O Brasil é o país com a matriz de energia elétrica mais limpa do mundo, por outro lado, tem uma das maiores tarifa do mundo. Como chegamos a esse disparate?
A primeira coisa que vem à mente é o quão maquiavélico se tornou o setor elétrico, mesmo com recursos naturais abundantes, a energia elétrica aumenta exponencialmente.
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Contudo, não quero cometer injustiça a Nicolau Maquiavel, pois O Príncipe (escrita em 1513), revelou ao povo como os monarcas absolutos governavam. Maquiavel escreveu como se estivesse aconselhando o príncipe florentino, contudo, escancarou em sua obra as atrocidades que os governantes eram capazes de fazer para se manter no poder.
Quem vai fazer as vezes do Maquiavel dos trópicos são os relatórios do Tribunal de Contas da União. O TCU explicitou as relações entre o público e privado no setor elétrico, bem como o impacto nas tarifas pagas pelos consumidores, que são os mais prejudicados com as artimanhas engendradas pelos atores econômicos e referendadas pelo Parlamento brasileiro.
Portanto, os dados ora mostrados são públicos e facilmente encontrados nos links indicados.
Na desestatização da Eletrobras, o TCU por meio do voto revisor[1] vencido apontou uma série de irregularidades que culminaram com a subavaliação da estatal. Ao invés de R$ 67 bilhões, a Eletrobras deveria ter sido desestatizada por 130,33 bilhões, assim, houve redução de R$ 63,33 bilhões no valor de venda.
As principais irregularidades apontadas foram: o preço da energia no longo prazo não incluiu a variável potência, assim, a modelagem não precificou 26 mil MW de usinas da Eletrobras que podem vender energia de potência; imprecisão metodológica que superestimou o cálculo do risco hidrológico, o que resultou em menor bônus de outorga; e o uso de taxas de desconto dos fluxos de caixa de 7,31%, deixando de apropriar parte do excedente econômico dos novos contratos.
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Reparem o poder de mercado de uma empresa como a Eletrobras: a maior empresa de energia elétrica da América Latina, a 16ª maior empresa de energia do mundo e uma das cinco maiores geradoras hidrelétricas do mundo em capacidade instalada, na medida em que detém 29% da capacidade de geração do Brasil (51 GW instalados, em 239 usinas) e 65 mil quilômetros de linhas de transmissão, que representam 45% do total no Sistema Elétrico Nacional.
Nos documentos enviados ao TCU há estudo da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), o qual foi ignorado, que apontava como boa prática para a concorrência que a desestatização da Eletrobras ocorresse por subsidiárias, a fim de que o poder de mercado de uma das subsidiárias ficasse acima e próximo ao da empresa com o maior market share, naquela época.
O principal impacto para as tarifas de energia foram os contratos de compra de energia da Eletrobras. A partir de 2023, o consumidor deixou de receber a energia mais barata oriunda do regime de cotas no valor de R$ 65,76/MWh, cujos contratos vigeriam até 2042, e passou a receber energia elétrica a preço de mercado oriunda da produção independente que em média é de R$ 172,14/MWh.
Que contrassenso, há o mantra de que no sistema capitalista os contratos devem ser honrados. Essa premissa só vale para alguns entes econômicos, para os consumidores, virou letra morta. Os contratos mais baratos tinham vigência até 2042, a usina de Sobradinho era até 2052, contudo, esses contratos foram rasgados sem a menor cerimônia já que lastreados por lei[2].
As privatizações/desestatizações, de um modo geral, são lastreadas com o argumento de que as estatais não possuem recursos para investir. Nesse caso específico, houve aumento direto da receita para o ente privado, no entanto, a modelagem econômica adotada não obrigou a fazer qualquer investimento, mesmo tendo dobrado o valor da tarifa.
Assim, o consumidor, além de ter pago por toda a infraestrutura erguida pela Eletrobras, já que os ativos elétricos estavam amortizados, foi obrigado a arcar com contratos mais caros em razão da desestatização.
Dois ministros, durante a sessão que apreciou a desestatização da estatal, tiveram a dignidade intelectual de dizer que o processo de desestatização não estava maduro e disseram que, se a Eletrobras fosse deles, não seria desestatizada. Em que pese tal comentário na sessão plenária, ambos votaram pela continuação da desestatização, o placar foi 7x1 a favor da desestatização.
Auditoria do TCU de 2022[3], por sua vez, explicitou com todas as letras as razões pelas quais estamos no ranking da vergonha com tarifas estratosféricas apesar de termos fontes naturais em abundância para gerar energia: água, vento e sol.
A seguir estão as causas desses aumentos exponenciais das tarifas. De forma bastante resumida: criação de encargos tarifários ilimitados que não levam em conta a capacidade de pagamento dos consumidores, além da transferência de risco do negócio para o consumidor.
Se por um lado nossa matriz elétrica tem 84% de fontes limpas, por outro, o Brasil é o único país do mundo que subsidia o carvão mineral para gerar energia. O carvão é uma fonte caríssima e poluente. Os consumidores pagam anualmente R$ 1 bilhão de encargo tarifário Conta de Consumo de Combustíveis Fosseis (CCC)[4] para essa fonte.
A modelagem do setor elétrico, fruto das privatizações, tem como fundamento variáveis como a garantia física das usinas, que nada mais é que um certificado com capacidade instalada das usinas em MW (megawatt). Ocorre que a usina não precisa gerar esse MW do certificado. A usina recebe a remuneração desse MW, mas pode não gerar.
O TCU e o setor elétrico sabem que existe mais certificado que energia de fato. Isto é, existe mais papel na comercialização de energia do que energia real para suprir o mercado, mas o consumidor paga como se ela existisse.
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Como isso é possível?
É possível com a criação de um encargo de energia de reserva que o consumidor paga pela diferença da energia dos certificados e a realidade. Existem leilões exclusivos de energia de reserva para comprar essa energia faltante, o consumidor, portanto, paga duas vezes. A primeira quando compra a energia nos leilões normais (que pela modelagem seria a quantidade de energia necessária para abastecer o mercado) e a segunda nos leilões de energia de reserva. No exercício auditado, o encargo de energia de reserva foi de R$ 1,9 bilhão.
Outra façanha que também é coberta por encargo, é o risco hidrológico. As empresas, que concorreram nos leilões para vender energia de fonte hídrica, ofertaram tarifas que levavam em conta o risco hidrológico, pois os rios ficam 6 meses de cheia e 6 meses de seca. Ocorre que esse risco que era do empreendedor passou, por lei, para o consumidor. Com isso foi criado o encargo das bandeiras tarifarias, R$ 7,6 bilhões no ano auditado pelo TCU. O nosso capitalismo é isento de risco, ao consumidor resta a conta a pagar.
Durante a pandemia, foi criado mais um encargo, a Conta Covid. Foi um socorro financeiro estruturado pelo Ministério da Economia e pelo Ministério de Minas e Energia e aprovado pela Aneel. As empresas com dificuldades financeiras causadas pela queda no consumo de energia e aumento da inadimplência durante a pandemia do coronavírus, foram socorridas pelos consumidores. Foram feitos empréstimos bancários de R$ 14,8 bilhões para 61 distribuidoras do setor. Esse empréstimo milionário caiu no lombo dos consumidores, que pagarão até o ano de 2025.
Nos últimos 20 anos os valores das tarifas residenciais no Brasil subiram 351,1%, enquanto o IPCA, medido pelo IBGE, foi de 230,3% no mesmo período.
Por derradeiro, o resultado de todo esse disparate de tarifas na estratosfera é o impacto para os vulneráveis socialmente. A campanha “O peso da luz”[5], mostra como o custo da tarifa é repassado para outros setores da economia e aumenta os custos de produtos essenciais, a exemplo de 31% do preço do leite e da carne. Além de pagar a energia da sua conta de luz, você acaba pagando por energia de novo quando compra qualquer coisa. A conta de luz compromete, direta e indiretamente 1/3 do orçamento das famílias mais pobres.
[1] Site www.tcu.gov.br - Processo TCU 008.845/2018-2 – Acordãos 296/2022 e 1103/2022 acessado em 1/12/2023.
[2] Lei 14.182/2021
[3] Pesquisa site TCU www.tcu.gov.br acessada 1/12/2023. Processo TC 014.282/2021-6 – Acordão 1376/2022 – Plenário
[4] A CCC esta embutida em outro encargo Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).
[5] https://abrace.org.br/o-peso-da-luz/ acessado em 1/12/2023
* Graduada em Administração pela Universidade Estadual do Ceará. Mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Auditora do TCU aposentada.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko