Rio Grande do Sul

Coluna

Com qual democracia sonhamos em 2024?

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"Podemos chamar os atuais regimes políticos de democracias? Ou se trata de um grande simulacro, um jogo previsível de manutenção de poder das oligarquias globais? " - Foto: Lara Werner
É preciso questionar como e do quê são feitas as democracias contemporâneas

Iniciamos o ano de 2024 do calendário gregoriano - este modo de contar o tempo da maneira mais hegemônica e colonizatória possível - nos perguntando, com assombro, que democracias são essas que experimentamos. Quem não está assustadx não está informadx. Talvez devêssemos chamar o atual estado das coisas com outros nomes, mais precisos, e preservar o sentido da democracia ao que ainda queremos construir. Porque votamos, podemos chamar os atuais regimes políticos de democracias? Ou se trata de um grande simulacro, um jogo previsível de manutenção de poder das oligarquias globais? Como se posicionar neste jogo?     

Necessitamos, com urgência, nos dedicarmos à tarefa urgente de nomear as violências que caracterizam a contemporaneidade como um antídoto à normalização da barbárie, com o mesmo esforço com que os povos originários têm sustentado a existência de suas próprias línguas ao longo de séculos de colonização. Pois é a possibilidade de existência da palavra que, sumamente, pode diferenciar a experiência política do silenciamento característico dos regimes autoritários. Estejamos alertas, portanto, aos eufemismos cotidianos: a plenitude de direitos segue exclusiva, unicamente, às castas detentoras do capital.

Se o governo de um país decidir empreender um conflito armado e obrigar um cidadão ou cidadã a servir ao exército que explicitamente pratica um genocídio, e este se recusar, será preso. Estará sob cárcere e custódia do Estado, ou seja, submetido a tortura. Não há a possibilidade de escolha, sendo que todos os anos da pena poderiam ser dedicados ao trabalho social, aquele se converte em ações que visam ao bem comum, ou às pessoas mais necessitadas. Podemos chamar isso de democracia?

Se um pároco que dedicou toda a sua vida às causas sociais, que cuidou de centenas de crianças órfãs durante os duros anos de epidemia da Aids, e nas últimas décadas é uma referência nas práticas de assistência à população em situação de rua, sofre a ameaça de ser alvo de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que pretende, tal como nos regimes militares, submetê-lo a horas de interrogatórios desconexos - portanto, tortura - para o gozo sádico de uns tantos, podemos chamar isso de democracia?

Se jornalistas, parlamentares, ambientalistas, lideranças comunitárias, intelectuais e cientistas precisam sair de um país, em uma rota de auto-exílio para protegerem suas vidas, quando consegue ser eleito um candidato de qualquer partido e o efeito disso é o aumento da violência social, especialmente por grupos de orientação fascista, podemos chamar isso de democracia?

Se um presidente eleito e empossado há menos de um mês decreta um pacote que altera direitos garantidos constitucionalmente e leis resultantes de mais de uma década de construção social de marcos pioneiros e, sendo ele economista, pretende implantar uma política econômica e social de Estado mínimo (ou anarcocapitalismo) que condena a população à fome, podemos chamar isso de democracia?

Eufemismo, ironia e antítese são figuras de linguagem, modos de comunicar, próprios das gestões neoliberais de extrema direita. A suposta neutralidade está coalhada delas. Genocídio vira operação militar, privatização vira liberdade individual, ditadura vira protocolo de segurança, pandemia vira uma gripezinha. Assim como um Ministério de Direitos Humanos vira Ministério do Capital Humano: não se trata de mera mudança de nomenclatura, mas a própria concepção de humanidade que se torna alvo de disputa. Contra toda a demagogia, os feminismos - transfeminismos, ecofeminismos, feminismos comunitários - têm inscrito no léxico novas palavras para abarcar a extensão dos danos: magnifeminicídio, travesticídio, terricídio, memoricídio. Palavras de denúncia são palavras de luta: que nos apropriemos delas, desde as periferias, dos territórios onde a democracia falha, sempre tarda ou nunca chegou.

Sou da geração que viu Diretas Já e as primeiras campanhas eleitorais pela televisão, que conviveu com familiares de desaparecidxs políticos e sobreviventes da ditadura militar, que viu a guerra do Kwait sendo noticiada enquanto ia para a escola, e hoje presencio o linchamento parlamentar do padre Julio Lancelotti e o genocídio do povo palestino pelas redes sociais. Talvez diferentemente das gerações anteriores, que souberam das torturas a posteriori, estamos testemunhando as grandes atrocidades do nosso tempo de maneira síncrona.

Estejamos atentes ao que os movimentos sociais, organizações e instituições na Argentina respondem ao presidente empossado, e quanto tempo ele dura. Sobre democracia, nos ensinam muito mais os Caracoles Zapatistas e a lucidez de las Madres y Abuelas de la Plaza de Mayo do que as eleições de Milei e Bolsonaro. Porque, nas democracias, não deveriam ser toleradas atitudes autoritárias e que retrocedam os direitos fundamentais.

Nossas respostas precisam ser rápidas e cada dia mais coletivas, para acompanhar o ritmo frenético dos ataques da extrema direita. Desarmar a barbárie tornada espetáculo antes de que a propaganda simbólica alcance seus efeitos. É uma batalha extenuante, que nos demanda corpo físico, espiritual e simbólico. Disputemos todos os sentidos, os nossos territórios tanto físicos quanto de linguagem. Sejamos comunidade.

Vivemos tempo suficiente para constatar que neoliberalismo e direitos humanos são paradigmas antagônicos, impossíveis historicamente de se conciliar. É preciso questionar como e do quê são feitas as democracias contemporâneas. E se são democracias. Tarefa-promessa para 2024 e os próximos anos, vida afora, com a perspectiva das, des e dos que vêm de baixo e das margens, ligadxs à Terra.

* Benke Yelene é ativista por direitos humanos

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira