Rio Grande do Sul

Coluna

As mudanças climáticas e o racismo ambiental em Porto Alegre

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"Quando eventos climáticos extremos ocorrem, como enchentes, são os pobres das cidades que mais sofrem" - Foto: Jorge Leão
A cidade clama por políticas públicas e líderes comprometidos em assegurar o direito à cidade

Há um consenso na comunidade científica, na imprensa e mesmo no senso comum, de que as mudanças climáticas se aceleraram e têm impactado muito fortemente as cidades brasileiras. Da mesma forma, documentos de Direito Internacional como a Nova Agenda Urbana e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, não apenas admitem que nosso modo de produção e consumo redundou na crise climática, como recomendam fortemente a adoção de medidas para aumentar a resiliência dos territórios urbanos.

No caso brasileiro, pesquisas começam a ser desenvolvidas em diferentes municípios e o próprio Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles publicou recentemente um artigo aqui no Brasil de Fato salientando notáveis diferenças de temperatura, em um mesmo horário, em diferentes locais da capital dos gaúchos. A pesquisa ali apresentada demonstrou que o entorno da Redenção, por exemplo, em função da vegetação, é mais fresco que o entorno da Rodoviária, onde há maior presença de asfalto e concreto, em que pese tais áreas estarem, em linha reta, a pouco mais de um quilômetro de distância.

Aqui pretendemos aprofundar esse debate para discutir uma questão de justiça ambiental diante dessas diferenças de temperatura experimentadas pela população de Porto Alegre, muito especialmente a de menor renda. A análise cuidadosa das variáveis socioeconômicas revela disparidades alarmantes, com comunidades mais carentes sendo bem mais afetadas pelas ondas de calor extremo, principalmente em bairros negros como Partenon, São José e Restinga. De fato, a ausência de investimentos em equipamentos e infraestrutura nas periferias, a não adoção de planos especiais e políticas públicas capazes de tornar a cidade mais resiliente às mudanças climáticas, agrava profundamente as  desigualdades estruturais pré-existentes no território da cidade, em um fenômeno que, sem exagero, pode ser denominado de racismo ambiental.

Os últimos governos municipais, incluído o atual governo liderado por Sebastião Melo, tem negligenciado a necessidade de expandir a rede de tratamento e fornecimento de água em regiões da Lomba do Pinheiro, da Restinga, de Belém Novo e de outros bairros localizados no extremo sul da cidade, o que tem redundado em longos períodos de falta de água na região. O racismo ambiental se revela de forma brutal nessa distribuição desigual dos serviços públicos municipais e estaduais. Enquanto bairros como Bom Jesus, Sarandi e Intercap enfrentam simultaneamente falta de água e luz, às vezes por vários dias consecutivos, é forçoso reconhecer que a mesma falha só raramente ocorre em bairros mais privilegiados, como Bela Vista ou Moinhos de Vento e, em tais casos, as equipes municipais e estaduais priorizam o atendimento a essas regiões, perpetuando a desigualdade econômica e a exclusão socioespacial.

Enquanto a elite econômica desfruta de bairros arborizados e condomínios fechados, as periferias carecem de áreas verdes e de locais dotados de sombra, resultando em mapas térmicos que variam até cinco graus em diferentes regiões da cidade. Enquanto os mais privilegiados têm recursos como ar-condicionado e piscinas para enfrentar o calor, a população de menor renda vive em habitações sem conforto térmico, incapazes de oferecer qualquer alívio nesse clima escaldante. Enquanto parques como o Moinhos de Vento são alvo de investimentos frequentes na melhoria de sua estrutura, bairros como a Restinga são desprovidos desses equipamentos e a Redenção, o maior e mais popular parque da cidade, é alvo de abandono e não oferece sequer bebedouros e sanitários para os frequentadores. Talvez estas carências estruturais da Redenção se voltem à tentativa de privatizar essa importante área verde, o que só reforça o racismo ambiental das políticas públicas do atual governo municipal.  

O sociólogo Pierre Bourdieu, em estudo realizado na banlieu parisiense, observou que em uma sociedade hierarquizada não há espaço habitado que não seja igualmente hierarquizado. No Brasil essas hierarquias espaciais remontam ao período colonial e aos séculos de escravização do povo negro e, perversamente, esse legado trágico se atualiza hoje sob a forma de exclusão sócio territorial  e racismo ambiental. A injustiça climática se materializa de forma avassaladora nas periferias, nas quais a população de menor renda, em sua grande maioria negra e parda, vive em áreas impróprias para moradia, à margem de cursos d'água, em locais alagáveis e/ou suscetíveis a deslizamentos de terra.

Quando eventos climáticos extremos ocorrem, como enchentes, são os pobres das cidades que mais sofrem, perdendo tudo sob a força das águas e ficando à mercê de doações e de ações governamentais  para enfrentar a calamidade pública. A injustiça ambiental, no entanto, também se manifesta em condições de calor excessivo como as que vivenciamos na região metropolitana de Porto Alegre em dezembro de 2023, com uma crueldade adicional: a falta de destaque midiático para o sofrimento de quem enfrenta temperaturas insuportáveis sob um telhado de zinco capaz de elevar a sensação térmica a 50 graus em uma moradia precária e, muitas vezes, desprovida de janelas ou aeração adequada.

Ficar sem água em meio a uma onda de calor anormal é uma tortura física cruel, privando os mais pobres de um recurso vital para a sobrevivência. A privatização dos serviços de água, proposta por Sebastião Melo para a autarquia antes referência em atendimento universal, só agravaria essa situação, sujeitando-a aos interesses de um grupo que optou por governar para poucos.

O racismo ambiental será um tema crucial no debate eleitoral de 2024. A cidade clama por políticas públicas e líderes comprometidos em assegurar o direito à cidade para todos, todas e todes. Transformar essa realidade exige esforços coletivos para criar um ambiente mais equitativo e resiliente, onde tanto a cidade quanto cada cidadão possam enfrentar os desafios climáticos com dignidade.

* Betânia Alfonsin – Pesquisadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles e Diretora de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.

** Alexandre Cruz – Jornalista e membro do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.

*** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Marcelo Ferreira