Rio Grande do Sul

Coluna

A alma boa de Porto Alegre

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Parafraseio o título de obra bem conhecida 'A Alma Boa de Setsuan' do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, para descrever este incrível ser humano que foi José Carlos Gonçalves Peixoto da Silva, o Zé da Terreira - Foto: Eugênio Barboza
Zé da Terreira é um patrimônio da cidade, um grande artista popular, motivo de alegria e orgulho

Nome: José Carlos Gonçalves Peixoto da Silva

Nome artístico: Zé da Terreira - Ator, compositor, cantor e oficineiro com experiência em produções de teatro, cinema e televisão em Porto Alegre e Rio de Janeiro.

Mas eu queria contar de outra forma…

Prólogo

O amigo Johann Alex de Souza me trouxe essa memória, cheia de afeto, sobre a origem do nome…

“O sotaque carioca pegou a memória afetiva de minha mãe que entabulou conversa e, na hora de passar o recado, quis saber mais sobre o desconhecido. O homem, recém-chegado do Rio de Janeiro, tinha vinte anos há mais do que eu. Foi nos bastidores de um daqueles shows coletivos que o Paulo Flores organizava para promover aquele belo espaço inaugurado há pouco: a Terreira da Tribo. O encontro se deu com a simplicidade espontânea dos grandes inícios. Ele já usava boné, tinha barba e abordava as pessoas de forma muito educada, quase que formal. Ao me ver afinando o violão começou uma conversa musical e logo puxou o seu surdo.

Nos dias que se seguiram quando eu atendia o telefone ele dizia: - Alex! Aqui é o Zé! O Zé? Eu indagava. O Zé lá da Terreira! Ele respondia. Minha mãe, quando avisava de algum recado também dizia: - O Zé lá da Terreira ligou. E assim foi com os amigos que também estavam encantados com ele. O Zé da Terreira. Fui um dos que lhe batizou. Já gostava dele e, ainda, nem sabia de tudo. Não sabia que a sua volta para o sul e o reencontro com o Paulo Flores e o grupo Ói Nóis Aqui Traveiz iria originar o que seria até hoje o Teatro de Rua em Porto Alegre”.


Zé da Terreira na peça 'Todos à Greve Geral', de 1986 / Divulgação

Parafraseio o título de obra bem conhecida “A Alma Boa de Setsuan” do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, para descrever este incrível ser humano que foi José Carlos Gonçalves Peixoto da Silva, o Zé da Terreira. Sempre generoso e gentil com todas as pessoas, a quem encontrava cotidianamente nas suas caminhadas pelo Centro ou pela Cidade Baixa em Porto Alegre. Sempre íntegro mostrava a sua indignação com as injustiças do mundo e ao mesmo tempo compartilhava a sua alegria contagiante.

O Zezão, como muitas vezes era chamado por seus amigos, conheceu a Terreira da Tribo na manhã de 15 de julho de 1984. A Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz abriu as portas do seu espaço para o público na noite anterior com um grande show de bandas de punk rock. A conjunção dos astros fez com que naquela manhã dois cancerianos, Zé e Paulo Flores, se reencontrassem na rua da República. Já se conheciam desde 1977, e nas idas e vindas de Zé a Porto Alegre, tinham se encontrado algumas vezes.

Paulo levou Zé para conhecer o espaço e dessas primeiras conversas surgiu o convite para participar das filmagens de um super oito que faria parte da próxima encenação da Tribo “A Visita do Presidenciável”. Uma das cenas do filme, que era sobre o mito de Prometeu, se tratava de uma intervenção cênica que acontecia em deslocamento pela rua da Praia, Zé no papel de Vulcano e Paulo no de Prometeu. Essa intervenção marcou o primeiro trabalho na rua do Zé em Porto Alegre.  Ele vinha de experiências com teatro de rua com Amir Haddad e o grupo Tá Na Rua no Rio de Janeiro.


Peça A Exceção e a Regra, onde contracena com Tânia Farias e Caio Gomes / Foto: Cláudio Etges

Era um momento difícil para o Zé com a mãe hospitalizada em fase terminal. Quando Zé não estava no hospital ele estava na Terreira acompanhando os ensaios de “A Visita do Presidenciável” e preparando uma intervenção sobre o uso indiscriminado da energia nuclear. A mãe do Zé faleceu e ele voltou para o centro do país só retornando no início de 1985. A partir daí se envolve completamente com o Ói Nóis Aqui Traveiz participando ativamente de intervenções cênicas e das primeiras montagens de teatro de rua do grupo: “Teon - Morte em Tupi Guarani” (1985), “A Exceção e a Regra” de Bertolt Brecht (1987) e “A História do Homem Que Lutou Sem Conhecer Seu Grande Inimigo” (1988), levando a arte para todos os públicos da cidade.

O Zé introduz definitivamente o tambor no teatro da Tribo, me conta Paulo Flores. É o momento que surge o tão querido “Zé da Terreira”. Este período marca o início da sua trajetória de atuação artística e política em Porto Alegre.

Na montagem da peça de Brecht ele participa, junto com Johann Alex de Souza e Mário Falcão, da criação das músicas, a partir de ritmos afro-brasileiros. E dessa vivência de cantar nas ruas da cidade nas encenações do Ói Nóis e do ambiente musical da Terreira, que Zé projeta o seu primeiro show: “Césio 137”, uma crítica ao grave acidente que ocorreu em Goiânia com a energia nuclear, que acontece no verão de 1988. “...inesquecível foi o show Césio 137, que estreou na Terreira. Nós também tocamos na praia de Arambaré, na beira da Lagoa dos Patos: em determinado momento do show ele nos deixou tocando no palco e correu para tomar um banho na lagoa… voltou molhado e seguimos…” me contou o amigo e parceiro Mário Falcão.

Zé da Terreira foi um brilhante cantor, iniciou nos anos 70 participando de programas de calouros no centro do país e teve a grande experiência de ser parte do elenco do badalado musical “Hair”, mas agora encantava o público porto-alegrense, com a afetação e entrega que lhe eram características E, sempre, sempre associando a sua voz a um instrumento de percussão, mas claro, principalmente o tambor. 

Mário lembra dos ensinamentos do mestre, “Zé me mostrou que, no palco, ser espontâneo pode ser o melhor caminho para estabelecer conexão com a plateia.” E sem dúvidas Zé foi um artista transparente, sempre nos fazia ver o que ele sentia no momento de sua grande entrega que eram suas atuações.

Eu, esta mulher da cena e do teatro de rua que vós escreve, aprendi a tocar tambor com o Zé da Terreira, numa praça no Centro da Cidade, eu estava formando um grupo de teatro de rua com outras camaradas e nós íamos com ele tocar os tambores no espaço público. Nunca mais os abandonei.


Show Ói Nóis Aqui Traveiz - 35 anos de Ousadia e Ruptura / Divulgação

Uma das primeiras experiências que tive com o canto foi com Zé, no espetáculo “Zé Canta Brecht”. O Ói Nóis preparava uma segunda montagem de “A Exceção e a Regra”, e Zé já tinha participado do processo de montagem da primeira versão da Tribo para este texto em 1987, dez anos depois estávamos retomando o texto e eu, Zé e Caio Gomes seríamos o coro cantante do espetáculo. Ensaiamos as músicas criadas pelos camaradas Johann, Mário e Alexandre Vieira. E foi nesse período que surge o show Zé Canta Brecht.

Era impressionante como Zé entregava as canções baseadas em poemas de Brecht, ele se apropriou das palavras como se fossem dele próprio. Havia um momento do show em que a indignação tomava conta, e era tão justa, tão das entranhas que só restava o silêncio em todos nós que testemunhamos o seu ato visceral contra todas as injustiças.

Na época, Caio Gomes, outro dos nossos grandes, costumava cutucar o Zé com uma marchinha em que ele perguntava: “Zé da Terreira, quando é que tu vais gravar CD?” E de fato, era preciso um registro da beleza que era o Zé cantando. E assim nasce o CD “Quem tem boca é pra Cantar” (2002), com grandes parceiros, os confirmados Johann, Mário, Alexandre, Caio e ainda Carlos Patrício, Zé Caradípia, Zé Ramos, Ricardo Arenhaldt Júlio Rizzo, num disco que reuniu composições dele, dos parceiros e amigos e também de Nelson Coelho de Castro, Zé Caradípia, João Nogueira e Paulo Pontes. Sem dúvida um disco com muita qualidade musical e conteúdo poético e político.

Nós ainda vivemos um momento lindo de trabalho juntos, o Show que marcou os 35 Anos do Ói Nóis Aqui Traveiz, composto pelas canções criadas para os espetáculos do grupo. Uma cantoria celebração que traz ótimas e carinhosas lembranças.


Zé da Terreira e Mário Falcão em oficina na Terreira da Tribo / Foto: Eugênio Barboza

A presença do Zezão também marcou o grupo de teatro de rua Oficina Perna de Pau que tinha Elena Quintana como diretora e mais recentemente o nosso querido Bloco da Laje.

E como se não bastasse a atuação contínua e contundente desse ser humano e artista ímpar ele preparou pra todos nós um grande exercício de trabalho de ator, junto a outro grande parceiro, Carlos Pinto, que foi criador no grupo de teatro de rua, Espalha Fatos, que encarou a direção deste que se chamou “Cartagena” onde Zé da Terreira assumia o papel do andarilho Rubião que era assombrado por fantasmas dos marinheiros Cartagena e Fernão de Magalhães.

Cartagena foi mais um presente dele à cidade.

Zé protagonizou o premiado curta “A Casa Afogada" e recebeu o Prêmio Qorpo Santo, uma homenagem da Câmara de Vereadores de Porto Alegre às pessoas que fazem a cultura teatral da cidade. Uma honraria…

Nós não o reconhecemos em vida como o que ele realmente era, um griô, um mestre cheio de saberes construídos na sua prática cotidiana e compartilhados de forma generosa e gentil. Nós ficamos devendo isso a ele. No Brasil nós já alcançamos algum entendimento em relação a isso. Já entendemos que os nossos patrimônios precisam ser reconhecidos e apoiados em vida. Mas falhamos com o Zé, sem dúvidas, falhamos.


Zezão no ato show em defesa da Terreira da Tribo / Foto: Cláudio Fachel

Como já disse aqui, depois de ser apresentada ao surdo (tambor), pelas mãos do Zé, nunca mais me separei deste instrumento, que me acompanhou em diversos espetáculos e ainda hoje anima meu sonho de um espetáculo sobre a história do Samba.

Sobre isso ficou pelo caminho o desejo, não concretizado, de cantarmos junto um samba, que Beth Carvalho colocou na roda: “Não dá pra guardar”, tínhamos combinado essa parceria. Mas não importa, sempre que eu tocar o tambor, sempre que o Ói Nóis estiver na rua com seus tambores, ele estará conosco e com toda essa legião de pessoas, as mais variadas possível, a quem ele tocou, ensinou e celebrou a vida e a justa indignação. Ele sempre estará presente.

O samba diz assim:

“Ele paga o armazém

Deve lá na padaria

Não tá pendurado no açougue

Porque o açougueiro não fia

O dinheiro do agiota

Vem com praga de urubu

Se ele bota na poupança

Passa fome ou anda nu”

Nosso mestre morreu nú, um patrimônio, um grande artista popular, motivo de alegria e orgulho.


Zezão ministrando oficina na Terreira da Tribo / Foto: Eugênio Barboza

E em nossa cidade, os senhores do poder, os arautos da cidade dos bueiros entupidos, os adoradores do South Summit, dos espaços públicos privatizados, dos parques cercados, dos que acham a segregação a coisa mais cult que há, não foram escritas notas, não foram enviadas coroas de flores, não mandaram representantes para solenidade de despedida. Eles fingiram que nós não perdemos nada. Talvez eles leiam isso e pensem, “mas eu não sou coveiro”.

Pois saibam, um Zé da Terreira merecia que se declarasse solene luto em nosso Porto, já não tão alegre, merecia que os tambores fossem convocados a se reunir nas praças, nas ruas pra soar por muitos minutos. Merecia que as cores fossem convocadas para dançar.

Zé da Terreira, presente!

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko