Para entender um evento meteorológico que destruiu o telhado da sua casa na infância, em Rio Grande, Bruna Gautério foi estudar a formação e a queda de granizo no estado. Como doutoranda da Ufrgs, ela fez uma descoberta relevante: as condições climáticas sempre favoreceram as tempestades de gelo sobre o território gaúcho e elas podem anteceder outros fenômenos extremos, como a aproximação dos ciclones extratropicais que provocaram destruição e mortes neste ano – foram nove ciclones em três meses.
:; Moradores das Ilhas de Porto Alegre sofrem com mais uma enchente do Guaíba ::
Uma chuva intensa de granizo marcou não só a infância, mas também a vida de Bruna Cavalcanti Gautério. Em julho de 1998, quando tinha quatro anos, foi levada às pressas durante o temporal para o único cômodo com telhas de barro na sua casa. Era o lugar sem rombos provocados pelas bolas de gelo e que não foi atingido pela ventania.
“A casa de madeira dos meus pais, no bairro Lagoa, teve a cobertura e todos os bens materiais que estavam sob guarda desse telhado destruídos”, recorda. Essa situação ocorreu em Rio Grande, cidade onde até hoje Bruna mora e trabalha, como professora de Geografia do ensino fundamental, anos finais de uma escola privada, e também como docente substituta do curso Técnico em Geoprocessamento do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Campus Rio Grande.
O que deu para salvar foram o colchão da cama de casal, a televisão e o fogão. O restante foi danificado pelas pedras e pela chuva que alagou a casa. A precipitação de granizo durou cerca de quatro minutos. “Permanecemos nessa mesma casa e nos recuperamos mediante doação de lonas e de telhas por parte do chefe do meu pai na época. Essa lembrança já estava em mim antes mesmo de entrar na universidade, pois quando os temporais aconteciam, eu ficava com medo e ansiedade”, revela. Ela aproveitou a experiência para estudar o fenômeno em seu trabalho de conclusão de curso, no mestrado e, agora, voltou ao tema no doutorado.
“Isso me motivou a estudar formas para auxiliar as pessoas a se prevenirem diante de cenários semelhantes em um futuro não muito distante,” explica a doutoranda.
O mestrado foi voltado para uma análise socioeconômica diante da precipitação de granizo em Rio Grande. No doutorado, no qual está em fase de qualificação, ela fez descobertas sobre a ocorrência de precipitação de pedras de gelo na região sul do Brasil, a mais afetada pelo fenômeno.
Aumento de ocorrência de granizo no estado
As características do ambiente atmosférico e a localização geográfica do território gaúcho são muito propícias a eventos extremos, como enchentes, granizo e ciclones extratropicais, o que ficou muito evidente neste ano.
O jornal Extra Classe teve acesso com exclusividade à pesquisa de Bruna. O trabalho é orientado pelo professor Francisco Aquino, do Programa de Pós-Graduação em Geografia e Centro Polar e Climático da Ufrgs, e caracteriza os registros e reconhecimentos de granizo nos últimos 32 anos na Região Sul.
Os dados são relevantes porque evidenciam que a formação de nuvens convectivas, denominadas Cumulonimbus, e os Sistemas Convectivos de Mesoescala, os quais são os aglomerados desse tipo de nuvens, chuva intensa com alto volume de água em um curto período de tempo, granizo e vendaval estão provavelmente intensificados.
“Esses sistemas convectivos são disparados com a aproximação dos sistemas frontais, comumente associados aos ciclones extratropicais. Isso é um dado que precisa ser considerado por governos e Defesa Civil para ações de prevenção a desastres”, aponta Aquino.
A passagem de outros sistemas atmosféricos também pode desencadear a formação dessas nuvens e das pedras de gelo, assim como a atuação e influência do El Niño.
O trabalho, que foi encaminhado para publicação em uma revista científica, mostra que o Rio Grande do Sul é o estado da Região Sul com o maior número de ocorrências nos últimos 17 anos, comparado a Santa Catarina e Paraná.
“Se aumentou a ocorrência de granizo, é porque há mais tempestades intensas. E na região de Muçum, Lajeado e Estrela, no Vale do Taquari, registrou-se granizo dias antes da inundação, indicando que o ambiente atmosférico estava propício para eventos extremos de precipitação”, explica o professor Aquino. Outro aspecto levantado pelo pesquisador é sobre o tamanho das pedras de gelo, que tem aumentado. Há registros de pedras do tamanho de um ovo de galinha.
Municípios atingidos por granizo
Até 9 de outubro, 34 municípios tiveram situação de emergência declarada pelo estado devido à ocorrência de granizo, de acordo com a Defesa Civil do RS.
No dia 26 de setembro, a precipitação de gelo provocou estragos em Canoas. Foram contabilizadas 2.513 demandas, com distribuição de 3,9 mil cortes de lonas de 30 metros quadrados para cobertura de telhados danificados. A ação integra um plano emergencial do município para enfrentar eventos climáticos impactantes. Em maio deste ano, foi criado o Escritório de Resiliência Climática (Eclima), um serviço pioneiro no estado. A vanguarda está no trabalho de identificação de riscos climáticos e na atuação rápida diante de vulnerabilidades.
“Foi criado um Comitê de Gestão de Riscos, que é um Centro Integrado de Controle de Comando, em que o Eclima detém a liderança situacional trabalhando na transversalidade com outras diversas secretarias, sejam elas operacionais ou assistenciais”, afirma o secretário-chefe do Eclima de Canoas, Aristeu Ismailow.
Entre as ações práticas, estão comunicados e alertas, com a maior antecedência possível, de previsão de chuvas fortes, ventos, raios, ocorrência de granizo e as consequências do impacto dos eventos extremos na cidade.
Os alertas são classificados em três níveis: Aviso, Alerta ou Emergência, de acordo com o grau de gravidade. Por meio da Defesa Civil, o Eclima promove monitoramentos preventivos, com vistorias em áreas alagadas ou com inundações, assim como atividades de conscientização ambiental e ações humanitárias em apoio às pessoas atingidas pelos eventos climáticos.
No RS, nos últimos 32 anos, Santa Cruz do Sul sofreu com nove episódios de granizo, o recorde entre os municípios gaúchos. Na pesquisa, Bruna considerou somente municípios que não obtiveram capacidade de ação para uma resposta imediata e necessitaram de decretos de auxílios em nível federal. Isso quer dizer que podem ter ocorrido outros eventos com precipitações de granizo que não foram registrados em um sistema nacional.
Mapa de calor
No mapa de calor, as localidades do RS em que existem maiores concentrações de granizo têm cores mais fortes.
Nas regiões centro-norte e parte do litoral norte, há ocorrência significativa também associada ao tipo de relevo. Regiões mais elevadas são barreiras geográficas que tendem a favorecer a formação e o desenvolvimento de tempestades.
Existe uma tendência recorrente de quedas em relevos acima de 500 metros de altitude e em locais mais distantes do oceano, ou seja, mais para o interior continental – o efeito da continentalidade, também, intensifica a formação das temíveis Cumulonimbus, as nuvens gigantes carregadas de gelo que provocam granizo.
Desafios para obtenção de dados
“É muito difícil conseguir dados de granizo diretamente nos órgãos de Defesa Civil municipal por vários quesitos, principalmente políticos”, lamenta Bruna.
Por isso, a pesquisadora se baseou no que havia disponível: os Atlas de Desastres Naturais do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres da Universidade Federal de Santa Catarina, com dados dos estados de 1991 a 2012.
Ela também recorreu ao Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD), o qual apresenta, a partir de 2013, os decretos municipais homologados de situação de emergência e estado de calamidade pública.
O S2iD reúne diversos serviços da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec). É onde as informações sobre desastres são sistematizadas. Por lá, é possível consultar e acompanhar os processos de reconhecimento federal de situação de emergência ou de estado de calamidade pública. Além disso, o sistema fornece informações sobre transferências de recursos para ações de reconstrução e oferece informações sobre a gestão de riscos e desastres com base em dados oficiais.
“Meus alunos constantemente me perguntam sobre o termo da ‘Ebulição Global’ e questionam se realmente o cenário climático é tão catastrófico quanto as mídias mostram”, ilustra Bruna.
Ela entende que é fundamental, mais do que nunca, abordar o tema das mudanças climáticas, pois o conhecimento e a divulgação científica cumprem um papel importante para enfrentar a crise climática, a ignorância e as constantes fake news sobre o clima e os riscos para todos os seres do planeta.
“Dentro da sala de aula, busco ressaltar a importância de falarmos sobre as mudanças climáticas e como isso impacta no mundo inteiro e principalmente em nós, que moramos em um município plano (Porto Alegre) e com poucos metros acima do nível do mar”, observa a professora.
Edição: Extra Classe