Era manhã do dia 19 de outubro de 2023, uma quinta-feira, quando o Batalhão de Choque da Brigada Militar (BM) — acompanhado de uma retroescavadeira — acordou mulheres, crianças e pessoas LGBTQIAPN+ que residem na Kasa Okupa Cultural Jiboia. O objetivo? Retirá-las do local. A ação cumpria decisão judicial e foi coordenada pela Prefeitura de Porto Alegre, visando a derrubada de um muro da ocupação que fazia divisa com o terreno do Museu Joaquim José Felizardo, na rua João Alfredo, bairro Cidade Baixa, na Capital.
:: Prefeitura de Porto Alegre destrói casas de quilombo urbano em processo de regularização ::
Embora não fosse uma ação de despejo, a prefeitura decretou que o prédio fosse evacuado. As pessoas ocupantes se negaram a sair e, ao tentarem barrar a entrada da retroescavadeira, sofreram repressão da BM, que usou bombas de efeito moral para facilitar e permitir a entrada da máquina. No momento da demolição do muro, a retroescavadeira avançou e derrubou também parte da moradia, o que causou indignação nas pessoas moradoras que aguardavam do lado de fora.
Algumas delas forçaram o portão e entraram na área da ocupação no intuito de frear a derrubada. As que conseguiram entrar foram perseguidas pelos policiais militares e atingidas por cassetetes, balas de borracha e spray de pimenta. “Durante a demolição, foram realizadas ações ilegais como o corte da luz e água da Okupa, que possuem registros ativos próprios do imóvel. Encaminhamos denúncias ao Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) para avaliar a ordem judicial prevista que autorizou a demolição do muro e que abalou inclusive as estruturas do patrimônio histórico”, relata a advogada Stéphani Fleck da Rosa, que representa a ocupação.
Historicamente, Porto Alegre tem sido cenário de tensões envolvendo ocupações urbanas e o Poder Executivo municipal. De um lado, grupos vulneráveis em busca de um teto para chamar de lar. Do outro, ações judiciais da prefeitura cumpridas por forças policiais. Nesse contexto, fica a questão: qual dos lados está, de fato, cumprindo a Lei?
Espaço de resistência
Há dois anos, a Kasa Okupa Cultural Jiboia se instalou em um prédio privado na região central da Capital, com o propósito de acolher mulheres, mães, pessoas pretas e LGBTQIAPN+. Desde então, a ocupação tem tentado diálogo com a prefeitura para negociar a sua permanência no local. “Tentamos reuniões com vários órgãos municipais para sensibilizar e obter respostas, mas sem êxito”, afirma a advogada da Okupa Jiboia. A propriedade estava abandonada havia mais de 15 anos quando a ocupação começou.
De acordo com moradores da Okupa Jiboia, houve uma ação de reintegração de posse do terreno por parte de uma pessoa que não era a proprietária legítima. O processo foi, portanto, julgado improcedente. Após o pedido de reintegração de posse ser negado, o Executivo entrou com um processo de derrubada do muro, responsabilizando ocupantes pela não manutenção da estrutura. A prefeitura havia solicitado a derrubada do muro por liminar e perdido em primeirto grau, mas recorreu, e ganhou na segunda instância.
A demolição havia iniciado no dia 4 de outubro. Na ocasião, as pessoas moradoras se manifestaram contrárias e o Executivo recuou. Elas alegam, porém, que não foram intimadas sobre a decisão do recurso e que a ação do dia 19 de outubro foi uma tentativa de reintegrar de forma indireta.
Conforme a coordenadora estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM-RS), Ceniriani Vargas da Silva (Ni), havia uma reunião marcada no dia seguinte à ação, 20 de outubro, entre ocupantes da Okupa Jiboia e o secretário municipal de Cultura e Economia Criativa, Henry Ventura, para a negociação de como seria realizada a demolição do muro.
“O secretário atropelou todo o processo de mediação que estava sendo construído com uma agenda marcada para pensar as condições junto com a comunidade que está aqui ocupando esse prédio”, reclama Ceniriani.
Em nota, o Executivo declara que a Procuradoria-Geral do Município (PGM) acompanhou o cumprimento do mandado judicial que autorizou a derrubada do muro e que a ação foi ajuizada porque os proprietários e ocupantes do imóvel não tomaram providências em relação às rachaduras, de modo que o muro “apresentava risco aos ocupantes do imóvel e aos visitantes do Museu Joaquim José Felizardo, um dos equipamentos culturais da cidade e que pertence ao município de Porto Alegre”. Ainda de acordo com a prefeitura, o secretário municipal Henry Ventura e o procurador André Marino Alves acompanharam a ação de demolição.
De acordo com as pessoas moradoras, além da demolição do muro, foram danificadas paredes internas que serviam de área de convivência da Okupa Jiboia. Apesar disso, ocupantes permanecem no espaço e criaram uma vaquinha virtual para a reconstrução da estrutura.
"A Okupa Jiboia segue em luta, recebendo doações para reconstrução do muro, que foi substituído apenas por uma tela, tirando qualquer direito à privacidade e dignidade dos moradores", comenta a advogada Stéphani.
Destinação de imóveis ociosos para habitação de interesse social
Em Porto Alegre, ao andar pelos bairros da região central, é possível perceber muitos imóveis — públicos ou privados — desocupados por falta de manutenção. O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022 revelou que, nos últimos 12 anos, o número de imóveis permanentes vagos mais do que dobrou na capital gaúcha — um aumento de 48.934 para 101.013.
Pela Constituição, é permitido que imóveis desocupados sejam expropriados pela administração municipal em casos, por exemplo, de não pagamento do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) pelo proprietário em um prazo de cinco anos. Com esse respaldo, alguns edifícios vazios e casas antigas em mau estado foram sendo ocupados por movimentos de luta por moradia com a reivindicação de que sejam destinados para a habitação de interesse social. Além da Okupa Jiboia, outros dois exemplos de ocupações são a Casa Mulheres Mirabal e a ReXistência POA.
Essas ocupações têm sido uma estratégia política para que seja cumprida a função social da propriedade, constitucionalmente garantida pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001). No segundo artigo desta lei, está disposto que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”. Isso significa dizer que a propriedade urbana, embora privada, deve possuir uma função social.
Ainda de acordo com o Estatuto da Cidade, conforme os artigos 39º e 40º, a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor — Lei Municipal que estabelece regulamentação para o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo.
O Plano Diretor e a Política Habitacional
Neste momento, Porto Alegre passa pela revisão obrigatória de seu Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PPDUA), realizada a cada dez anos, sob expectativas de movimentos de luta por moradia acerca da destinação prevista para edifícios desocupados no centro da cidade. As discussões que permeiam a questão habitacional, porém, não parecem contemplar a emergência da questão social. Isso porque uma série de flexibilizações das regras do Plano Diretor de Porto Alegre tem sido proposta pela gestão de Sebastião Melo (MDB) com o objetivo de incentivar construtoras a investirem na construção de novos prédios e no reaproveitamento de imóveis já existentes no centro da cidade.
Para o pesquisador do Observatório das Metrópoles Mario Leal Lahorgue, priorizar a construção civil que não atende a parcela da população mais vulnerável vai na contramão da implementação e aperfeiçoamento de políticas de habitação de interesse social previstas no Plano Diretor da Capital. “O fato é que a habitação de interesse social está cada vez mais para trás nas prioridades da atual prefeitura. Coalizões dentro do governo que atendem a interesses privados querem estimular a construção indiscriminada e estão colocando isso como sinônimo de desenvolvimento. Mas isso não é desenvolvimento”, afirma o especialista.
Como explica Lahorgue, o verdadeiro desenvolvimento urbano é uma cidade inclusiva pensada para dar conta das desigualdades mapeadas, tornando essencial a identificação e análise das lutas pelo direito à moradia. Nesse sentido, a promoção do desenvolvimento do município de Porto Alegre implica necessariamente no cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.
"O Plano Diretor, seja como ele for ficar, tem que respeitar a função social da propriedade na cidade. Isso é constitucional. Priorizar a habitação de interesse social é uma política do Plano Diretor, porque ele também discute a distribuição das várias classes sociais dentro da cidade", defende o pesquisador.
"Para quem se governa em Porto Alegre"
Um ponto importante a ser considerado, conforme Lahorgue, é o direito ao espaço urbano em áreas centrais pelos segmentos mais pobres da sociedade. Mas, ao atrair novos negócios imobiliários para o centro da cidade, a prefeitura privilegia interesses de um restrito grupo de empresários em detrimento do interesse público. O artigo “Para quem se governa em Porto Alegre?”, publicado pelo Observatório das Metrópoles na coletânea “Reforma Urbana e Direito à Cidade”, apresenta a relação íntima da gestão Melo com o mercado imobiliário.
De acordo com o documento, as construtoras que lideraram a lista de doações para a campanha do atual prefeito Sebastião Melo durante as eleições de 2020 também aparecem como principais nomes por trás dos empreendimentos mais beneficiados pela prefeitura por meio dos Projetos Especiais de Impacto Urbano estipulado no Plano Diretor — instrumento que concede exceções às regras de construção em vigor na cidade. A principal financiadora da campanha foi a construtora Cyrela Goldsztein, tendo contribuído com R$ 200 mil, seguida por Iguatemi (R$ 100 mil) e Melnick (R$ 70 mil), responsáveis por megaprojetos de edifícios residenciais de alto padrão, além de atuar nos setores de condomínios fechados e “hubs da saúde”.
“Cada vez mais o foco da priorização é o mercado imobiliário. Se a gente olhar o que vem acontecendo com projetos de habitação de interesse social nos últimos anos, na prática, a prefeitura abandonou. A esperança de que o Plano Diretor vai ter um avanço não vai acontecer evidentemente. A não implementação dos instrumentos que já estão no Plano Diretor é uma escolha política”, sentencia Lahorgue.
O centro de Porto Alegre é um território em disputa. O pesquisador aponta que, neste espaço geográfico, conflitos urbanos evidenciam a luta de uma parcela da população pelo cumprimento da função social da propriedade urbana, garantida pelo Estatuto da Cidade, enquanto a prefeitura flexibiliza regras do Plano Diretor em prol de interesses do capital imobiliário.
Em carta aberta, Okupa Jiboia pede que prefeitura defina ocupação como moradia social
"A Ocupação Jiboia, espaço de luta e de moradia de mulheres e pessoas LGBTQI+ em Porto Alegre, vem sendo ameaçada e as pessoas que vivem nesse espaço vêm sofrendo violação de seus direitos sistematicamente durante todo o processo que envolveu a demanda por remoção do muro lindeiro ao Museu de Porto Alegre, que está sob gestão do prefeito Sebastião Melo, um inimigo dos movimentos populares e da luta por moradia na cidade.
É importante que se diga, as pessoas que vivem na ocupação constroem uma luta que é a luta diária pela vida das mulheres e das pessoas LGBTQI+ em todo o país, uma luta pelo território e por moradia, pelo direito à cidade e à vida, à educação, saúde, transporte, uma luta pelo direito de ser quem se é numa das cidades do RS onde mais pessoas são mortas por defenderem viver como são.
Esse espaço é espaço de construção diária de política pública para parte da nossa população que, no geral, não tem acesso a políticas públicas, justamente porque se tornou território e moradia dessas pessoas que, na falta de habitação, ocuparam um espaço vazio como vários que existem na região central da cidade, para construírem um espaço coletivo seu, para terem onde viver em segurança.
A ameaça ao espaço e às pessoas vem se intensificando nesta semana, principalmente no dia de ontem, quando, alegando terem ordem judicial para assim proceder, uma equipe responsável da prefeitura entrou com uma retroescavadeira pelo portão do museu e demoliu parte do muro que divide o território do museu com o território da ocupação, sem notificação, mandado específico, e sem garantir qualquer direito das pessoas que ali residem, ao serem acordadas na primeira hora da manhã com o muro sendo derrubado por cima do seu espaço.
No momento, abrir esse processo para mediação é uma saída para fazer cessar os abusos, o tensionamento com a guarda municipal que aconteceu durante todo o dia de ontem e as violações de direitos contra as pessoas que ali vivem.
Sabemos que essa é uma prática de expulsão de comunidades usada mais de uma vez contra o povo pobre e trabalhador da cidade, e que faz parte da forma como o governo Melo tem tratado as mulheres e a população LGBTQI+ durante anos. Em linhas gerais, enquanto a população luta para reconstruir cidades devastadas pelas enchentes, incluindo Porto Alegre, o prefeito avança com uma retroescavadeira contra o espaço da comunidade, que sem seu território teria ficado sem proteção contra o ciclone e as chuvas. Uma prefeitura que não constrói política pública e expulsa dos espaços quem busca saída para essa situação.
Mas a cidade é nossa! É do povo trabalhador, das mulheres, da população LGBTQI+ que constrói seus espaços com luta e trabalho todos os dias e ainda tem seus direitos negados sistematicamente por governos que apenas conhecem a lei da especulação imobiliária e do lucro acima da vida e a todo custo. Ocupação Jiboia resiste!"
Edição: Marcelo Ferreira