Em 19 de novembro de 2023, paradoxalmente às vésperas do dia comemorativo à soberania nacional, foi eleito na Argentina, no segundo turno das eleições presidenciais, o candidato da extrema direita Javier Milei (A Liberdade Avança). Com os holofotes colocados nas medidas de campanha do novo presidente eleito (que, se efetivadas, configurarão um verdadeiro programa de alienação nacional), a referida data comemorativa testemunhou um novo consenso eleitoral dos argentinos. O triunfo de Milei, com quase 56% dos votos, contra o peronista Sergio Massa (União por Todos), chama à reflexão, ainda que com as limitações próprias de todo exercício reflexivo realizado ao calor dos acontecimentos.
Com perfil caricatural e disruptivo, o mandatário eleito autodefinido “liberal” e “libertário” já veio avançando desde antes da pandemia de covid-19 no fortalecimento de um movimento de extrema direita ligado à centralidade que a mesma corrente vem tendo nos EUA, na Europa, e na nossa região. Distanciando-se da direita tradicional representada pelo macrismo e sem qualquer experiência política e de gestão anterior, Milei obteve 17% dos votos para deputado nacional nas eleições legislativas de 2021, liderou as eleições primárias do mês de agosto com 30% dos votos, e ficou 6 pontos atrás de Massa no primeiro turno das eleições gerais de outubro.
Adepto à postura subserviente das vontades do mercado, Milei se elegeu defendendo formas extremadas de abertura comercial e desregulamentação financeira, a retomada das privatizações, o fechamento do Banco Central, e a dolarização da economia. Assimilando o Estado a uma espécie de “banditismo” organizado, para o autodeclarado “anarcocapitalista” o Estado é o inimigo e deve ser desmantelado. Tal desmantelamento se apresenta, no seu discurso, como condição para efetivação da liberdade completa individual e do mercado. Diz que seu programa será uma “motosserra” para cortar o gasto público, em particular o social, e os impostos. Segundo ele, a política social não deve centrar-se no bem-estar da população, mas no capital humano, e tal entendimento deve guiar boa parte do enxugamento da máquina pública. Propõe, também, em política externa, o realinhamento automático do país aos EUA.
Por meio desse discurso, durante a campanha Milei canalizou o inconformismo de alguns setores do poder econômico com o tom moderado do neoliberalismo do macrismo. O presidente eleito soube alimentar-se dos fracassos da direita tradicional (particularmente do governo Macri), vocalizando as pretensões por parte de setores das classes dominantes, principalmente o financeiro, referentes à retomada, como solução à crise do país, de uma agenda ortodoxa na economia pautada pelo ajuste fiscal, pelo controle salarial, pela reconcentração primário-exportadora e pela abertura irrestrita ao capital estrangeiro. Frente a uma crise econômica duradoura e ao fracasso das respostas da centro-direita e do peronismo apela-se a um receituário neoliberal mais extremado.
Milei também soube aproveitar a frustração e o desencanto dos setores populares com a degradação social que o país enfrenta, e que o progressismo governamental do governo Fernández não conseguiu solucionar. Inflação superior a 140%, aumento da dívida externa, queda dos salários e aumento do desemprego, pobreza atingindo mais de 40% da população, um Banco Central sem reservas, e a implementação de políticas de ajuste exigidas pelo Fundo Monetário Internacional como condição para novos empréstimos são expressão do referido cenário de crise que permeou a contenda eleitoral. Provavelmente, tal cenário tenha sido um dos fatores que limitaram a campanha eleitoral de Massa ao voto “útil” contra a potencial regressão de diretos representada pela eventual implementação do programa do seu adversário, ao invés de também chamar a atenção para os avanços da própria proposta do candidato peronista.
Construindo a sua estratégia eleitoral sob a premissa do esgotamento do macrismo e do kirchnerismo, Milei aproveitou-se do descontentamento social para captar votos contra a “casta política”, representada pelos dirigentes políticos tradicionais, além de empresários vinculados ao Estado, sindicalistas e formadores de opinião do “sistema” (por Milei considerados como “parasitas coletivistas”). Combinando uma narrativa hiperindividualista de “vida, liberdade e propriedade privada” com a denúncia da referida “casta”, o presidente eleito foi conseguindo captar, por meio de amplo ativismo na mídia e nas redes sociais, o voto “anti-establishment” ou “antipolítica” de amplos setores da população, mas, principalmente da população mais jovem e precarizada das classes populares. Entretanto, após o primeiro turno, apoiado por Macri e por Patricia Bullrich (parte daquela “casta” que tanto havia criticado), observou-se um Milei preocupado em moderar os níveis de radicalidade do seu discurso e passar a expressar, assim, o voto “anti-kirchnerista”, em favor de um eleitorado mais amplo.
Frente à vitória de Milei, uma questão que se coloca diz respeito a quanto do “discurso radical” será traduzido efetivamente em um programa governamental, assim como aos “termos” e “velocidade” de implementação de tal programa. Ao depender dos parlamentares e dos governadores da linha dura do macrismo para alcançar níveis mínimos de governabilidade, além de uma base social que sustente as medidas, tal questionamento torna-se fundamental. Por sua vez, como se reestruturará a oposição política? O grau de resistência dos sindicatos, movimentos e organizações da sociedade civil também é uma preocupação. Será que a reação popular poderá enfrentar as estratégias de repressão e contenção social do Estado? Com, possivelmente, novas leis de segurança, defesa e inteligência, a repressão social, como demandam as direitas autoritárias, pretende ser brutal. Não surpreende, nesse cenário, a defesa da ditadura militar, concebida pelo presidente eleito e pela sua vice como uma “guerra” contra subversivos de esquerda.
Para encerrar, no seu discurso depois de eleito, Milei reforçou o caminho da “revolução libertária” por ele proposta destinada a “abraçar o modelo da liberdade para voltarmos a ser uma potência mundial”, e salientou: “hoje começa o fim da decadência da Argentina”. O novo ciclo está só começando, a incerteza para o país vizinho é grande e os desafios são múltiplos, muitos deles, inclusive, com amplas repercussões para o Brasil. Por ora, devemos aguardar.
* Professor da UFRGS e coordenador do Núcleo de Estudos em Política, Estado e Capitalismo na América Latina (NEPEC).
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira