Neste momento o mais importante é dar início a amplo processo de conscientização nacional
O Lula fala e não apenas entendemos como nos vemos convocados a contribuir para contenção da degradação que assola o país.
Mas a que é mesmo que ele se refere, quando usa esta expressão?
Degradação da democracia, dos costumes, do projeto de nação? De tudo um tanto?
Na verdade, o chamado não está claro. Então, deve valer a pena alguma reflexão a respeito disso.
Vejamos de início a questão da recuperação daquelas áreas degradadas que desafiam uma ação inovadora por parte de ministérios preocupados com a produção agrícola e a proteção ambiental.
Aparentemente as áreas degradadas que Lula encara como oportunidades para expansão do agro, sem destruição das últimas florestas, compreenderiam territórios onde a guerra do capitalismo contra a natureza já matou a vida do solo.
Isto seria válido tanto para regiões de mineração como para aqueles locais já esterilizados ou a caminho disso, pelo avanço das explorações do agronegócio predatório, internacionalizado e de larga escala. Vejam que Lula fala de 30 milhões de hectares degradados, que estariam por ser recuperados, para expansão do agronegócio. Como seriam recuperados? Pela agroecologia? Pelos bioinsumos? Pela reforma agrária? Pelas novas técnicas do velho agronegócio? Em que prazo e com que recursos?
Ademais, isso de recuperar áreas degradadas pelo agronegócio para atender necessidades de expansão do agronegócio não parece fazer muito sentido. Afinal, a degradação territorial que se expressa pelo avanço da desertificação, da morte dos rios e do estreitamento da capacidade produtiva dos solos, não está sendo historicamente causada por este modelo de agronegócio que os planos safra financiam?
A aprovação do "Pacote do Veneno" e outras exigências dos representantes deste agronegócio, com suas implicações sobre a saúde dos ecossistemas, o envenenamento das águas, a expansão de injustiças e as ameaças de desabastecimento alimentar, estariam sendo consideradas na equação de recuperação?
Além disso, este tipo de degradação territorial não colabora com o aquecimento global, provocando o esvaziamento de capacidades e inteligência adaptativas e agravando desigualdades, em todas suas dimensões?
Vejam os biomas. Eles se diferenciam como manchas de adaptação biodiversa, constituídas ao longo de milênios de seleção adaptativa apoiada na diversificação e na interação cooperativa das espécies e populações que neles existem, e que no todo constituem a melhor resposta da vida adaptada às condições daqueles territórios.
Biomas devem ser vistos como organismos gigantescos. São holobiotes. Seres formados pela associação de milhões de outros seres, em uma unidade ajustada às condições de inclinação planetária, insolação, materiais inertes do solo, ventos e ciclo das águas. Foram as respostas da vida a ambientes em mutação que definiram tanto as singularidades de cada micro-ecossistema do Pampa, do Pantanal, da Caatinga, do Cerrado e da Amazônia, como a arte, a sabedoria, a cultura e a espiritualidade de seus povos. A riqueza está na diversidade e nas conexões que ela permite.
Portanto, a degradação, nesta perspectiva, corresponderia à homogeneização dos biomas e à visão simplista das políticas que sustentam as ações que levam a isso.
Neste sentido, e considerando que desde o Brasil colônia se sucedem gestores que apostam o futuro do país neste vetor conceitual de pasteurização geral, não estaria na hora de mudar?
E assim sendo, diante de pressões da crise ambiental, do teto de gastos e da desfaçatez com que senadores tipo Magno Malta e Marcos do Val emitem suas falas desconexas sob aplausos, não estaria na hora de Lula apontar outro rumo?
Afinal, parece claro que precisamos (e é urgente) abandonar aquela ideia de substituir tudo que existe em vastas redes biodiversas que estamos longe de conhecer, por lavouras anuais dependentes dos subsídios, das máquinas e dos agrotóxicos que asseguram o sucesso temporário de alguns poucos, em sua luta insana, suicida, contra as forças da natureza.
E isso para ficar em uma das muitas dimensões de degradação que precisamos conter, lembrando ainda a necessidade de estímulo às singularidades (dos) e conexões entre os muitos grupos que formam a diversidade de nossa gente e territórios.
Por que Lula não nos convoca a ajudar neste rumo?
Só vejo uma resposta: ele não confia que responderemos. Ele acredita que estamos dominados pela apatia, assim como suspeitamos que determinados interesses possam estar contaminando seus espaços de aconselhamento.
Afinal, Lula claramente se preocupa com o esboroamento do conceito de humanidade e com as desigualdades ampliadas por processos de degradação ecossistêmica decorrentes do avanço do capitalismo predatório entre nós. Ele há de saber que tanto as novas formas de trabalho escravo como o genocídio de povos inteiros andam de braços dados a discursos oportunistas e construções pseudocientíficas empenhadas em tentar justificar e estender no tempo o que aqui vem acontecendo desde o Brasil colônia. Enfim, ele há de compreender que está diante do grande desafio dos países subalternizados: como construir um projeto nacional?
Ele não precisa ter a resposta. Basta confiar que mobilizando inteligência coletiva obterá alternativas mais consequentes do que apostando em novas rodadas de negociações, com perspectiva de longo prazo, em espaços dominados pelos interesses dos lobos.
As organizações sociais precisam ser convocadas a propor caminhos para recuperação e fortalecimento da diversidade que sustentará o futuro. Seguindo a imagem anterior, precisamos lembrar que na natureza não há espécies campeãs e que na sociedade em que vivemos, as mudanças necessárias precisarão afetar especialmente os maiores dentre os lobos.
De outro lado, por seu histórico bem-sucedido de negociador cauteloso, Lula não parece disposto a fazer chamados à organização ativa de seus liderados, contra seus inimigos. Estará certo? Não há como saber. Parece mais claro o fato de que a energia de nosso governo tende a se reduzir e que todos perderemos se os representantes regionais da alcateia não forem alertados, pelo povo nas ruas, de que eles, em sendo minoritários, precisarão nos respeitar e encarar uma dieta alternativa, se possível abrindo mão inclusive de alguns dentes.
Dizendo de outra forma: parece que Lula acredita que a degradação poderá vir a ser interrompida sem mobilização popular. Parece contar, para isso, com políticas compensatórias que nem de longe serão capazes de frear o empuxo do vetor de homogeneização que está desenhando, no paraíso, um deserto lunar.
E talvez ele não acredite, mas temos propostas. Elas pedem estímulo à consciência e ao empoderamento de organizações sociais que, convocadas, responderão a um projeto de país bio, sócio e culturalmente diverso. Os resultados? Neste momento o mais importante é dar início a amplo processo de conscientização nacional, evidenciando que nossa força decorre do respeito às nossas diferenças.
Um líder maior nós temos. Mas ele precisa confiar que responderemos a seu chamado.
Confira a excelente e esclarecedora entrevista com o agrônomo Paulo Petersen, membro do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
E a música é de Louise Harris - We Tried.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko