"Para quem me pergunta, e aí, qual é o destino da sua viagem? Eu responderia: o meu destino realmente está prestes a me alcançar. Está por ir, por vir, por me achar, por se perder. O meu lugar de chegada nessa viagem é Venezuela, sim. Venezuela é um dos meus destinos, mas também tem outro, outros, vários, inomináveis, invisíveis, pequenos, grandes, surpreendentes, paisagem, bicho, mato, gente, cheiro de manga rosa com cheiro de mar no meu pé descalço. Uma nuvem, uma música, uma ideia.”
A fala acima é uma das últimas divulgadas pela artista de rua, cicloviajante, imigrante venezuelana Julieta Hernández, 38 anos. Conhecida como Miss Jujuba, ela viajava pelo Brasil de bicicleta espalhando sua arte. Estava a caminho de seu país de origem quando desapareceu no dia 23 de dezembro, no município de Presidente Figueiredo, a 117 quilômetros ao norte de Manaus, no Amazonas. A próxima parada seria em Rorainópolis, Roraima.
No primeiro sábado do ano, a polícia encontrou Julieta sem vida dentro de uma mata. Ela foi estuprada, assassinada e teve seu corpo queimado por um casal, que confessou o crime. O corpo de Julieta foi sepultado nesta sexta-feira (12), em Puerto Ordaz, no estado de Bolívar, nordeste da Venezuela. A cerimônia contou com a presença de amigos, familiares e movimentos culturais do país, que prestaram as últimas homenagens. A primeira bicicleta usada por Julieta foi colocada ao lado do corpo durante o velório.
No mesmo dia, ao menos 160 cidades pelo mundo realizaram ato em homenagem à Julieta. Manifestações foram registradas em países como França, Argentina, Portugal, Uruguai, México e Brasil. Em Porto Alegre, ciclistas se reuniram no Largo Zumbi dos Palmares no fim da tarde desta sexta-feira (12). Pelotas, Viamão, Garibaldi e Gramado também tiveram manifestações.
Para além da bicicleta
“O meu destino está pouco mais de 30 quilômetros, daqui a um passo de distância, ou um segundo de tempo sei lá. Meu destino também é aqui e agora, impossível, insólito vertiginoso. Em espanhol, em português, em portunhol. Fascinante, único, tímido, preenchido de incertezas, afagos, afetos, choros paixões, solidões, dúvidas.” Julieta Hernández
:: 'Bicicletada' em Porto Alegre homenageia Julieta Hernández, artista venezuelana morta no AM ::
Com narizes de palhaço, caras limpas ou pintadas, centenas de pessoas, mulheres, homens, crianças, políticos, artistas circenses, movimentos sociais, e arte em geral, de bicicleta e a pé se reuniram no Largo Zumbi dos Palmares, no final da tarde da última sexta-feira (12) para prestar homenagem a artista venezuelana. A atividade foi organizada por mais de 20 coletivos gaúchos.
A pedalada da Capital partiu por volta das 20h. Em seguida, foi realizada uma roda cultural, com palco aberto. O roteiro da pedalada seguiu pelas ruas José do Patrocínio, Venâncio Aires, Erico Verissimo e João Alfredo, retornando ao Largo. Um picadeiro a céu aberto, como se apresentava Julieta, foi montado para as performances.
Uma das apresentações mais emocionantes foi feita por um grupo de palhaças, que no final colocaram o áudio de Julieta, que tinha como fundo a música Anunciação, de Alceu Valença.
“Infelizmente, com muita dor, Julieta não chegou ao seu destino junto de sua família no seu país natal. Mas que os momentos que viveu antes do ocorrido brutal que lhe tiraram sua vida, mas não apagaram sua luz sigam ecoando e servindo de exemplo de coragem, alegria e ação”, afirma Maia Rubim, integrante do grupo Pedal das Gurias.
A vida e o amor são mais fortes
A artista, estudante de Psicologia e cicloativista argentina Layla Micaela Garay, aos 26 anos realiza sua primeira viagem fora de seu país, sozinha e de bicicleta. Ela soube da noticia da morte de Julieta quando atravessava a fronteira, San Tomé/São Borja e se indagou se deveria voltar para casa ou continuar a viagem.
“Escolhi continuar e levantá-la como a bandeira do mundo que quero construir e habitar. Com sensibilidade à flor da pele, aqui estou, sendo mulher, ciclista e artista de circo. É uma responsabilidade habitar, construir uma rua cuidada.”
:: 'Julieta presente!': ciclistas homenageiam artista em pedaladas no Brasil e no exterior ::
Abalada com a tragédia, Layla não pensa em desistir de seu objetivo, de assim como Julieta, levar arte para as ruas. “É ainda muito triste. Agora é muito mobilizante, reuniu cicloviajantes, artistas de circo, artistas em geral, palhaços e muitas pessoas de mundos distintos, que se encontravam também no mundo de Julieta. Ela era uma artista de rua, e na rua se encontra todo mundo.”
“Essa homenagem me emociona muito. Eu me identifico muito com a história de Julieta. Me emociona muito ver como a arte muda a vida das pessoas, impacta, faz que tantas pessoas estejam se reunindo agora para se manifestar alegremente pela lembrança de uma pessoa que tanto sorriso provocou pela vida inteira. Esse ato é a melhor forma de homenagear os passos dela pela terra”, declara a artista circense não binária, cicloviajante e imigrante, assim como Julieta, Toto, natural da Argentina.
:: 'O problema não é viajar, é ser mulher': viajantes solo associam violência ao machismo ::
Toto comenta que conheceu vários países latino-americanos que sentiu que é uma situação difícil em todas as partes. “Sempre que decidimos e fazemos escolhas de viajar sozinhas é muito difícil, muito questionado, tanto pela sociedade, quanto pela gente mesmo que acha que não vai conseguir. Mas uma vez que a gente consegue, que bota o pé na rua, que bota a bicicleta na estrada, é incrível, emancipador, uma liberdade. É um sopro de ar que enche o pulmão e te faz sentir que tu consegue fazer o que quiser. O que precisamos para ter segurança é ter amigas, amigues, uma rede que nos acompanha, nos fortalece, que nos cuide."
Segundo dados de 2019 do ranking Women Danger Index, o Brasil é o segundo lugar do mundo mais perigoso para mulheres viajarem sozinhas, perdendo apenas para a África do Sul. O levantamento considera e compara estatísticas de feminicídio, assédio, segurança e serviços. Em outro estudo, feito pela Money Transfer em 2023, o Brasil aparece como o terceiro destino mais perigoso, atrás da África do Sul e do Peru.
De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania não há um levantamento do número de feminicídios contra mulheres que viajam sozinhas no país, apenas de feminicídio em geral.
“Essa homenagem é para um acontecimento terrível que iniciamos 2024. Mas uma homenagem potente para dar visibilidade à luta da vida das mulheres, especialmente as mulheres que buscam lidar com a vida em liberdade, levando arte. Julieta era uma mulher sem fronteiras. E a gente sabe que as mulheres que enfrentam a vida com coragem, ainda encontram as amarras de uma sociedade patriarcal, machista e violenta contra elas”, expõe a coordenadora do escritório do Ministério da Cultura no Rio Grande do Sul, Mariana Martinez.
Ela destaca que diante da realização da Conferência de Cultura, que terá como tema democracia e direito à cultura, a questão da violência contra as mulheres é uma reflexão importante. “Não teremos democracia enquanto as mulheres não tiverem segurança de ir e vir com total liberdade. Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”, frisa.
Mariana levou sua filha de nove anos ao ato e explicou para ela o motivo do ato. “Porque o mundo é um lugar perigoso para as mulheres viverem em tamanha liberdade. Nossa militância diária é para construir um mundo melhor para a mulher e um mundo melhor para as mulheres é um mundo melhor para todos.”
A jornalista Leticia Leszczynski também levou seu filho de nove anos, Érico. “Eu tenho um filho, homem, menino e ele estava me questionando: ela morreu no Amazonas, é longe daqui por que vamos estar fazendo aqui? Nós vamos ir porque é importante para nossa segurança para daqui por diante, para que meus filhos e as filhas dos meus filhos possam ter mais segurança. Não é só por justiça, porque já sabe quem foi, as circunstâncias, é para ficar claro para que o mundo saiba que queremos andar livres”, afirma.
Emocionada ela reverbera o pedido “Parem de nos matar”. “Em pleno 2024 estamos aqui tendo de bradar por segurança. É importante estarmos aqui mobilizadas pela arte, para gente ter liberdade de expressão, liberdade de movimento, que a gente possa ir e vir onde a gente quiser.”
Miss Jujuba foi vítima de feminicídio, crime que em 2022, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, vitimou 1.437 mulheres. “Temos que parar e pensar no feminicídio. É um momento duro de falar, mas temos que dizer. Somos o 5º país em índice de feminicídio”, destaca a presidente da Associação de Circo do Rio Grande do Sul (Circo Sul), Consuelo Vallandro.
“Muita gente dever ter dito: Julieta não vai, não viaja sozinha porque você corre risco, assim como a gente ouve das amigas, amiga não sai sozinha na rua. Mas por que a gente ouve isso? Porque simplesmente não fazemos nada para mudar. Precisamos mudar não só a cabeça dos homens, mas das mulheres. Temos que gritar pare de nos matar”, complementa. De acordo com Consuelo a organização pensa em fazer um manifesto.
Conforme Maia, Julieta era solidariedade e fé na construção coletiva. “Com sua determinação levou a palhaçaria e alegria a cantos do nosso país em que muitas vezes direitos básicos como água não chegam, e o fez por acreditar na transformação de uma sociedade igualitária através da coletividade e ação direta”, ressalta.
Para ela, por conta do seu ativismo, companheirismo e caráter, possibilitou a repercussão rápida da rede de apoio nacional. “É importante que nos olhemos nos olhos, e que possamos acolher um aos outres nesse momento de dor! A vida e o amor são mais fortes!”, finaliza.
“Meu destino é no colo da minha mãe. Mas também é, às vezes, em outros colos, quem sabe eu ser colo de alguém é também meu destino. Por isso quando alguém me pergunta qual é o destino de sua viagem, eu encolho os ombros, dou uma inspiração profunda e sorrindo, respondo, Venezuela. Porque talvez ninguém esteja preparado para imaginar que é possível caber tanta palavra dentro de um destino”. Julieta.
Edição: Katia Marko