O destino do século XXI parece estar em jogo em nossa região
Fazer um balanço das relações estratégicas ocorridas no ano de 2023 entre países latino-americanos e o Oriente Médio é uma tarefa que não cabe em um artigo de análise. No texto que segue vamos colocar atenção aos eventos ocorridos na Argentina, Bolívia, Venezuela e Brasil em âmbito multilateral.
Argentina fora dos Brics: a maior das derrotas
Em 22 de dezembro de 2023 o recém-empossado presidente argentino Javier Milei reforçou em carta oficial o que já havia sido anunciado por sua chanceler, a banqueira Diana Mondino. O primeiro escalão da extrema-direita do maior parceiro comercial latino-americano do Brasil anunciou “outra orientação em sua política externa, diferindo do governo anterior de Alberto Fernández”. Ao não aderir como membro pleno do bloco dos Brics — cujo convite partiu do Brasil —, a Argentina consolidou assim o maior dano de então às relações entre América Latina e Oriente Médio. O “novo muro de tijolos” teria uma lógica própria para sua expansão, operando na conta petróleo e através do Sul Global, centrado, ao menos no momento, no Oriente Médio.
Os demais novos membros são: Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Com a desistência da Casa Rosada sob orientação neoliberal e colonizada, são cinco países aderentes, dos quais quatro com aliança explícita junto aos Estados Unidos há pelo menos quarenta anos. Fora o Estado persa, os demais se aproximaram da Casa Branca, tanto no período da Guerra Fria no mundo árabe, como após vergonhosas traições e golpes de Estado, como é o caso do Egito e da Etiópia.
Para o “cálculo da desdolarização”, a Argentina não aderir é uma perda considerável. No espaço geográfico latino-americano e especificamente no Cone Sul, perdemos uma chance histórica de inaugurar um fluxo contínuo de mercadoria e novos capitais financeiros, desdolarizado, balizando contratos em yuan e materializando uma nova arquitetura fiscal.
Uma das razões declaradas para não aderir supera o sionismo convencional, hegemônico nas elites políticas argentinas, e o neocolonialismo, majoritário na classe dominante do país, indo ao encontro do pior do chauvinismo político. Não por acaso, na recusa para filiar-se aos Brics, Buenos Aires chegou a afirmar que seria “impossível” entrar em uma aliança com a presença de um inimigo estratégico do Estado sionista, em referência a Teerã. Milei diz “estudar” o judaísmo há anos e tenta formalizar sua conversão. Seu posicionamento vai de encontro à recente aliança da extrema-direita estadunidense e o pacto entre neoconservadores e tele-evangelistas (neocon-telecon), advindo da década de 1990, ainda no final do governo de Bush pai. Javier Milei, em sua construção de personagem caricato, se insere neste campo como um discípulo do rabino nova-iorquino Simon Jacobson.
O ex-economista-chefe da empresa Aeropuertos 2000, parte do conglomerado Corporación America — comandado pelo bilionário Eduardo Eurnekian, o quinto mais rico da Argentina — foi projetado por um conjunto reduzido de empresários, conhecido como Círculo Rojo, incluindo seu coordenador de campanha, o gerente do fundo Blackrock para a América Latina, Darío Epstein. Nas duas visitas à Nova York realizadas por Milei em 2023, líderes empresariais — “coincidentemente” também acólitos de Jacobson e de sua liderança no movimento Chabad-Lubavitch — estiveram presentes. Igual influência operou na escolha da representação diplomática argentina em Washington. Como se não bastasse, Benjamin Netanyahu convidou Milei para visitar os territórios palestinos ocupados em 1948, sob controle estrangeiro desde então. De sua parte, o novo presidente argentino, tal como Horacio Cartes — sócio do doleiro brasileiro Dario Messer —, se comprometeu em transferir a embaixada argentina para Jerusalém ocupada.
O rabino que fez Javier Milei “chorar” revelou que: “Quando uma pessoa ganha uma eleição, além de haver questões de políticas de campanha, há sempre uma coreografia misteriosa. Nestes momentos estranhos em que vivemos, com o que aconteceu na Ucrânia e o ataque terrorista do Hamas, é muito raro que um estranho ganhe desta forma e se torne uma figura tão importante”.
Definitivamente a vitória eleitoral de Milei e a ascensão da extrema direita na Argentina implicou na recusa de ingresso como membro pleno dos Brics, resultando na maior das derrotas para as relações latino-americanas com os países do Oriente Médio até então.
Bolívia e Irã: aproximação estratégica intermediada por China e Venezuela
Em julho de 2023 os governos da Bolívia e do Irã realizaram uma série de acordos em Teerã e na sequência houve uma visita formal de autoridades iranianas à cidade de La Paz. Embora não tenha sido revelado o teor do memorando de entendimento e seu cronograma de execução, algumas conclusões já podem ser tomadas. O início das conversações de alto nível se deu entre os presidentes Luis Arce e Ebrahim Raisi, em uma reunião bilateral realizada em setembro de 2022, nos bastidores da 77ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).
O acordo assinado pelo ministro boliviano da Defesa, Edmundo Novillo Aguilar, e seu homólogo iraniano, Mohammad Reza Ashtiani, foi além de cooperação em segurança e defesa para incluir desenvolvimento científico. Como é sabido, a indústria aeroespacial e eletrônica do Irã é bastante avançada e suas aeronaves não tripuladas (drones) já são utilizadas por 22 países. Considerando que a Bolívia é rica em minerais estratégicos, incluindo lítio — sendo parte do Triângulo deste mineral, concentrando 60% das reservas mundiais conhecidas junto a Argentina e Chile —, é de se esperar o avanço em cadeias de valor e benefícios. O mesmo já ocorre no convênio da YLB (Yacimientos de Lítio Boliviano, a estatal específica do país) e a joint venture com o consórcio chinês liderado pela empresa Contemporary Amperex Technology (CATL), a CMOC Group e a Guangdong Bangpu Cycle Technology, também da China.
Desta forma, a Bolívia atrai atenção (e vigilância) do Departamento de Estado e do Comando Sul, sobretudo por sua aproximação a economias fortalecidas na Ásia e Eurásia e a determinação em gerar indústrias de beneficiamento em áreas estratégicas, como no comércio de minerais raros. Outro fator importante na relação entre o governo Arce e o Irã é a tradição de ambos na indústria petrolífera, podendo implicar em futuros acordos entre a YPFB (estatal de petróleo e derivados boliviana) e sua correspondente iraniana, a NIOC.
Relações entre Venezuela e Turquia
Outra importante aproximação entre América Latina e Oriente Médio se deu através do incremento das relações da Venezuela com a Turquia. Em junho de 2023 o mandatário venezuelano Nicolás Maduro realizou uma visita oficial e teve reuniões de alto nível em Ancara, junto ao presidente turco Recep Tayyip Erdogan.
Segundo a agência oficial turca TRT, na conferência de imprensa conjunta realizada na capital turca, Erdogan disse que seu país “sempre apoiou a Venezuela” e que “continuará a fazê-lo no futuro”. Observou também que há muitos campos em que ambos os países podem aumentar sua colaboração, incluindo comércio, energia, mineração, construção, saúde e turismo.
“O nosso volume de comércio com a Venezuela foi de cerca de US$150 milhões em 2019. Duplicamos este índice em 2020 e aumentamos para US$850 milhões em 2021”, disse Erdogan, ao reiterar que o objetivo do seu governo é aumentar o valor a US$3 bilhões num futuro próximo. Em 2023, a meta foi de fato alcançada.
Os dois líderes estiveram presentes na cerimônia de assinatura de três acordos bilaterais sobre turismo, agricultura e economia antes da conferência de imprensa. O giro de Maduro pelo Oriente Médio também incluiu uma visita a Arábia Saudita. Ambos os Estados têm uma proximidade histórica em função de serem membros plenos da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)
Adesão do Brasil ao grupo OPEP +, coordenado pela Rússia e aliado da OPEP
No final do mês de novembro de 2023, outro movimento das relações estratégicas entre América Latina e Oriente Médio se deu através de uma iniciativa multilateral. Após a garantia de ingresso de produtores de petróleo e derivados como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã — além de Etiópia, Egito e o recuo da Argentina — ao bloco dos Brics, um convite inverso também adveio.
O Brasil foi convidado a aderir ao consórcio conhecido como OPEP+, composto por Rússia, México, Cazaquistão, Omã, Azerbaijão, Malásia, Bahrein, Sudão do Sul, Brunei e Sudão. Junto aos membros da OPEP — além dos novos aderentes aos Brics, incluindo Venezuela, Congo, Gabão, Guiné Equatorial, Líbia, Argélia, Nigéria, Angola e Kuwait —, ambas alianças controlam efetivamente o volume de produção e preços dos barris de óleo cru, lutando permanentemente contra os índices especulativos dolarizados, o Brent e o WTI. Com a entrada do Brasil, a posição dos Estados Unidos se enfraqueceu consideravelmente enfraquecida e o OPEP+ adquiriu capacidade de ampliar suas operações sem o uso do dólar, conforme uma definição estratégica do grupo dos Brics.
Conclusão
O movimento pendular da política externa junto a América Latina, por parte de países do Oriente Médio, membros dos Brics, OPEP ou pivôs geopolíticos como a Turquia, implica em grande oportunidade de desenvolvimento de novas cadeias de alto valor agregado, assim como a conversão de excedentes em avanço técnico-científico. Este é o pêndulo positivo.
Por outro lado, o jogo de força contra o sionismo e a projeção de poder dos Estados Unidos no Oeste da Ásia é colocado no centro das atenções latino-americanas, sobrepondo as iniciativas do Império para a América Latina, podendo inaugurar uma nova etapa de golpes de Estado, operações de lawfare, espionagem e desestabilização de nossas sociedades.
O destino do século XXI parece estar em jogo em nossa região.
* Este artigo foi originalmente publicado no portal Monitor do Oriente Médio
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** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira