Nos últimos meses, diversos prejuízos foram causados à população em decorrência da interrupção e do não restabelecimento em tempo hábil do fornecimento de serviços humanos coletivos básicos, tais como luz e água. O fato de mais de uma localidade nos estados brasileiros permanecer sem esses serviços tornou-se uma constante. Em alguns bairros a realidade apontada costuma se estender por semanas e até meses, emendando-se danos de um evento extremo com os de outro sem uma solução adequada.
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Desastres possuem a capacidade de trazer à luz insuficiências e injustiças. Os eventos extremos decorrentes da variabilidade, da mudança climática, ou de ambos os fenômenos – um potencializado pelo outro –, só externalizam a precaríssima realidade da prestação de serviços públicos essenciais no Brasil, há muito tempo conhecida, porém negligenciada.
Algumas novidades que se apresentam nesse contexto merecem ser consideradas para fins da apuração em termos de responsabilidade do Poder Público e das empresas concessionárias de serviços públicos, em contexto de desastres.
O ambiente em que esta deficiente prestação de serviço está inserida hoje é absolutamente diferente daquele encontrado há uma década. Os eventos extremos estão mais comuns e potentes. Por esta razão, a pergunta correta nesta quadra da história não é mais se irão ocorrer, mas quando.
Diferentes perguntas emergem ou deveriam emergir frente a esta realidade. Uma, contudo, direcionada aos subscritores deste artigo na última semana, retrata bem o senso comum sobre o tema. Com os olhos marejados por uma série de perdas, como bens da residência e animais, uma senhora nos disse: “é triste, mas não tem o que fazer, né?”. É a natureza! Esta fala externaliza não apenas o desconhecimento a respeito de uma série de direitos, mas uma cultura de normalização ou, como preferem alguns, de “naturalização” do desastre, a qual não deve persistir.
De acordo com o art. 37, §6º, da Constituição da República, e entendimento majoritário dos tribunais superiores, é objetiva a responsabilidade das pessoas jurídicas na prestação de serviços públicos, como água e energia elétrica. Isso significa que tanto a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município titular do serviço público – a depender de qual é esse serviço –, como a empresa estatal ou concessionária que o presta poderão ser responsabilizados objetivamente pelos danos que vierem a ser causados em virtude de suas ações em geral, bem como de suas omissões nos casos de descumprimento de dever específico de agir.
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Na responsabilidade objetiva, a pessoa jurídica de direito público ou privado prestadora de serviço público – ex: concessionária – responde pelos danos causados a terceiros, sendo suficiente a prova do nexo causal entre a conduta do prestador e o dano, independentemente do prestador ter agido com culpa ou dolo – é dizer, do elemento subjetivo. Presentes os elementos ensejadores da responsabilidade civil objetiva, a saber, a conduta, o dano e o nexo de causalidade entre um e outro, configura-se a responsabilidade e, portanto, o dever de indenizar. É possível, inclusive, obter o ressarcimento por lucros cessantes, que são os ganhos que a pessoa deixa de auferir em razão de determinado fato – ex: a perda econômica, patrimonial, que a pessoa física ou jurídica experimenta pelo fato de não poder usufruir do imóvel afetado.
Ao menos nos últimos 20 anos o Superior Tribunal de Justiça vem definindo as responsabilidades do Poder Público e das concessionárias prestadoras de serviços públicos essenciais em situações que envolvam interrupções abruptas de fornecimento, dificuldades das empresas privadas de recompor o fornecimento de seus serviços e danos causados a partir do serviço prestado.
Para a Corte, a depender do serviço que é fornecido e da situação em que o dano ocorre, a responsabilidade do Estado titular do serviço público pode ser solidária – REsp 28.222 – ou subsidiária – REsp 1.135.927 – em relação às empresas estatais ou concessionárias que prestam esse serviço em seu nome.
Em casos de fornecimento de água e energia, por exemplo, quando do julgamento do REsp 1.330.027 o STJ aplicou a teoria do “risco administrativo do negócio”, em observância ao entendimento já esposado pelo tribunal. O “risco administrativo do negócio” se trata do risco assumido pela empresa privada ao contratar determinada atividade com o Poder Público, para prestá-la em seu nome, comprometendo-se, dessa forma, a ressarcir os danos provenientes dos “perigos inerentes a sua atividade ou profissão”. No julgamento do REsp 1.095.575, houve reiteração desse posicionamento.
Ainda, no STJ ficou consolidada a posição de que os contratos de fornecimento de água e energia para o usuário final são regidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Considerando a recorrência de desastres decorrentes de chuvas fortes, como os ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul, o julgamento do REsp 1.789.647 possui grande importância, pois trata de dano moral gerado pela interrupção muito longa de fornecimento de energia elétrica pela concessionária em razão dessa espécie de fator climático.
A Corte Superior de Justiça entendeu neste caso que a litigância deveria ser observada a partir do Código de Defesa do Consumidor – CDC –, com aplicação do Código Civil apenas em casos excepcionais. A análise deste tipo de ação pela perspectiva do CDC enseja uma série de regras, sendo a mais proeminente a possibilidade de inversão do ônus da prova. Caso deferida, caberia à concessionária provar que não causou determinado dano ao consumidor ou a terceiros correlacionados. Essa inversão foi praticada pelo STJ quando do julgamento do REsp 896.568, bem como do REsp 1.330.027.
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Há também que se destacar que circunstâncias como as vivenciadas por muitos estados brasileiros nos últimos dias trazem à tona o papel das agências reguladoras em matéria de desastre. É urgente que todas as fases do ciclo – prevenção, mitigação, preparação, resposta e reconstrução – sejam observadas nas regulações. A fase de recuperação, por exemplo, é completamente negligenciada pela maioria absoluta das agências. Diante da nova realidade de emergência social, a atuação destas entidades deve se dar muito além da aplicação de multas, pautando-se por uma orientação adaptativa e de gerenciamento tanto de riscos como de ocorrência de desastres nos respectivos setores.
Sobre o tema, no que tange à energia elétrica, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL – impunha no art. 176 de sua Resolução Normativa nº 414/2010 prazos para restabelecimento dos serviços. Para o STJ, quando do julgamento do REsp 1.789.647, nas situações em que esse prazo fosse extrapolado, o dano moral seria presumido, in re ipsa, pois nelas além de se extrapolar um indicativo de qualidade do serviço, estar-se-ia descumprindo prazos máximos estabelecidos pela agência. Hoje tal previsão pode ser localizada, vigente, no art. 362 da Resolução Normativa nº 1000/2021 da ANEEL.
Ademais, a responsabilidade em realizar investimentos em obras e instalações, a fim de fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos é do ente público titular dos serviços e de quem os presta, neste caso nos limites do contrato entabulado com o ente público titular do serviço.
O atual contexto de perdas e danos vivenciado no Brasil antecipa o que já se sabia. É dizer, o ritmo do processo de mitigação e adaptação ficou aquém ao das mudanças climáticas. Há algum tempo defendemos a necessidade do letramento em matéria de compensação por desastre por antever esta situação. Hoje, sociedade e instituições cada vez mais reconhecem esta como uma questão emergente e necessária. A perspectiva compensatória cresce exponencialmente diante da má-adaptação na prática.
A palavra adaptação, aliás, está muito em voga e tem sido repetida como um mantra nos últimos tempos. Pena que pouco se reflita a respeito do seu significado, que representa ação ou efeito de adaptar. Entre seus sinônimos estão: ajustar, apropriar, conciliar, harmonizar, encaixar, enquadrar.
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Há anos, trabalhos científicos e técnicos especializados defendem a ideia de que a adaptação pode reforçar o desenvolvimento sustentável e até oferecer uma forma de repensar o desenvolvimento à luz das mudanças climáticas. Então, por que ainda estamos neste impasse? A adaptação deixou de ser possível? Não. Na verdade, ela é mais necessária do que nunca, mas deve ser repensada. À medida que o planeta continua a aquecer e os impactos desse processo se tornam cada vez mais evidentes, a adaptação segue sendo imperiosa. No entanto, é importante que ela não seja usada como remendo ou palavra inócua, vazia de planejamento e ação, mas que seja pensada estrategicamente e traga uma mudança nos sistemas que produzem vulnerabilidade.
Apesar das boas intenções, muitas intervenções formais de adaptação até agora reproduzem velhos erros e acabam por piorar a situação. Todo movimento de incredulidade, não observância do pior cenário possível, e insuficiência no desenvolvimento de uma estrutura e governança voltadas às novas necessidades sociais, especialmente na prestação dos serviços públicos, representa um círculo vicioso. Como consequência, potencializa-se o litígio.
Adaptar-se diante de eventos extremos envolve ajuste ao clima futuro esperado. Isso significa trabalhar com padrões atuais de previsibilidade e cientificidade que, se forem considerados por um compliance atualizado, levam em consideração riscos climáticos e impacto financeiro, apontando uma gestão adaptativa de verdade como a mais econômica.
O objetivo do processo de adaptação deve ser reduzir ou mitigar os riscos e se preparar para os impactos decorrentes dos efeitos nocivos das mudanças climáticas – como a subida do nível do mar, fenômenos meteorológicos extremos mais intensos ou insegurança alimentar –, mas inclui também aproveitar ao máximo quaisquer potenciais oportunidades benéficas associadas a estes cenários – considerar opções de financiamento climático, nova leitura de institutos tradicionais do direito, adaptando-os à realidade climática, entre outros.
Nesse âmbito, cabe lembrar que o outro lado do desastre é a oportunidade. Uma das maiores neste momento é a de levar a sério o fato de que serviço público está submetido ao regime de direito público, portanto, deve obediência aos princípios de Direito Administrativo definidos, no texto constitucional, de forma expressa ou implícita. Sendo assim, quem os preste, Estado ou a iniciativa privada, deve observar os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Também com base no princípio da continuidade, a prestação de serviços públicos não deve sofrer interrupção, de forma a evitar colapsos nas múltiplas atividades particulares. Não é razoável, tampouco proporcional, que a cada temporal o cidadão fique sem água, luz, acesso a hospitais. Este princípio deve estimular o prestador ao aperfeiçoamento e à extensão do serviço, recorrendo a tecnologia moderna de forma a adaptar a atividade às novas exigências sociais. Impossível mencionar a continuidade sem destacar o princípio da eficiência. Uma das formas de tornar clara a real possibilidade de entendimento sobre a eficiência é quando ela é analisada de maneira conexa aos demais princípios constitucionais da Administração Pública. E o liame entre tais princípios se dá através de um princípio constitucional, que apesar de implícito é o mais importante: a finalidade pública.
Em uma acepção ampla, a finalidade pública se refere à exigência de um resultado de acordo com o interesse público. Nessa linha, apresenta-se indubitável que a atuação daquele que presta serviço público essencial, em todos os atos de gestão, deve respaldar-se por uma finalidade pública condicionada pelo ordenamento positivo – que é o receptáculo das decisões democráticas. E esta finalidade, no contexto do regime jurídico-administrativo brasileiro, é vinculada, entre outros condicionantes, pela presença do princípio da supremacia do interesse público.
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A insuficiência na prestação do serviço público é um dos pontos que mais carece de atenção no processo de adaptação dos próprios entes federados. É o que apontam dados da plataforma AdaptaBrasil, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), quanto à capacidade adaptativa dos municípios às mudanças climáticas. Conforme se pode observar, 66% dos municípios brasileiros (gráfico abaixo) têm baixa ou muito baixa capacidade de que seu sistema socioecológico se ajuste a possíveis desastres geo-hidrológicos de inundações, enxurradas e alagamentos. Cabe lembrar que este tipo de evento representa apenas um dos riscos típicos do Brasil, porque os riscos climáticos englobam uma série de outros impactos como em recursos hídricos (seca), saúde (epidemias), segurança energética, entre outros.
Há um Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil e a previsão de uma estratégia nacional e planos setoriais de adaptação em curso no âmbito do governo federal.
Espera-se que tanto os indicadores quanto o planejamento envolvendo adaptação sejam tão robustos quanto necessários, tendo em vista os riscos climáticos. É imperiosa visão e prática mais audaciosas, que considerem o real custo de um processo de adaptação, observem cenários de curto, médio e longo prazo, e adotem a melhor ciência disponível, tendo em conta as vulnerabilidades específicas de cada setor.
* Fernanda D. L. Damacena, Advogada. Profª de Direito ([email protected]) e Lucas do Nascimento, Advogado. Prof. de Direito ([email protected])
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora e do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko