervenção da sociedade nos processos de administração pública, tratam de renovar seu atestado de fantoche, fortalecendo a naturalização de canalhice assemelhada àquela de que nos alerta o Velho Testamento.
Vale um parêntesis: neste tipo de questão temos os indutores, aqueles que se beneficiam do golpe, os induzidos, aqueles que pensam estar atendendo a exigências imperativas quando se submetem aos primeiros, e os apáticos, cúmplices ou não dos primeiros, que por dolo ou desatenção permitem tais acontecimentos.
Escrevo isso seguro de que representantes de todas aquelas categorias podem ser buscados investigando as denúncias de que ontem (25), na eleição dos conselheiros Região de Gestão e Planejamento (RGP) 6 do CMDUA (Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental) de Porto Alegre, o lado “vencedor” teria sido apoiado por votos a cabresto envolvendo “pelo menos 14 ônibus”, além de registros irregulares para que eleitores de outra Região de Gestão e Planejamento pudessem votar na chapa 1. Existem recursos, mas como não existem dúvidas quanto aos interesses envolvidos, são escassas as esperanças de justiça.
Com isso, apoiadores do prefeito Melo, setores econômicos e grupos ligados à “privatização de tudo”, à “verticalização da cidade” e à ruptura dos processos de representação social organizada obtiveram 955 dos 1.593 votos. A afluência de eleitores para a RGP6 (quase o dobro do ocorrido nas eleições de 2015) foi importante e isso deve ser destacado. O trabalho de formiga conduzido pela Chapa 2 (a quem deve ser creditada aquela evolução), que se empenhou em conscientizar as pessoas para a importância do CMDUA, e que estava comprometida com o enfrentamento das negociações obscuras que se tornam corriqueiras na Administração Pública da Capital, resultou em 638 votos.
Isto nos permite pelo menos duas reflexões: Do lado prático temos o fato de que as eleições para os conselheiros do CMDUA ilustram mecanismos adotados pelos agentes da erosão da democracia, dando conta do que se pode esperar na eleição para prefeito. Sendo esta cidade um espelho do que ocorrerá em outras, claramente estamos diante de mais um ovo da serpente, algo que será decisivo para as eleições presidenciais e até para o sucesso da luta internacional contra o fascismo. Há motivo de orgulho nesta conexão de fatos entre o local e o global, e isso deve ser tomado em conta por todos aqueles que se preocupam com o futuro.
Na prática, o que vimos ontem, na eleição da RGP6 envolve desde aquela capacidade de atração/envolvimento/captura de pessoas sobrecarregadas de necessidades a descoberto, com fome de tudo, iludidas por informações mentirosas e apressadas em disputas por migalhas, como também a possibilidade de anistia prévia, impunidade e garantia de cobertura legal aos que se beneficiam disso, com a validação (e o estímulo à expansão) de suas práticas criminosas.
E do lado moral, temos certeza que avança o estabelecimento de uma nova era. Um simulacro de democracia onde o grupo que controla o prato das lentilhas define a validade de suas próprias atitudes, filtrando o que pode e não pode ser estabelecido como norma para seleção dos representantes da população e seus interesses.
Os/as porto-alegrenses que ontem venderam seu direito de garantir mecanismos de fiscalização ao que se passa no planejamento urbano e ambiental desta cidade, ignoram o preço que todos pagaremos por sua pequena festa.
E, sabendo que disso, dado que todos temos responsabilidades em relação ao fluxo da vida, resta a oportunidade de maior empenho em todas as atividades que ajudem a ampliar a consciência coletiva de que tudo está ligado e de que precisamos enfrentar as mudanças que ameaçam a cidade que queremos e, por extensão, o estado e o país com que sonhamos.
Começando pelas eleições para o CMDUA, vale lembrar: ainda serão escolhidos os representantes de mais três RGP. Até agora, a população e o espírito de uma Porto Alegre cidadã perde para os interesses do capital por três a dois. E mais a fundo, está claro que já estamos em campanha eleitoral para todos os níveis de governança.
Quem se mantiver alheio a isso, ou se deixar levar pela coleira em troca de restos, estará ampliando a condição de invisibilidade reservada a todos que não nasceram com heranças nem se venderam aos interesses das máfias no poder.
Nossa música é do músico Nei Lisboa, Jogo de trapaças.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko