Com Estado mínimo, fim das políticas públicas, é a população quem sofre as consequências
Em outras circunstâncias, teria sido bem romântico jantar várias vezes à luz de velas em pleno século XXI, janeiro de 2024. Mas absolutamente não foi. A primeira vez foi na minha terra, Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, no primeiro fim de semana do ano, eu e meu mano mais novo, Marino, na casa da família. Tempestade com ventos fortes no final da tarde, foi-se a luz. Mas, felizmente, a energia voltou no mesmo dia, pelas 22h.
A segunda vez foi na terceira semana de janeiro, em Porto Alegre. Houve um fortíssimo, terrível temporal, ou ciclone, às 22h do dia 16, terça-feira: fim da energia e da luz.
A experiência foi um retorno aos anos 1950, quando não havia linhas de energia elétrica em Santa Emília. Nós, os vários guris da família, jantar, ir para o quarto à noite e tudo mais, tudo todos os dias à luz de velas e grandes lampiões. O diferente, e melhor, naqueles tempos longínquos, era ouvir o grande aparelho de rádio na cozinha, movido a pilhas. Ouvia-se especialmente a Rádio Guaíba, através da qual, aos 7 anos de idade, acompanhamos a Copa de 1958, Brasil finalmente campeão de futebol do mundo. Nos anos seguintes, os episódios da Campanha da Legalidade e os intensos discursos de Leonel Brizola, também pela Guaíba, eram os contatos com o mundo, e com os acontecimentos e a política no início dos anos 1960.
Dia seguinte ao temporal em Porto Alegre, 17.01.2024, ainda sem luz, fui verificar os estragos na rua Tomás Flores, minha moradia desde os anos 1980, próxima ao Colégio Rosário, ao Campus central da Ufrgs, à Santa Casa de Misericórdia e ao Parque da Redenção. Árvores estavam caídas por todos os lados. A Tomás Flores é tri bonita, toda arborizada, dando sombra e conforto no cotidiano. Nos arredores, famoso Bairro Bom Fim, dos livros de Moacyr Scliar, do Bar João e Lancheria do Parque dos filmes de Jorge Furtado, a destruição aconteceu por todos os lados, com ruas e trânsito interrompidos. Cenário de guerra, de quase caos.
Eu tinha exame médico marcado para as 8 horas da manhã do dia 17 no Centro de Saúde Modelo. Vou buscar o carro, não consigo abrir o portão eletrônico da garagem. Que fazer? Ir mais de meia hora a pé. Chego no Centro de Saúde: funcionários todos na porta, no lado de fora do prédio. Não há energia e luz. Vantagem do dia: ´obrigado´ a fazer a caminhada matinal de mais de uma hora, ida e volta, verificar os estragos em todo trajeto. Mas sem poder realizar o exame médico.
Como em Santa Emília, que é interior do interior, imaginei: estou na capital das gaúchas e gaúchos, a Porto Alegre dos Fóruns Sociais Mundiais, do Orçamento Participativo, morando quase no Centro, bairros de classe média. Não estou mais nas periferias pobres da Lomba do Pinheiro. Portanto, a luz vai voltar ainda na quarta. Que nada! Chegou a noite, um dia depois da tempestade, não houve alternativa. Coloquei pratos e panelas na mesa, na sacada do apartamento, busquei as velas usadas no presépio de Natal. E jantei sólito, à luz de velas, como nos anos 1950, muitas décadas depois.
Quinta-feira, dia 18, volto ao Centro de Saúde Modelo. Mesmo quadro: funcionários do lado de fora, nada de luz. Passou o dia, chega mais uma noite, e mais um jantar à luz de velas. Descendente de alemães, atento e disciplinado, desliguei as tomadas da geladeira, mas deixei vários botões de luz ligados. De repente, um clarão às 2h40 da madrugada da sexta, dia 19. Viva, a luz voltou! Corro a ligar a geladeira, vou olhar o estado dos moranguinhos trazidos de Santa Emília, se estavam inteiros no congelador, e comíveis.
Mais de dois dias depois do temporal, finalmente a luz. A LUZ!!! Sexta, dia 19, outra caminhada na Tomás Flores e arredores: ainda muitas árvores caídas, os carros não passam em várias quadras. Ou seja, o poder público pouco ou nada fez, em muitos lugares sequer deu as caras. Volto ao Centro de Saúde Modelo. A luz voltou, felizmente, mas é preciso remarcar o exame médico, até hoje, dia 25, mais de semana depois, quando escrevo, ainda não remarcado.
Por toda Porto Alegre e cidades da região metropolitana, continua a falta de luz, com dezena de protestos dos moradores por todos os lados, que não suportam mais tanto descaso e as dificuldades do cotidiano. Os protestos são mais que necessários e justos. Afinal, perde-se a comida na geladeira, há ausência de água, e transtornos de todos os tipos.
Onde estão o governo municipal de Porto Alegre e o governo do Estado? Finalmente, depois de vários dias de inação e caos, os grandes meios de comunicação e o prefeito Sebastião Melo começam a reclamar, mesmo timidamente, da concessionária de energia, privada, de nome CEEE Equatorial, sucessora da quase Centenária e estatal CEEE, Companhia Estadual de Energia Elétrica, cuja privatização apoiaram e fizeram, como se fosse a salvação do mundo. Como ainda hoje aprovam a privatização do DMAE, Departamento Municipal de Água e Esgoto de Porto Alegre. E privatizaram a CORSAN, Companhia Riograndense de Saneamento, e a centenária CARRIS, empresa pública de ônibus, que era referência nacional, ambas a troco de banana. Da mesma forma estão entregando os Parques públicos à iniciativa privada.
Ou seja, afora as consequências cruéis das mudanças climáticas em curso, há outros responsáveis por tudo que aconteceu e está acontecendo. O Estado, as empresas públicas estão sendo destruídos pela lógica capitalista e ultraneoliberal: Estado mínimo, fim das políticas públicas com participação social. A população sofre as consequências.
Os tempos estão difíceis, muitos difíceis, em todos os sentidos. A resistência popular é fundamental. As eleições de outubro e a unidade do campo democrático-popular são necessários, decisivos na conjuntura. Para haver direitos, paz e esperança. E não se precisar mais jantar à luz de velas, a não ser por vontade própria e em clima romântico.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko