Rio Grande do Sul

QUILOMBOS URBANOS

Atlas Presença Quilombola em Porto Alegre lança sua versão física na Feira do Livro

O lançamento do Atlas contou com o debate intitulado 'Terras Quilombolas', na última sexta-feira (10)

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Cartografia social no Quilombo dos Machados - Foto: Rita Coronel da Rosa, 2018

Porto Alegre é a capital brasileira com o maior número de quilombos urbanos do país. São 11 territórios auto-reconhecidos, sendo 10 certificados pela Fundação Cultural Palmares. A história e elementos dessas comunidades quilombolas é contado no Atlas Presença Quilombola em Porto Alegre/RS.

A obra é dividida em dois volumes, organizada por Cláudia Luísa Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt, com apoio do Programa de Pós Graduação em Geografia da Ufrgs. Lançado em 2021, o material ganhou versão física na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, na última sexta-feira (10). 

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O lançamento do Atlas contou com o debate intitulado "Terras Quilombolas", com a participação de Cláudia, a liderança do Quilombo Machado, Luís Rogério Machado, conhecido como Jamaika, e o advogado da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, Onir de Araújo. No final do debate foi feita a leitura do Manifesto Negro e Popular em defesa dos povos contra a violência colonial, o apartheid e o genocídio.  

Conforme destacou Cláudia, é importante debater a regularização fundiária e as demandas das comunidades. Sobretudo dos seus territórios, "em relação a todas as questões que envolvem educação, saúde, moradia, habitação e tudo mais que garanta a qualidade de vida e o modo de viver dos quilombolas".

Censo Quilombola

A professora destacou os dados do Censo Quilombola, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022. “O Censo aborda e traz algumas questões importantes, uma matriz importante para a nossa discussão. Estamos completando praticamente 35 anos da Constituição Federal, e pela primeira vez ele é realizado.” 

Para Cláudia essa demora ressalta o quão tardiamente as políticas públicas vão chegando dentro do acesso para esses territórios. "Essa relação de fixação no tempo, inclusive conceitualmente, é o que nos causa um grande impasse nessa discussão. Entender que as formas de opressão e de violência colonial contra os grupos sempre vão se atualizando, e as resistências dessas comunidades também vão se atualizando."

De acordo com o Censo, a população quilombola no país é de 1,3 milhão, ou 0,65% do total de habitantes. Dos 5.568 municípios do Brasil, 1.696 possuem população quilombola. “É interessante destacar que 4,3% da população quilombola reside entre territórios titulados. No Censo, foram mapeados 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados. Esse é um cenário parcial”, frisa Cláudia. 

Para ela a parcialidade do processo faz com que as comunidades quilombolas passem por uma situação cada vez mais crítica: a violência aos territórios que não são oficializados.

Quilombolas no RS

No levantamento feito pelo IBGE, o RS aparece como o 13º estado com maior população quilombola absoluta no Brasil. São 17.496 pessoas residentes dentro desses territórios oficialmente delimitados, ou seja 0,16% do total da população gaúcha.

De acordo com o Censo, 2.608 pessoas quilombolas do RS vivem em territórios oficialmente delimitados (14,91%) e as demais 14.888 vivem fora destes territórios (85,09%). Já o total de pessoas (sendo elas quilombolas ou não) vivendo nos territórios oficialmente delimitados do RS é de 4.496, e 1.888 destes habitantes não se declararam quilombolas.

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Em Porto Alegre, quatro territórios foram oficialmente delimitados, Areal da Baronesa, Fidelix, Silva e Alpes. Dentro desses territórios, de acordo com Cláudia, vivem 2.295 pessoas, contudo autodeclaradas quilombolas são apenas 495. A professora chama atenção, por exemplo, que o Quilombo Machado ficou de fora do Censo e traz 50% da totalidade da sua população autodeclarada quilombola. O quilombo encontra-se em processo do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI) em andamento. 

Planejamento e governança quilombola

“Temos impasse na política nacional de pensar como é que nós vamos trabalhar em termos de planejamento. Quando me refiro a quilombos, isso envolve a questão do planejamento e da governança quilombola, porque esses territórios são autônomos. Estamos falando de um planejamento de governança quilombola, que tem que ser respeitado em todas as suas diretrizes, em todas as suas características”, defende.

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Conforme expõe Cláudia, o Brasil tem atualmente 3.456 comunidades quilombolas auto-reconhecidas. Dessas, 2.798 são certificadas e apenas 134 são totalmente tituladas. Já o RS tem 136 comunidades quilombolas certificadas e auto-reconhecidas. Contudo apenas quatro terras quilombolas são tituladas, sendo que duas são parcialmente. “Esse é o grande abismo que existe, que mostra com detalhe a luta da terra no nosso país”, destaca a professora.


Atlas foi lançado em formato digital em 2021 / Foto: Divulgação

Quilombo urbano, a luta negra dentro da cidade

Para Jamaika, apesar do levantamento do Censo ser relevante, ele não retrata a realidade como ela é. “Sabemos que é muito mais. A gente vê o apagão que muitas vezes acontece com as pessoas para se identificar enquanto quilombola, para se auto definir enquanto quilombola. Muitas vezes é assim também para se auto definir enquanto negro. A gente vê o trabalho de esmagamento que o Estado faz, que a sociedade faz com a gente. Cada vez mais nos empurrando, derrubando os territórios, cada vez mais matando a gente, botando fogo nas comunidades de terreiro”, expõe. 

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Em sua fala a liderança destacou os desafios que perpassa as comunidades quilombolas e povos originários como um todo, em especial para se manter vivo. Ele resgata também a questão da ancestralidade e da luta travada até os dias atuais. “Sempre digo por enquanto vivo, que quer se manter vivo, denunciando, todo esse racismo que aconteceu, que acontece até hoje, nesses 523 anos. Desde os sequestros, nossos antepassados da África, trazidos para cá. Não é fácil, em nenhum sentido, mas a gente se assume. A gente é negro, a gente é de luta. A gente corre todos os dias pela nossa comunidade. A gente é capoeira, é batuque, a gente é um bando, a gente é vida, a gente é ancestralidade”, afirma. 

Jamaika enfatiza que o Estado tem obrigação de entender as comunidades quilombolas, seu modo de vida e respeitar. “A gente tem que lutar contra a caneta, a gente tem que botar, cara! Tem que ir lá dizendo, a gente tá aqui! A gente luta, a gente vai continuar lutando, a gente não quer morrer. Ser quilombola, principalmente mulher negra, não é fácil, mas a gente tem que lutar.”

Ressalta que o quilombo urbano é a luta negra dentro da cidade. “Fomos corridos pelo agronegócio, pela especulação dos grilheiros. E a gente vem para cidade para fortalecer o quilombo urbano. Para fazer a nossa resistência dentro da cidade.”

Jamaika faz um convite para que as pessoas visitem e conheçam os quilombos urbanos da Capital. 

Presença que chegou com a cidade 

Para Onir, ao falar dos 11 quilombos da capital gaúcha, destaca que é uma presença que chegou junto com a cidade. “É uma presença muito marcante em que, de certa forma, esse pleito étnico, territorial quilombola, também se ligou ao pleito originário. Tanto é que hoje existem dez retomadas indígenas, Kaingang, Guarani e Xokleng. É uma Porto Alegre em que as expressões civilizatórias originárias e negras quilombolas estão saindo para fora no sentido de garantir os direitos que estão previstos na Constituição Federal”, frisa.

Assim como abordado por Cláudia e Jamaika, o advogado ressalta que nos 35 anos da Constituição Federal, é uma luta cotidiana para que os direitos das comunidades quilombolas sejam efetivados. 

Indagado pelo Brasil de Fato RS sobre o aquilombamento que perpassa muitos dos territórios quilombolas urbanos da Capital, ele pontua que faz parte da tradição quilombola, uma tradição de acolhimento. “Ela não impõe, ela acolhe, e ela cria não o universo, mas um pluriverso de gestão do território. É uma coisa natural.”

Especulação imobiliária 

Na avaliação de Onir, a especulação imobiliária que acontece em muitas das comunidades quilombolas, é tratada como limpeza étnica mesmo. “É um impacto profundo. Todas as comunidades quilombolas de Porto Alegre, ou estão com questões judicializadas, ou estão sendo impactadas diretamente por esses projetos de especulação, é o Cidade Nilo, as torres da Beira Rio, os indígenas com a ponta do arado. É o quadro que você vê de remoção cotidiana das famílias negras, de locais onde elas historicamente estavam localizadas. É o caso da Ilhota, da antiga colônia africana. É uma situação cotidiana que se acentuou nos últimos 10, 12 anos.”

Onir pontua que o caso do quilombo Kédi é um exemplo cabal dessa violência. “Eles já perderam dois terços do território original, estão sofrendo uma compressão violentíssima por parte da Prefeitura de Porto Alegre a serviço, digamos, dos interesses de um empreendimento que é da CFL Zaffari Country, Melnick. Ou seja, de apropriação daquele território onde estão há 100 anos.”

“Vamos ter que unificar esses territórios quilombolas numa perspectiva junto aos povos originários de rediscutir o projeto de nação desse país em todas as escolas, municipal, estadual e federal. Objetivamente, com o atlas se abriu uma perspectiva para que nós possamos avançar na consolidação. Cada território quilombola que se consolida é um território de liberdade. Mas estamos sob ataque”, afirma Onir. Em sua fala ele chama atenção para o que vem acontecendo com o povo Palestino e a opressão e genocídio que vem acontecendo. 

Neste link o Manifesto lido após o debate.


Edição: Katia Marko