“Olhar para cada sapato entendendo que eu poderia estar ali é um processo de reflexão muito grande e de reforço de quanto temos que continuar lutando", afirma a presidenta da Associação das Promotoras Legais Populares do RS, Fabiane Lara dos Santos, durante intervenção da ação unificada dos 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher.
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Sobrevivente de tentativa de feminicídio em 2003, a promotora legal popular do bairro Mathias Velho, de Canoas (RS), participou na manhã deste sábado (25), de um ato pelo Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres. Organizado pelo Fórum Estadual de Mulheres, Levante Feminista contra o Feminicídio e demais movimentos feministas do estado, o ato foi realizado nos Arcos da Redenção, em Porto Alegre. No encerramento houve uma roda com o Grupo 'Feminino e o Tambor'.
De janeiro até outubro deste ano o Rio Grande do Sul registrou 74 feminicídios e 202 tentativas de feminicídio, de acordo com o Observatório Estadual de Segurança Pública, da Secretária de Segurança Pública/RS que monitora a violência contra a mulher desde 2012. Mas o dado mais impressionante, é a soma de casos de feminicídios tentados, consumados, ameaças, estupros e lesões corporais: foram registrados 45.616 casos somente no RS. Já pelo levantamento da Lupa Feminista que monitora os casos, até o dia 21 de novembro, o estado havia registrado 87 feminicídios.
Onde estão essas mulheres é a indagação que levou o Levante Feminista criar, para o ato desse ano, a campanha sapatos vazios, colocados na Redenção com o intuito de chamar atenção da sociedade para a vida das mulheres.
“Esses sapatos simbolizam cada mulher vitima de feminicídio no nosso estado. Esse discurso que os feminicídios diminuíram pode ter ocorrido em um mês em relação ao ano passado, mas se pegamos a série histórica, só vemos o aumento e a nossa média no estado desde 2012 é em torno de 95 feminicídios por ano”, ressalta a psicóloga, mestre em Psicologia, coordenadora da Lupa Feminista contra o Feminicídio, Thaís Pereira Siqueira.
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Além disso, pontua Thais, a manifestação também teve como objetivo saber onde estão as sobreviventes de feminicídio e pensar políticas e cuidados para essas mulheres. “Elas também estão cheias de sequelas físicas e emocionais.”
“Precisamos chamar atenção da sociedade para a necessidade de abraçar essa causa como sua. Não é possível que nós mulheres percamos a vida porque a sociedade patriarcal nos subjetiva. É muito triste olhar esses calçados vazios e imaginar que esse calçado pertenceu ao pé de uma mulher que morreu por se mulher”, afirma a vereadora de Porto Alegre Biga Pereira (PCdoB).
Todo o ano o mesmo grito
“As mulheres não aguentam mais viver sobre as mais diversas formas de violência. A gente sente muito de ter que estar todo ano falando a mesma coisa, que nós merecemos ter vida digna, plena de alegria, felicidade, afeto. Porque violência não tem nada a ver com amor", ressalta a presidenta do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM), Fabiane Dutra.
Segundo ela, o Conselho tem trabalhado muito a violência psicológica, emocional e patrimonial que fica muito abafada. "Estamos falando aqui de morte, de algo que nos violenta tanto a ponto de nos matar, sem contar as mulheres que tiram a própria vida por não suportar mais viver sob violência. Tem violências que ficam gravadas e que são tão dolorosas...”
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Fabiane também destaca a violência política de gênero. “Nós queremos mais mulheres nos espaços de poder atuando nas políticas públicas para as mulheres e para sociedade. Nossas parlamentares têm sofrido violências absurdas. Não podemos esquecer Marielle (Franco).”
Para a indígena Kaingang, da comunidade Oré Kupry, da Lomba do Pinheiro, Kuty Ribeiro, a violência atravessa a vida de todas as mulheres. “Essa violência também está enraizada dentro dos territórios porque muito tem se internalizado essa forma de viver do não indígena. Não perdemos nossos costumes, ritos, mas a violência tem aparecido.”
Como exemplo recente ela cita o caso da morte da indígena Kaingang Miriam Bandeira dos Santos, que teve seu direito ao aborto legal negado. “De certa forma isso contribuiu para morte precoce dessa guerreira. Dentro dos territórios não há nenhuma política pública especifica para mulheres indígenas. Então a gente vem se somando a todas as lutas para também ter essa visibilidade. Somos ainda muito invisibilizadas na busca por nossos direitos que constantemente são nos negados.”
Integrante da Marcha Mundial das Mulheres, Maria do Carmo Bittencourt ressalta que o 25 de novembro é um dia internacional contra todas as formas de violência contra a mulher. “Nós da Marcha Mundial junto com o movimento internacionalista de mulheres queremos lembrar que o que está acontecendo na Palestina é um genocídio que está atingindo principalmente as mulheres, lá está acontecendo um grande feminicídio de Estado.”
Conforme enfatiza a militante, a pauta das mulheres não poder ser reduzida como identitária. “A pauta é pela libertação e o bem viver de todas as mulheres. A gente segue em marcha até que todas sejamos livres, não algumas, não só o meu país, não só no meu território.”
A constante necessidade de políticas públicas
“O que precisamos fundamentalmente é que o poder público assuma essa causa e que nos ajude a enfrentá-la com políticas públicas. Com a volta da Rede Lilás, uma secretaria estadual da mulher que possa fazer todo um trabalho educativo de uma sociedade que precisa dizer nenhuma a menos. Que precisa educar essa sociedade para que nós mulheres que somos mais da metade da população somos sujeitos e que precisamos ser tratadas com respeito”, afirma Biga.
Para Thais, além das políticas públicas é preciso prevenção. “Podemos fazer a prevenção em vários âmbitos, em diversos espaços. Todo mundo de fato articulado para o enfrentamento da violência porque a mudança tem que ser cultural.”
De acordo com Fabiane Dutra são necessárias políticas públicas para o enfrentamento da violência, não só na segurança pública, mas também na educação não sexista para que as mulheres tenham autonomia. “Hoje aqui no estado só temos um departamento de política para mulheres com pouco recurso. Estamos lutando pela volta da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres que a gente possa incidir de outra forma.”
“Há luz no final do túnel, sempre vai haver porque estamos aqui, a gente não vai se calar, a gente não vai retroceder, a gente não vai parar. A gente precisa pensar que essa sociedade patriarcal traz essa questão para que a gente possa estar debatendo com a sociedade. Mas principalmente ter políticos que pensem com essa perspectiva sobre a vida das mulheres”, frisa Fabiane Lara dos Santos.
Em Pelotas, também houve manifestação.
Abaixo assinado pelo retorno da Secretaria
Na sexta-feira (24), mulheres de diversos movimentos foram para frente do Palácio Piratini reivindicar o retorno da Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres, para isso além da manifestação criaram um abaixo assinado pelo retorno da pasta, extinta desde 2015.
“Com a extinção da Secretaria Estadual de Políticas para Mulheres no RS ficamos com um orçamento reduzido, projetos abandonados e um arcabouço legal esquecido, tendo nossas demandas atendidas por um Departamento ligado à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos. O quadro se agravou com mudanças nacionais, afetando estados e municípios, resultando no esvaziamento de serviços e políticas, o que contribuiu para uma nova realidade marcada pelo aumento da violência”, destacam.
O abaixo assinado pode ser acessado neste link.
Mirabal está sob ameaça
No enfraquecimento de políticas públicas, o caso mais recente do estado é o da Casa de Referência Mulheres Mirabal. Nesta sexta-feira (24), por quatro votos a um, os desembargadores do Tribunal de Justiça do RS deram sentença favorável à prefeitura de Porto Alegre, assinando o despejo da Casa.
A sentença aconteceu um dia antes da celebração dos sete anos da entidade que leva o nome das irmãs que originaram o Dia Internacional de Combate a Violência contra as Mulheres. “Parece uma afronta, eles têm medo quando a gente se organiza”, afirma uma das fundadoras do espaço, e também integrante do Movimento de Mulheres Olga Benário, Priscila Voigt.
Ele lembra que a Casa Mirabal, segunda Casa de acolhimento e abrigamento de Mulheres em situação de violência organizada pelo movimento, acolhe mulheres de violência desde 2016. “É um serviço completo que acolhe e atende as mulheres, que se propõe a mudar profundamente a vida delas, que tem como objetivo romper com o machismo e a violência que se sofre todos os dias, violência, inclusive, do Estado. É um trabalho que a gente faz há muito tempo, com profissionais”, expõe.
Priscila relembra que o movimento tinha ganho a causa em primeiro grau. A prefeitura recorreu, resultando agora na votação definitiva. O movimento ocupa o espaço há cinco anos. “Vamos nos reunir com o jurídico para ver outras formas de recurso. Mas o mais importante é que a gente consiga organizar o apoio para poder permanecer e ficar na casa”, comenta Priscila.
Ela destaca a mobilização que o movimento tem feito na tentativa de diálogo com a prefeitura, sem sucesso. “Ocupamos a prefeitura ano passado, fomos recebidos, mas nunca mais houve diálogo. O que a gente queria era dialogar para dizer que precisamos de um espaço, se não é esse qual será? Eles alegam que vai ter uma escola de educação infantil no local, mas não tem projeto nenhum.”
Para Priscila o que vem acontecendo na Capital é a entrega da cidade para as construtoras de tudo que é público, citando o caso da okupação Jibóia. “A gente pede o apoio de todo mundo que conhece a casa, que defende o direito das mulheres, que luta contra a violência, para estar de vigília porque o oficial da justiça pode entregar a qualquer momento o prazo para a gente sair da casa. Não vamos sair sem ter uma alternativa para nosso trabalho que há sete anos salva a vida das mulheres”, afirma.
Segundo ela, a Casa Mirabal já atendeu nesses sete anos, entre acolhimento e abrigamento, mais de 700 mulheres. “A Casa Mirabal abriga aquela mulher com mochila nas costas que não tem para onde ir porque tem medo de fazer boletim de ocorrência, porque tem medo de denunciar por não ter certeza de que continuará viva depois que sair a medida protetiva. É nesse espaço que está a Mirabal. E ela é um serviço essencial para Porto Alegre e para toda região. O que estamos pedindo é o espaço para continuar o nosso trabalho”, ressalta.
A Casa Mirabal realizou no sábado, a 5ª edição do Festival da Mirabal. Além do festival também teve a saída do bloco Não Mexe Comigo que eu não ando só.
Edição: Katia Marko