Assim como a monocultura não faz bem à natureza, a monotonia da voz única não faz bem à humanidade
Dias atrás viajei. Pera aí. Dias atrás? Interessante a língua/gem. Eu estive dias atrás na FLIP, mas a maior Festa literária internacional que acontece no Brasil, mais exatamente, em Paraty, ainda continua presente em mim.
Ela continua quando no aeroporto, ao passar minha mala de rodinhas pelo escâner, a moça me pergunta: “São livros?”, e eu sorrio. Sorrio muito e digo que sim, que são. E acrescento que estou vindo da FLIP (imaginando que todo mundo saiba o que é), sou escritora, digo, lembrando o quanto é importante para nós pronunciar essas palavras.
Recordando também da foto que fizemos em tantas cidades do Brasil, ano passado, e renovamos este ano. Em junho de 2022, mais de 2.300 mulheres e mulheridades nos reunimos em muitas cidades para dar visibilidade ao ato da escrita. Esse fato foi tão marcante que acabou dando livro, Um grande dia para as escritoras, e acabou gerando um podcast que, logo no início, traz junto uma dúvida que une a todas nós, Serei-eu uma escritora? O que é necessário para tornar-se uma? Quantos livros deverei de ter publicado até merecer esse nome? Será isso suficiente se nem Clarice Lispector se dizia escritora, mas amadora, ou se até Annie Ernaux, prêmio Nobel de Literatura, conta que às vezes o termo lhe gera conflito. Deusas! E o que resta para a gente então?
Essa é uma pergunta que me persegue há anos. Algumas vezes que entrevistei escritoras já consagradas, perguntei a elas a partir de que momento se chamavam a si mesmas de escritoras.
Uma vez, conversando sobre isso com uma companheira, a gente coincidia que os homens não têm esses problemas, eles escrevem uma linha e já são escritores, criam um verso e se sentem poetas. E nós? Então, ela me disse, você tem que assumir esses espaços, seja uma escritora ruim, mas ocupe esse lugar, pronuncie essas palavras. E aqui ando eu, falando até para a atendente do aeroporto.
Esse tema esteve muito presente na FLIP, ao ponto de uma hora, uma amiga que já tem dois livros solo publicados, mais alguns textos em coletâneas, me dizia, mariam, eu não sei se sou escritora. Aí, eu disse, só um pouquinho, abri rapidamente o podcast, e coloquei o telefone no centro da mesa do bar, assim tanto ela como as outras amigas que também estavam junto podiam ouvir as primeiras palavras que, justamente, iniciam com esse conflito na fala. Uma mulher que contava ter feito autossabotagem ao ir (ou não) no dia da foto, por não saber se esse lugar também lhe pertencia.
Quantas de nós passamos pelo mesmo?
É isso um acaso ou é isso o patriarcado?
Eu dizia que a Festa literária continua presente em mim, também, pela quantidade de livros que trouxe de lá. Alguns comprei, outros troquei e outros ganhei. Um dos mais interessantes é O imprevisto, de Ana Alkimim, pela Gênio editorial. É um livro de poemas a duas línguas, belíssimo trabalho! A autora é carioca e mora em Madri desde 2007. As 180 páginas versam sobre o aborto, sobre o trauma, sobre viver; sobreviver a um aborto tendo já três filhos. Ana tira suco dos versos, vai e vem; vem e volta porque o trauma deve de ser falado, mas não é uma leitura pesada, tem humor, tem deboche, tem conflito e tem muita reflexão e jogos poéticos e mensagens a quem é contra nós-outras.
aos antiabortistas
o inferno já está garantido
para nós só nos falta
que a lei nos ampare e
adie as nossas mortes.
Pena que ela teve que viajar antes da foto. Um ou dois dias depois que ela fizesse o lançamento do seu livro, foi o acontecimento do Grande dia para as escritoras em Paraty. Depois de fazer a foto mencionada, eu propus fazermos outra com os lenços verdes, símbolo da luta pelo aborto livre; expandindo assim a maré verde começada pelas companheiras em Argentina. Foi também um momento bem marcante. Eu tinha levado alguns lenços, a escritora Giovana Madalosso tinha outros, mas nunca imaginei que ao longo do dia tantas mulheres me procurariam pedindo mais, falando de suas experiências, se fotografando nas ruas da cidade.
Até uns anos atrás era muito comum ouvir a frase de que todos os temas estavam já esgotados na literatura. Será que esses homens brancos, heterossexuais, urbanos, classe média tinham se esgotado a si mesmos? Até uns anos atrás era muito comum que a Festa fosse só deles/com eles/sem nós. De fato, foi assim que começou o coletivo nacional do Mulherio das Letras, quando a escritora Maria Valéria Rezende, cansada de tanto ego masculino, conversando com outras escritoras que também pareciam viver em mundos paralelos, fizeram uma convocatória.
Felizmente a FLIP, e as pessoas que lá estão, conseguiram ouvir esse grito de esgotamento, ao ponto que a FLIP oficial deste ano tinha na curadoria duas escritoras negras: Fernanda Bastos e Milena Britto. E teve uma ampla presença de mulheres, de pessoas indígenas, negras, lésbicas, feministas, queer; tanto na programação oficial, como nas programações paralelas.
Fico muito feliz com essa pluralidade, assim como a monocultura não faz bem à natureza, a monotonia da voz única não faz bem à humanidade.
* mariam pessah : ARTivista feminista, escritora e poeta, autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre desde 2017 e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta.
** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko