O cenário conturbado que o Brasil viveu na última década com a Operação Lava Jato colocou o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Poder Judiciário no centro do debate político. Se por um lado muitos defendem que sem a atuação do STF a democracia brasileira poderia ter colapsado, por outro também se aponta a responsabilidade do próprio STF no caos institucional instalado no país desde 2016 (o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e posterior prisão de Lula às vésperas das eleições de 2018.
Os efeitos ambíguos da intervenção do Poder Judiciário levantam a polêmica sobre os riscos da decisão mais recente do Supremo. O Humanista foi atrás de informações para contextualizar a decisão.
Entenda o caso julgado pelo STF
Em 1995, o jornal Diário de Pernambuco publicou uma entrevista com Wandenkolk Wanderley – ex-delegado de polícia que atuou na repressão durante a ditadura civil-militar brasileira. Na entrevista, o ex-delegado afirmou que o então deputado Ricardo Zarattini Filho, havia participado do atentado terrorista ao Aeroporto de Guararapes em 1966, quando duas pessoas morreram e outras 14 ficaram feridas. Em resposta, Zarattini ajuizou uma ação por danos morais contra o jornal pedindo uma indenização de R$ 700 mil. Segundo ele, o veículo publicara uma informação falsa, já que o atentado fora realizado pela organização Ação Popular (AP), movimento ao qual Zarattini nunca havia feito parte. O argumento foi de que, ou o veículo intencionalmente havia publicado contra o ex-deputado uma acusação que sabia ser falsa, ou havia sido negligente na apuração da informação. Em ambas as hipóteses o veículo havia cometido um ilícito e, portanto, deveria ser responsabilizado pelos danos causados à imagem do então deputado.
Em primeira instância, o jornal foi condenado por não ter adotado todas as medidas necessárias para preservar a integridade moral do ex-deputado, mas em segunda instância a decisão foi revertida. Segundo os desembargadores do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), os direitos à preservação da honra e imagem precisam ser compatibilizados com os direitos à liberdade de informação e expressão. De acordo com os magistrados, somente se fosse provado que o veículo havia publicado uma informação que sabia ser falsa é que a condenação seria viável. Ainda de acordo com os desembargadores, no conflito entre os direitos constitucionais apresentados no caso deveria prevalecer a liberdade de expressão e informação, uma vez que, segundo os julgadores, a matéria em questão seria revestida pelo interesse público.
A controvérsia subiu ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) e, por maioria de votos, reverteu-se a decisão do TJPE, dando ganho de causa a Zarattini. O Diário de Pernambuco, então, recorreu ao STF, onde o caso adquiriu o status de tema com Repercussão Geral (causas que apresentam questões relevantes sob o aspecto econômico, político, social ou jurídico, cuja tese resultante se impõe sobre todos os processos com causas semelhantes no país).
No caso, o STF fixou a seguinte tese, em duas partes:
“1. A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Admite-se a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.
2. Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios."
A polêmica das últimas semanas em torno da decisão diz respeito especialmente à segunda parte da tese. Embora redigida de forma que pareça estar restringindo a possibilidade de responsabilização dos veículos de imprensa (“a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se…”), na prática o STF mitigou significativamente a proteção jornalística, especialmente ao afirmar que deve ser atendido o critério relativamente subjetivo de “dever de cuidado na verificação dos fatos”.
O pau que bate em Chico bate em Francisco
A recente atuação do Poder Judiciário garantiu a prisão do então Deputado Federal bolsonarista Daniel Silveira por ter ofendido ministros do STF e defendido o Ato Institucional nº 5 (AI-5). Por outro lado, a jornalista Schirlei Alves, do The Intercept Brasil, foi condenada a um ano de prisão e a pagar uma indenização de R$ 400 mil ao juiz e promotor apontados em sua reportagem sobre o caso Mari Ferrer.
Apesar de à primeira vista não parecerem equiparáveis as duas decisões, elas têm muito em comum. E a questão que as une pode ser resumida na expressão “quem semeia vento, colhe temporal”. O debate não é simples.
O jornalista Moisés Mendes, em recente coluna no portal Brasil247 , fez criticas à decisão do STF. Segundo ele, ilícitos continuarão ocorrendo, porém o Poder Judiciário ganhará mais instrumentos para selecionar aqueles jornalistas que serão punidos.
“A decisão do STF não protege a verdade e não evitará ou punirá a mentira, mesmo que seja uma intenção expressa pela mais alta Corte do país. Primeiro porque as grandes mentiras não são disseminadas por entrevistas à imprensa, mas pelas redes sociais. Segundo, porque vai prevalecer sempre a iniciativa do poder econômico de tentar calar veículos que não fazem parte das grandes corporações. Qualquer poderoso poderá tentar interditar e acabar com pequenos veículos pela imposição das fábricas de dano moral”, critica o jornalista.
Além da posição de Mendes, muitos que criticaram a atuação do Poder Judiciário contra a imprensa no último período são irredutíveis na defesa da máxima liberdade de expressão. É o caso do jornalista Glenn Greenwald, quem inclusive despertou inimizades de antigos companheiros por ter ficado ao lado de representantes da extrema-direita nas críticas aos excessos do STF contra personagens como o youtuber Monark, do canal Flow.
Com essa última decisão do Supremo, o país caminha para consolidar o entendimento que vem prevalecendo nos últimos anos de que nenhum direito é absoluto; logo, a liberdade de expressão e de imprensa devem estar de acordo com os demais direitos constitucionais. A questão que sempre fica em aberto nesses intrincados debates constitucionais é quem fiscalizará os fiscais da Constituição? Na opinião de Moisés Mendes, apesar da atuação importante do Poder Judiciário e especialmente STF no último período, a brecha aberta por essa decisão vai estimular a autocensura e fragilizar especialmente os jornalistas de veículos alternativos.
“Sem a bravura do STF, e em especial sem a postura do ministro Alexandre de Moraes, não estaríamos aqui falando de liberdade de imprensa. O STF e, por extensão, também o TSE sob o comando de Moraes no pior momento paras as liberdades. Foram bravos. Mas isso não pode autorizar esse mesmo STF a, em nome da contenção da mentira, da injúria e do ódio, a expor e fragilizar pequenos jornais, sites e até blogs. O que vai prosperar será a autocensura. Os jornalistas passarão a evitar entrevistas problemáticas. E o punido será o jornalista, e não a empresa, mesmo nas grandes corporações. E nas pequenas empresas, o jornalista é a empresa. Já dá para imaginar que muitas serão inviabilizadas”, pondera o jornalista.
O jornalismo na berlinda
“O combate à mentira não passa pela responsabilização dos veículos por falas de entrevistados, mas pela contenção das fake news nas redes sociais, o que até agora parece impossível.”
Moisés Mendes
Além das críticas do ponto de vista da censura e autocensura, muitos jornalistas também criticam como essa decisão pode inclusive inviabilizar alguns formatos contemporâneos do jornalismo, como a publicação de falas em tempo real nos sites e redes sociais ou entrevistas ao vivo, especialmente quando se está colocando em questão temas controversos. A crescente instantaneidade esperada do jornalismo atual muitas vezes é incompatível com a checagem aprofundada de declarações de entrevistados. Por outro lado, deixar os veículos de comunicação imunes a qualquer tipo de responsabilização não deixa de ser uma alternativa menos problemática, sobretudo em um país que passou pelas eleições presidenciais de 1989, quando a Rede Globo deliberadamente adulterou o conteúdo do debate entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello, ou pelo caso da Escola Base em 1994, quando uma notícia falsa sobre abuso sexual de crianças destruiu a vida dos donos de uma escola infantil em São Paulo.
De acordo com Moisés Mendes, o problema central é que as restrições agora chanceladas pelo STF não vão recair com o mesmo peso sobre todos os agentes da comunicação, já que antes mesmo dessa decisão uma infinidade de jornalistas já estão sofrendo assédio judicial país afora.
— Vamos lembrar que há juízes, e são muitos, determinando a censura a jornalistas em todo o Brasil, inclusive a censura prévia (antes do julgamento dos casos). Conteúdos são retirados da internet com muita frequência porque alguém com dinheiro entrou na Justiça. Com essa decisão recente, o STF pode incentivar o aumento desse tipo de ação, que busca sempre impedir a divulgação de algo que contrarie o interesse de algum poderoso. Há juízes fazendo censura prévia. Pode piorar. Por isso não há benefício algum nessa decisão do STF.
Como defendia o alquimista do século XV Paracelso, “a diferença entre o veneno e o remédio está na dose”. E nesta relação Poder Judiciário versus liberdade de expressão, o Brasil parece ainda não ter encontrado uma dose segura.
“Sem a bravura do STF, e em especial sem a postura do ministro Alexandre de Moraes, não estaríamos aqui falando de liberdade de imprensa. O STF e, por extensão, também o TSE sob o comando de Moraes foram bravos no pior momento paras as liberdades. Mas isso não pode autorizar esse mesmo STF, em nome da contenção da mentira, da injúria e do ódio, a expor e fragilizar pequenos jornais, sites e até blogs. O que vai prosperar será a autocensura. Os jornalistas passarão a evitar entrevistas problemáticas. E o punido será o jornalista, e não a empresa, mesmo nas grandes corporações. E nas pequenas empresas, o jornalista é a empresa. Já dá para imaginar que muitas serão inviabilizadas”, pondera o jornalista.
Edição: Humanista