Foi tema de audiência pública da Comissão de Segurança, Serviços Públicos e Modernização do Estado, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a situação do Quilombo da Vila Kédi, na Zona Norte de Porto Alegre - onde recentemente a prefeitura iniciou a demolição de casas de moradores que firmaram acordo para sair, ação que foi suspensa pela Justiça porque o território está com processo de titulação tramitando no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A atividade ocorreu na sexta-feira (15) por proposição do deputado Leonel Radde (PT).
:: Demolição de casas no Quilombo Kédi em Porto Alegre é suspensa após decisão liminar ::
Localizado ao lado do Country Club de Porto Alegre, entre as avenidas Nilo Peçanha e Frei Caneca, no bairro Boa Vista, o Quilombo Kédi está espremido entre prédios de alto padrão em uma das áreas mais nobres da capital gaúcha. A audiência ouviu, de um lado, o grupo de moradores que quer permanecer e luta para que o lugar seja reconhecido como quilombo. De outro, famílias que querem receber uma indenização da prefeitura para deixar o lugar, que fica a 500 metros da “esquina mais desejada da cidade”, como consta em anúncios de incorporadoras.
De acordo com Radde, o tema chegou à Assembleia Legislativa em função do acirramento dos ânimos entre os próprios moradores e por situações envolvendo a prefeitura, uma empresa do ramo imobiliário e a Brigada Militar. Ele se referiu à derrubada de duas moradias em novembro, no processo de realocação de moradores desencadeados pela prefeitura de Porto Alegre a partir de um acordo que prevê uma indenização de R$ 180 mil por família.
Representante do Quilombo Kédi, Juliana de Jesus Dutra fez a defesa de quem quer ficar no local. “Não estamos impedindo ninguém de sair. Mas queremos ficar. Fui criada lá e não troco aquele lugar por R$ 180 mil. Todos achavam o lugar maravilhoso até aparecer a oferta de dinheiro”, relatou.
Na outra ponta, a moradora Quênia Motta revelou estar infeliz na comunidade, que não tem rede de esgoto e sofre com o acúmulo de lixo e a proliferação de ratos. “Fomos atrás de uma solução para melhorar a vida de nossa família. Temos o direito de fazer isso”, sustentou
No meio dos dois grupos, a Defensoria Pública atua há um ano na tentativa de promover uma conciliação e “assegurar os direitos legítimos da população”. Na audiência pública, o órgão foi representado pelo próprio defensor-geral do Estado, Antônio Flávio Oliveira, e pela defensora Ana Carolina de Castro Zacher.
Defesa do Território
O principal fator que impede o entendimento entre os dois grupos é que, se a área for declarada quilombo pelo Incra, os moradores não poderão vender seus terrenos. O primeiro passo para o nascimento do Quilombo Kédi, no entanto, foi dado em 2021 com a abertura do processo para a regularização fundiária como território quilombola. Duas peças já foram concluídas: o laudo antropológico e o pleito territorial da comunidade, que envolve quase 4 hectares. O processo atualmente está em fase de execução do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Além disso, a Fundação Cultural Palmares concluiu a Certificação de Auto Reconhecimento da Comunidade Remanescente do Quilombo Vila Kédi no âmbito da entidade. Os descendentes diretos dos fundadores da comunidade, que se auto reconhecem como quilombolas, seriam de 20 a 30 famílias, com as demais tendo laços mais ou menos próximos.
O militante antirracista Ubirajara Toledo chamou a atenção para a possibilidade de indenização para quem não quer ficar na área e não poderá vender a posse do lote. “A instrução normativa 57 do Incra prevê a desintrusão de quem não se declara quilombola, podendo haver indenização. O que não podemos permitir é que a construção de um direito ocorra a partir da supressão de outro. Ou que sejamos usados como massa de manobra num jogo em que negros e pobres são colocados contra negros e pobres”, pontuou.
"Ilusão disseminada pela especulação imobiliária"
Representantes de diversas entidades se manifestaram sobre os riscos e o abuso praticado por representantes do poder econômico contra a comunidade. “Jogaram um pedaço de carne no chão para que briguemos entre nós. R$ 180 mil é o preço que colocaram na nossa casa, nos nossos, filhos, na nossa história e cultura”, criticou o ativista do Movimento Negro Marcelo Dias.
A vice-presidente da União dos Moradores de Porto Alegre, Ane Moraes, considera que o valor que querem pagar não é suficiente para comprar um terreno na periferia. “Parte da comunidade está vítima de uma ilusão, disseminada pela especulação imobiliária”, alertou.
A deputada Laura Sito (PT), que preside da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, manifestou preocupação com as violações que estão acontecendo no território e com os riscos que a cisão da comunidade gera. “Vamos atuar para que nossas comissões parlamentares se constituam em espaços de mediação para levar adiante o processo de certificação do quilombo e barrar a higienização social e racial na região”, anunciou.
A audiência decidiu, como encaminhamentos, acompanhar o andamento do processo no Incra e na Fundação Cultural Palmares e solicitar o acompanhamento do Ministério Público e o projeto imobiliário previsto para o local e entorno.
* Com informações da Agência de Notícias da ALRS
Edição: Marcelo Ferreira