Moradores do Quilombo Kédi, na Zona Norte de Porto Alegre, estão organizados em uma vigília, nesta segunda-feira (27), pela efetivação e pelo respeito a seus direitos. Com processo de titulação tramitando no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a comunidade está em alerta desde a última quinta-feira (23), após a 4ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre autorizar a retomada da demolição de residências no território.
:: Decisão da Justiça autoriza demolição de casas no Quilombo Vila Kédi ::
As primeiras quatro famílias deixaram a comunidade no último dia 13, após o pagamento de uma indenização de R$ 180 mil, fruto de acordo da prefeitura com alguns moradores. No mesmo dia, por meio de trabalhadores contratados pela incorporadora CFL, o município iniciou o processo de demolição das residências esvaziadas. Duas casas chegaram a ser totalmente demolidas e outra parcialmente. No lugar onde vive essa população, a prefeitura pretende criar uma rua e um espaço verde, que seriam construídos com os recursos da empresa que administra o Country Club.
No entanto, representantes quilombolas passaram a questionar a prefeitura sobre a legalidade da ação. "Existe um processo em aberto e que até o momento só está presente a assinatura do procurador do município", afirma o advogado representante da comunidade e da Frente Quilombola do RS, Onir de Araújo.
"O entendimento que nós temos é que mesmo para, digamos, se executar essa ordem, essa autorização, existem requisitos que obrigatoriamente devem ser cumpridos. É fundamental que, por exemplo, haja um laudo técnico sobre essa questão da demolição. Então, provavelmente, a ordem, tecnicamente, ela tem que vir através de um oficial de justiça com uma determinação do laudo para que se efetive essa demolição, as casas são próximas umas das outras e são construções precárias, isso pode abalar casas que não estão abrangidas nessa ordem", explica.
De acordo com a Procuradoria-Geral do Município (PGM), a demolição foi acordada na mediação conduzida pela Defensoria Pública e teria como resultado a tomada da posse das casas demolidas por parte da prefeitura, uma vez que a área é oficialmente do município e está marcada como um gravame de rua.
A comunidade quilombola solicitou ao Ministério Público Federal (MPF) que ingresse com um pedido para suspender as negociações enquanto o processo de reconhecimento estivesse em tramitação no Incra. Caso seja reconhecido, o município fica impedido de negociar a área.
"A comunidade quilombola entrou com uma ação rescisória da sentença que transitou em julgado, desfavorável à comunidade, em 2020, e também em sede de liminar, pedindo para que se suspenda essa autorização de demolição, que foi essa decisão de quinta-feira. A comunidade está esperançosa no sentido de que seja revertida essa autorização e também a própria decisão de mérito nessa rescisória, porque por tratar-se de comunidade quilombola foram incompetentes para julgar a matéria possessória, que é isso que está sendo discutido, pois está competência é a Justiça Federal", comenta o advogado.
Comunidade vai permanecer em vigília
Cerca de 40 famílias estão em negociação para deixarem a comunidade, de cerca de 100 famílias que moram na região. Os que ficam no quilombo estão apreensivos. "Todo dia a gente está sofrendo uma pressão aqui, quando a gente pensa que vai dar uma baixada, que a gente conseguiu contornar a situação. Claro, é bem difícil para a gente passar por essa situação de saber que a gente tem a terra aqui desde mais de 105 anos e não ser reconhecido, porque eles estão nos desreconhecendo enquanto quilombolas", afirma Natália Dutra Padilha, presidente da associação de moradores do quilombo.
Segundo ela, os moradores estão "agora sob pressão de mais um ataque". Ela critica que a demolição das casas passa por cima da Fundação Palmares e da certidão que o quilombo possui. "Eles estão querendo barrar e quebrar tudo isso, o que acaba nos entristecendo, mas ao mesmo tempo nos fortalecendo. Porque nada justifica, dinheiro nenhum justifica o nosso antepassado aqui, a nossa terra. Isso aqui não tem preço porque agora a geração que está vindo, a gente vai deixar isso para os nossos filhos, para os nossos netos. A gente não quer desvincular eles dessa ancestralidade", pontua Natália.
A quilombola ainda relata que fica sem dormir e ansiosa com situação de incerteza da continuidade da comunidade no território. "Muitas vezes a gente até chora, porque as coisas que a gente vê e passa, assim, não é fácil, sabe? Eu até estou tentando me conter mais, porque eu já estou no finalzinho da minha gestação e isso vai acabar me prejudicando. Não é fácil, mas também a gente tá aqui pra dizer pra esse povo aí que tem dinheiro, que estão querendo tirar um pedaço daqui, que não vai ser fácil. E uma coisa que o povo preto tem é resistência, e é isso que tá incomodando muito eles, que a gente vai resistir. Nem que seja quatro ou cinco no quilombo, mas a gente vai lutar até o fim", comenta.
Mãe de Natália, Tânia Rosane Jesus Dutra também está entre as pessoas que lutam por permanecer no quilombo. "Estamos sendo pressionados pelas empresas, tentaram nos derrubar, invadir nosso território, mas nós estamos na luta. Nós não vamos deixar apagar essa memória dos nossos pais, dos nossos avôs, da minha mãe, do meu pai, outra também dos meus netos, que criei meus filhos aqui, agora estou criando meus netos e já vem chegando mais outro neto. Quer dizer que nós já estamos na quarta geração e está vindo mais outro neto que vai pegar a quinta geração. Isso tudo não há dinheiro que pague", afirma.
Para a quilombola, não se pode deixar que a memória seja apagada pelas empresas que querem tomar conta do território. "Enquanto nós estivermos vivos, nós vamos lutar com unhas e dentes e nós não vamos desistir. Vamos lutar pelo nosso território", assegura. Tânia promete que mesmo que poucos restem nessa luta, serão guerreiros como foram seus antepassados, e também agradece a todas as pessoas que estão apoiando a resistência do Quilombo Kédi.
Edição: Marcelo Ferreira