Cerca de 280 trabalhadores do Instituto de Cardiologia (IC) de Porto Alegre foram demitidos na semana passada, entre os dias 16 e 17 de novembro. O número representa 20% dos 1,4 mil funcionários do hospital. A partir disso, começou a circular um vídeo compartilhado no WhatsApp em que uma mulher afirma falsamente que "o principal motivo dessas demissões é o corte do orçamento no Ministério da Saúde pelo governo Lula" e que o governo federal teria cortado "mais de 400 milhões do orçamento da saúde só esse ano".
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A mensagem que viralizou nas redes sociais foi desmentida por deputados estaduais da Comissão de Saúde e de Meio Ambiente (CSMA) da Assembleia Legislativa do RS. "O próprio IC, em nota pública, confirma não haver nenhum tipo de atraso de repasses. Isso é importante dizer, pois esse tipo de notícia (de cortes) corre na internet e passa como se fosse verdade", esclareceu o deputado Valdeci Oliveira (PT).
Na verdade, a diminuição dos valores direcionados à cobertura de custos de insumos como stents e marcapassos ao Instituto ocorreu durante o governo federal passado. O IC opera no vermelho desde outubro de 2022, somando uma dívida de R$ 233,7 milhões, por razões estruturais e fatores externos, como a pandemia de covid-19, desequilíbrio nas tabelas do Sistema Único de Saúde (SUS) e problemas no IPE Saúde. O Ministério da Saúde (MS), em nota, reforça a atuação junto ao governo do Rio Grande do Sul e a prefeitura de Porto Alegre, com mediação da Procuradoria Geral de Justiça do estado gaúcho, para enfrentar a crise do Instituto de Cardiologia.
Na segunda-feira (20), a pasta da Saúde destinou R$ 15,3 milhões para custeio dos serviços do IC. Este é o repasse total já garantido para este ano, em três parcelas: duas de R$ 1,3 milhão referentes aos meses de novembro e dezembro, e uma parcela única de R$ 12,8 milhões até o final do ano. A partir de 2024, o recurso estará garantido em parcelas mensais.
"É óbvio que o problema é maior, mas esse anúncio do Ministério da Saúde mostra, na verdade, um aumento do teto (do repasse), inclusive com valores retroativos a janeiro. Ou seja, além de não ter havido nenhuma redução, está havendo uma ampliação nos valores, justamente pela importância do Instituto de Cardiologia na história do RS", afirmou o deputado Pepe Vargas (PT).
FUC afirma que demissões é uma das medidas de reestruturação de gastos
Conforme Oswaldo Luis Balparda, superintendente executivo da Fundação Universitária de Cardiologia (FUC), que administra o IC, as demissões ocorreram porque o hospital tinha “uma capacidade instalada superior à necessidade de produção”. “De forma mais clara: havia mais gente do que o necessário. Estamos iniciando toda uma reestruturação interna dos nossos processos com o objetivo de ‘fazer mais com menos’”, resume o superintendente.
“Essa medida visa estancar a pressão sobre o fluxo de caixa e dar um ‘fôlego’ à instituição para que ela possa se reestruturar e voltar a operar em equilíbrio”, afirma Balparda. Antes das demissões, a folha mensal do IC era de R$ 6,8 milhões; com os desligamentos deve ficar em torno de R$ 5,1 milhões.
Do montante da dívida, R$ 63 milhões são débitos com funcionários e prestadores de serviço. Outros R$ 65 milhões estão relacionados a impostos em atraso e R$ 215 milhões somam dívidas de fornecedores e instituições financeiras. Em março de 2023 houve o primeiro atraso de salários dos funcionários, em junho o segundo atraso e, em julho, o terceiro e mais longo atrasou, levou à greve dos trabalhadores da instituição.
Pedido de recuperação judicial
A FUC entrou com pedido de recuperação judicial junto à Vara Regional Empresarial da Comarca de Porto Alegre nesta segunda-feira (20). Conforme Balparda, a medida visa manter o funcionamento da instituição e de suas filiais, garantindo a prestação de serviços médicos à sociedade. Além do IC, a fundação é responsável por mais quatro hospitas no RS: Hospital de Alvorada, Hospital Padre Jeremias, em Cachoeirinha, Instituto de Cardiologia Hospital Viamão, Hospital Regional de Santa Maria; e um no DF: o Instituto de Cardiologia e Transplantes do Distrito Federal.
O superintendente diz que os pagamentos dos profissionais demitidos estão sujeitos à recuperação judicial. Se o processo for aprovado pela Justiça, o grupo desligado terá prioridade no recebimento. “Espero sinceramente que a gente consiga fazer todos os pagamentos antes de um ano, que é o prazo legal que temos na recuperação judicial”, afirma Balparda.
Trabalhadores foram pegos de surpresa com as demissões
A técnica de enfermagem Simone Podlasinski, que trabalhava há 10 anos no hospital, foi uma das demitidas. “Eles deram um golpe na gente, nos demitiram entre quinta, sexta e sábado e na segunda-feira pediram recuperação judicial, eles fizeram isso já de propósito, para não pagarem”, avalia.
“O hospital já estava passando por uma crise, e quem já está lá há bastante tempo conseguiu ver isso já faz mais de um ano. Essa crise foi se arrastando até o início desse ano quando começou a atrasar o salário, aí parece que todo mundo acordou, parece que deu uma acordada nos funcionários, porque quem estava vendo, estava acompanhando que uma hora iria estourar. Não mudava a direção, não tinha diálogo com a direção, sempre cobrando as coisas, sem dar condições de trabalho”, complementa.
Para Simone isso é um descaso com os profissionais que dedicaram anos de suas vidas prestando serviços à instituição. “A gente não pode sair assim, anos e anos de dedicação ali dentro e simplesmente sair sem um real, sem nenhum reconhecimento. Então, está todo mundo muito angustiado, muito estressado e, ao mesmo tempo, apavorado porque a gente não sabe como vai ser o dia de amanhã”, relata a técnica de enfermagem.
Todos os funcionários foram pegos de surpresa com o anúncio das demissões. “Foi uma surpresa total, apesar de esperarmos que o rumo seria esse, achei que iria acontecer em março do ano que vem, mas, sair assim sem direito nenhum, é muito revoltante”, afirma Desirée Fonseca que trabalhava há 17 anos no IC.
“A gestão do hospital deixou bem claro que entraram com esse pedido de recuperação judicial e no momento não iriam pagar nossos direitos, nós saímos sem o salário do mês, como iremos manter nossas famílias?”, questiona Desirée.
Sindisaúde-RS defende a intervenção federal
Estão havendo negociações para que o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) assuma a gestão do Hospital de Alvorada e do Hospital Padre Jeremias (Cachoerinha). O posicionamento da FUC, já manifestado à Secretaria Estadual de Saúde (SES), é de plena disposição para que um eventual processo de transição se dê da melhor forma possível para os colaboradores e população. Já o Sindisaúde-RS, que representa os trabalhadores da saúde em hospitais no RS, é radicalmente contrário a esta proposta que está sendo discutida entre a direção do GHC e a SES.
Conforme informações preliminares, a fundação deve se desvincular da gestão das unidades até o fim do ano. “Estes hospitais possuem estruturas do estado e foram administrados durante anos pela Fundação Cardiologia, defendemos intervenção federal. A entrega, pura e simplesmente destas unidades ao GHC significa nomear os gestores ou diretores, por afinidade ideológica, normalmente cargos muito bem remunerados e, utilizando-se da prerrogativa de empresa pública, terceirizar os serviços das atividades meio e fim”, avalia Arlindo Ritter, diretor do Sindisaúde-RS.
Para Arlindo, falta transparência da FUC e da SES sobre o destino desses hospitais. Ja a SES afirma que questões envolvendo a transferência de gestão são especulativas. Na terça-feira (21), Sindisaúde-RS, Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e outras associações de funcionários protocolaram uma representação conjunta no Ministério Público Federal para obter esclarecimentos sobre as notícias de que o Grupo GHC, que é administrado pela União, estaria assumindo a gestão dos hospitais de Cachoeirinha e Alvorada. A representação questiona se o quadro de funcionários será mantido ou se haverá rescisão dos contratos e posterior terceirização.
Reintegração dos profissionais demitidos
Desde segunda-feira (20), profissionais da área da saúde e sindicalistas esrtão em grande mobilização em Porto Alegre pela reintegração dos trabalhadores demitidos do Instituto de Cardiologia. Diariamente, centenas de pessoas fazem vigília na porta da unidade, em busca de respostas, já que médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem dispensados não tiveram garantias de que receberão as verbas rescisórias.
O Sindisaúde-RS ingressou com ação judicial na instância trabalhista, visando a reintegração de todos os trabalhadores demitidos. “Demitiram sem qualquer perspectiva de pagamento. Sem salário, sem 13º, sem verbas rescisórias. A direção do Cardiologia já colocou que não tem dinheiro, que é para ir ao Judiciário. É como aconteceu lá com o Hospital da Ulbra, em 2008. Ficou 15, 16 anos rodando a ação judicial, e só agora pagando. A gente não aceita isso. Entramos com uma ação, uma cautelar, buscando a reintegração de todo esse pessoal”, comenta Arlindo.
Na tarde de ontem (23), foi emitido um mandado liminar proibitório que impede o ingresso de manifestantes junto aos pórticos de entrada do hospital, fixando-se uma distância de 10 metros das áreas ou portarias de acesso à unidade hospitalar. Conforme o sindicalista, a ação não irá impedir a mobilização em prol dos trabalhadores.
"Na segunda-feira (27) temos reunião do conselho sindical e vamos analisar os próximos passos. Hoje (24) deve ser julgado nosso pedido de liminar, reintegração, na Justiça do Trabalho. Passo seguinte, buscar mediação junto ao Tribunal Regional do Trabalho. Não vamos parar até termos êxito”, afirma Arlindo.
Edição: Marcelo Ferreira