A alienação cumpre grande papel em favor dos inescrupulosos
Nesta semana caberia festejar a volta dos últimos 32 dos 1477 brasileiros resgatados do horror e medo de morte na Faixa de Gaza.
Mas não vou escrever sobre isso. Quero dividir informações que me ajudaram a qualificar o entendimento a respeito de uma relação direta entre o que se passa em Porto Alegre, no Brasil e no Planeta. Basicamente: Há uma mesma raiz e uma mesma funcionalidade atuando por igual, em processos de desorganização e degradação de ecossistemas, em todos aqueles níveis.
Os atores são distintos, mas sua prática e sua fundamentação não diferem em nada. Tudo se associa à facilitação (e legalização) da concessão de privilégios a alguns poucos, em detrimento da maioria, e de tal maneira açodada que já compromete o futuro de todos.
Por uma questão de justiça, vale mencionar que foi em matérias da Agência Pública e do Sul 21 que consegui enxergar tais conexões. E isso diz muito sobre a importância de valorizarmos estas e outras mídias que operam no campo das avaliações críticas.
Começando pelo Sul 21. Em documentos enfaixados sob o título Os Donos da Cidade estão análises ricas e detalhadas que merecem ser buscadas no original. Em minha leitura simplificada repito o que ali está bem claro: por aqui a democracia e a gestão orientadas para a população deixaram de existir. Isso porque a prefeitura abandonou preocupações com as necessidades da população, passando a agir como elemento de suporte a processos destinados à valorização de imóveis como ativos financeiros. É a municipalidade à serviço dos latifundiários urbanos.
E não importa que tenhamos na Capital mais de 100 mil domicílios vagos e outros 27.250 de uso ocasional, que poderiam eventualmente ser – em alguma proporção – arrecadados (Decreto 19.622 de 2016) para atender finalidades públicas, como instalação de equipamentos comunitários ou destinado para habitação social.
A prefeitura desconsidera isso ao mesmo tempo em que estimula a construção/oferta de apartamentos de até R$ 11 milhões e reprime na força ocupações urbanas do povo Sem Teto e Moradia (como a Saraí e os Lanceiros Negros, entre outros) para depois manter aqueles espaços vazios.
Como regra, atua nesta Capital um simulacro de planejamento aplicado de forma a “destravar a cidade para o caminho o adensamento”. Adotado sob suspeitas de irregularidades, este mecanismo envolve farta criação de leis e alteração de regras urbanísticas. Invariavelmente acompanhadas por obras públicas concentradoras de poder e riqueza, tais processos direcionam favores a grandes empreendimentos capitaneados por pequeno número de organizações privadas.
Ao mesmo tempo, iniciativas e tradições relacionadas à consolidação de processos de cidadania e participação popular são bloqueados pelo poder público, levando Porto Alegre no rumo contrário de tendências observadas em cidades como Roma, Paris, Londres, Amsterdam e Nova York, onde a vida pública, o turismo e a sociabilidade são abastecidos por mercadinhos e outros pequenos negócios.
Não são tênues as semelhanças desta situação com o que ocorre em outras dimensões deste país onde “cerca de 32 milhões de brasileiros (15,8% da população) não têm acesso a água tratada e ao menos 91,3 milhões (45% da população) não têm esgotamento sanitário”.
E aqui me valho de matéria da Agência Pública. Em Os donos da água: 50 empresas podem usar mesma quantidade que metade do Brasil (não deixe de acesar o texto original), se lê que nos últimos dez anos, enquanto a CPT registrava 2.447 conflitos por água (com 20 assassinatos), e o Atlas dos Desastres contabilizava 14 mil ocorrências de secas e estiagens, com 121,5 milhões de pessoas afetadas (118 mortos) e prejuízos de R$ 217 bilhões, 50 grupos empresariais teriam assegurado, para si, o direito de captar 5,2 trilhões de litros por ano. Água suficiente, segundo a matéria, para abastecer 93,8 milhões de pessoas.
Como no caso das normas facilitadoras da ocupação concentrada dos territórios urbanos, também aqui os critérios de legalização do uso de bem público essencial mereceriam suspeição. Isso porque as outorgas para uso da água “não consideram a variação da disponibilidade” nem “as dinâmicas de uso e ocupação do solo, levando em conta as mudanças climáticas, que vão forçar novas adaptações”, nem prazos razoáveis em contexto de crise climática, pois estamos tratando de “prazos de validade das outorgas, que chegam a 20 anos”.
E quem seriam os principais beneficiários deste recurso cada vez mais escasso? Obviamente, grandes empresas do agronegócio!
Na Bahia, apenas o grupo Santa Colomba (tabaco, grãos e café) teria outorga para captação de 302,2 bilhões de litros/ano, água suficiente para abastecer a população dos 14 municípios mais populosos daquele estado.
No todo, e considerando apenas as reservas de água sob controle federal, alguns grupos empresariais do agronegócio (sem contar companhias sucroalcooleiras e de celulose) deteriam outorga para 1,74 trilhão de litros de água/ano. No setor sucroalcooleiro 13 empresas concentrariam quase 500 outorgas, com permissão para captar 1,24 trilhões de litros por ano. Já a Suzano Papel e Celulose, com 1,4 milhão de hectares de eucalipto, teria o direito de utilizar outros 469,8 bilhões de litros por ano em 59 outorgas espalhadas por oito estados de quatro regiões.
De que nos vale saber disso? Esta é a grande questão. Talvez possamos lembrar disso nas próximas eleições, ou quando formos chamados a economizar na água do banho. E talvez encontremos aí mais alguns suportes ao fortalecimento de consciências e determinações. Afinal, a alienação cumpre grande papel em favor dos inescrupulosos.
E como a alienação fortalece mecanismos alienantes, só nos resta um caminho: apoiar mídias independentes que, em seu espaço de atuação, trabalham em favor dos contra os nossos interesses.
E já que tudo é semeadura, e que sem poesia a vida não tem sentido, a música de hoje é uma homenagem de Bruna, Ave Cantadeira, para Margarida.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko