A chuva que caiu no Sul do país não foi impeditivo para que cerca de 1.500 mulheres de diversos estados se dirigissem à cidade de Chapecó, região Oeste de Santa Catarina, para celebrar os 40 anos do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), neste sábado (18). A celebração aconteceu na zona rural, na comunidade do Faxinal dos Rosas, e reuniu mulheres de diversas etnias, credos, raças, idades, que começaram a chegar a cidade ainda durante a semana, muitas delas percorrendo horas de viagem. Tendo como lema “MMC 40 anos existimos porque lutamos”, o evento contou com a participação de mulheres de diversos movimentos sociais e sindicais.
:: “A unidade das mulheres é fundamental para avançar na luta feminista por igualdade” ::
“Para mudar a sociedade do jeito que a gente quer, participando sem medo de ser mulher” foi o coro entoado diversas vezes durante a celebração. Foram realizadas místicas, intervenções artísticas, fala dos movimentos sociais e resgate histórico do MMC, que surgiu no fim do regime militar, época da surgimento de diversos movimentos populares que lutavam pela redemocratização do país.
Nova Itaberaba, hoje Chapecó, localizado a 557 km da capital Florianópolis marca o início do movimento em Santa Catarina. Ao mesmo tempo em todas a regiões do país muitas mulheres também estavam no mesmo movimento de criar espaços autônomos. A primeira reunião contou com 28 mulheres. Nos anos seguintes se expandiu para outros municípios, estando presente hoje em 16 estados brasileiros.
“Nós, trabalhadoras rurais, construímos a nossa própria organização. Motivadas pela bandeira do reconhecimento e valorização das trabalhadoras rurais, desencadeamos lutas como: a libertação da mulher, sindicalização, documentação, direitos previdenciários (salário maternidade, aposentadoria), participação política entre outras”, ressalta o movimento.
Na ocasião do seu surgimento, o MMC contou com o apoio de movimentos da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação, como as pastorais e as Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs), muito presentes no oeste catarinense liderados pelo bispo Dom José Gomes.
“Quando a gente olha para a história do movimento eu não poderia deixar de estar aqui presente lembrando a força, o apoio no início da fundação deste movimento do nosso saudoso Dom José Gomes. Olhar o passado com gratidão, celebrar o presente com alegria e olhar o futuro com esperança”, afirmou Dom Odelir José Magri, presente no evento.
O ato lembrou as companheiras que partiram.
Celebração da luta e da vida
“É com muita alegria que estamos aqui para celebrar a vida, celebrar a existência desse movimento que há 40 anos ousou sair de casa, se organizar e fazer a luta”, ressaltou Noeli Welter Taborda, da direção nacional do MMC na abertura do evento, juntamente com a dirigente Sirley Ferreira dos Santos, de Sergipe.
“Somos a diversidade do campo brasileiro. Aqui viemos e aqui estamos para reafirmar a nossa história. Reavivar nossa memória e dizer publicamente que a luta vale a vida e que a vida vale toda a luta, em um mundo em conflitos, em um planeta em devastação e uma humanidade que escolhe a guerra”, destacou Sirley.
Conforme destacaram as dirigentes, o percurso do movimento traz as marcas dos passos de uma construção coletiva feita em mutirão e pelo esforço de cada mulher camponesa que veio chegando. “No início parecíamos pouca, mas como sementes fomos nascendo e se multiplicando em cada canto do nosso Brasil”, apontou Noeli.
O MMC, destacou Sirley, veio no bojo de uma dinâmica de lutas sociais das quais as mulheres camponesas não hesitaram em marcar presença e envolvimento demarcar sua identidade. "Não nos ausentamos, nunca nos esquivamos, posicionamento firme, contundente e corajosamente jamais aceitamos a exclusão, a opressão e a discriminação como dado inevitável. A liberdade permeada por um projeto da mais alta dignidade para sarar o limite no nosso esperançar."
Momento de aprendizado
A indígena Kaingang e presidente do Cepin/SC, Sandra de Paula Santos, 40 anos e grávida de três meses, ressaltou que o encontro que marca as quatro décadas do movimento foi um aprendizado. “Ao escutar cada fala a gente começou a desenhar como levar isso para dentro do nosso movimento e fortalecê-lo”, disse.
Para ela, o mesmo preconceito e racismo que as mulheres camponesas sofrem atinge também as mulheres indígenas. “Tanto pelo olhar, vistas como pessoas não bem vestidas, a cor muitas vezes, do lugar onde a gente vem. Os locais de atendimento quando você chega, da maneira como você é olhada, eu creio que é os mesmos preconceitos, o mesmo racismo que as camponesas sofrem nós mulheres indígenas sofremos também. O coletivo faz a diferença na luta”, frisou.
Josefina Silva Boscher, 70 anos, do Coletivo das Mulheres Negras de Santa Catarina, ao falar da importância do MMC, pontuou sobre a representatividade que o movimento traz. "O movimento tem todas as etnias. Todo tipo de pessoa que é do campo, da cidade, que é das águas. As camponesas dão uma lição muito grande."
“Nós do Oeste de SC, que somos de esquerda, nos acolhe fortemente. Às vezes nós negras, cheias de toda uma história, somos mais retraídas, mas estamos aprendendo juntamente com todas as mulheres, de todas as raças, a nos amar, valorizar e a lutar pelo que a gente faz. E as mulheres camponesas fazem isso”, afirmou a militante que veio da cidade de Joaçaba. “Olha mulher, através da trajetória desses 40 anos de luta, cada uma buscando aquilo que está dentro de si mesma, vamos todas nós, incluídas ou ainda excluídas, vamos lutar para ocupar o nosso espaço”, pontuou Josefina.
Adolescentes que vieram do Mato Grosso do Sul, Vânia Marisol e Ana Clara Rodrigues dos Santos estiveram pela primeira vez em um encontro do movimento de mulheres e ficaram felizes com a experiência. “É a primeira experiência que eu tive com o MMC. Eu vim por causa de uma senhora que está há 40 anos do movimento. Foi o primeiro movimentos de muitos pelo qual eu me apaixonei, foi um lugar que eu me senti muito acolhida. Foi uma experiência incrível. Eu quero entrar no movimento. É incrível ver essa geração nova com tanto conhecimento”, afirmou a estudante Vânia, de 15 anos.
“Vim do MS junto com uma conhecida, uma professora minha. De início eu não sabia o propósito e chegando aqui pude conhecer mais sobre o assunto e tudo mais. Eu cresci em uma família que nunca foi para esse lado. Como as pessoas julgam eu nunca consegui entender muito, mas vindo aqui eu consegui entender o lado como funciona corretamente. E consegui perceber que é bem diferente da forma que todo mundo pensa. Quem tem convívio com a direita, você acaba pensando de uma forma totalmente diferente, porque eles te explicam de uma determinada forma. E dai você vem aqui, tem o convívio, você vê que não é o monstro de três cabeças, que é totalmente diferente do que te disseram”, expôs Ana Clara, 15 anos.
Início de tudo
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, em diversos locais dos interiores do país, mulheres agricultoras, pescadoras artesanais, quebradeiras de coco, extrativistas, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, marisqueiras, posseiras, boias-frias, diaristas, parceiras, sem-terra, acampadas, assentadas, faxinalenses, assalariadas rurais, agregadas, indígenas, quilombolas, mulheres do campo, das florestas e das águas e de demais comunidades tradicionais se reuniam com a proposta de organizar movimentos autônomos de mulheres. Era um contexto da modernização tecnológica da e na agricultura com a chegada dos pacotes de venenos e da chamada “revolução verde”, que trouxe grandes rupturas do sistema social (efeito perverso e adverso) para as mulheres e as famílias camponesas, afetando a vida em diferentes dimensões no campo.
“Os 40 anos de existência do MMC têm um significado muito importante para nós, mulheres camponesas. Muitas foram as conquistas: os direitos sociais como aposentadoria, salário maternidade, auxílio doença, o SUS, entre outras, que tanto bem têm feito para as mulheres e famílias do campo, assim como para toda a sociedade”, ressaltou Noeli.
Do Rio Grande do Sul, a militante do MMC Adriana Mezzadri, 45 anos, moradora da cidade de Charrua, região noroeste do estado, destacou que o movimento só chegou a 40 anos de história, luta e resistência "graças a muitas mulheres camponesas que na maioria delas não estão aqui conosco hoje, mas ousaram começar nos anos 70, na luta pela democratização do país, começar a se reunir, debater a necessidade e o direito de ser mulher, de não ter medo de ser mulher". Segundo ela, esse processo de luta e resistência foi construindo o movimento, que "veio da resistência indígena, negra e popular do campo e da cidade, das água e das florestas, construindo e conquistando vários direitos”.
Além das místicas e apresentações artísticas, o evento contou com uma feira de produtos agroecológicos, indígenas, do Movimento Sem Terra, MMC e outros.
Edição: Marcelo Ferreira