O rio Amazonas nasce no sul do Peru, atravessa o norte do Brasil e deságua no Oceano Atlântico. Sua bacia hidrográfica abrange sete países e inúmeros povos ancestrais. Na canção Aya T’ica, suas múltiplas significações convergem em espanhol, português e quéchua. A parceria da peruana Martha Galdos com o letrista paraense Joãozinho Gomes e o compositor e produtor paulista Dante Ozzetti foi criada em homenagem ao centenário de um dos grandes nomes da integração latino-americana, Chabuca Granda.
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Nos versos em português, Joãozinho relaciona Chabuca à flor ancestral que nasce na floresta. Também aborda o momento da pajelança, que Martha traduz com a palavra Altomisayoq, referente a um sacerdote andino. Os cruzamentos culturais também ocorrem na sonoridade da canção, composta em ritmo ímpar, pouco comum nesta parte do continente, mas com elementos que remetem às tradições musicais latino-americanas, como o lundu e o landó.
O single foi lançado pela Tratore e possui um videoclipe gravado em Tarapoto (Perú) e Ilha do Marajó (Brasil). O arranjo, produção e direção musical ficaram por conta de Dante Ozzetti, com mixagem e masterização de Luis Lopes. Participam da faixa os músicos: Felipe “Fi” Maróstica (baixo), Guilherme Kastrupp (percussão), Salomão Soares (teclados) e Adriana Holz (cello).
A cantora Martha Galdos vive em São Paulo há cinco anos. Chegou com um disco lançado na bagagem, Respiraré, uma coletânea de interpretações de clássicos, como Upa neguinho, de Edu Lobo, e Cardo o ceniza, de Chabuca Granda. No Brasil, idealizou o festival Mujer Sabiá e deu início ao seu trabalho autoral.
Desde outubro, está na Europa lançando esse primeiro single. Esteve na Bienal de Florença, ao lado de seu pai, o pintor Enrique Galdos Rivas, que recebeu um prêmio por sua trajetória de mestre do neo-figurativismo abstrato.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Martha Galdos fala sobre esses encontros, misturas e ancestralidade.
Brasil de Fato RS - Por que você decidiu morar no Brasil?
Martha Galdos - Tem vários motivos, racionais e intuitivos. Eu sempre tive acesso, em casa, à cultura musical brasileira, pela minha família que gosta muito. E eu sou uma pessoa curiosa da voz, dos sotaques, dos acentos, e me cativei pela musicalidade da língua desde criança. Então comecei a minha carreira cantando música brasileira. Aos 36 anos, finalmente percebi que tinha muitos sinais da vida, esse vínculo.
Eu precisava realmente contemplar aquilo pessoalmente. E foi então que eu vim para São Paulo, em 2018, e percebi a cena pulsante da cidade. Decidi exercer esse sonho de poder sentir o Brasil por dentro. É muito além do que muitas vezes as pessoas pensam de uma cultura de fora, vai muito além do que eu imaginava.
Fui percebendo a sociedade, os costumes, a literatura, e me permitindo me misturar com diferentes grupos e tribos. Então, eu acho que tem sido uma escolha muito bem feita, porque eu fui além daquele Brasil de fora, de gringo, para aquele Brasil de verdade, e espero que esse caminho continue. E aí eu vou criando, me recriando e cocriando, com outros artistas, outras pessoas.
BdFRS - Que aproximações e diferenças você percebe entre as músicas peruana e brasileira?
Martha Galdos - Eu notei, por exemplo, que a música brasileira, na região do Amapá e do Pará, é muito parecida com a cultura musical caribenha. E no Peru a gente acessou muito as músicas da América Latina toda. Por exemplo, a cúmbia é um fenômeno muito grande na Colômbia, no Peru, no Brasil, de certa forma em parte do Pará. Só que a cúmbia com sotaque brasileiro é diferente da cúmbia com sotaque amazônico do Peru, mesmo que seja o mesmo ritmo. Têm essas conversas interessantes.
A música folclórica do Peru pode ser classificada em música costeira, andina e amazônica. Só que cada região tem danças inúmeras. Então, no lado do Peru, a gente também tem várias coisas de cultura popular, só que elas não são necessariamente antropofagizadas para serem misturadas com pop ou feitas de uma forma que o jovem ouça na festa. Fica sendo mais local mesmo. E em questão de música mais comercial, mais mainstream, nosso país continua sendo um país de alto consumo de salsa, por exemplo, e de cúmbia. O que não quer dizer que todas as expressões do país sejam só essas. Mas tem uns horizontes que estão sendo atravessados. Por exemplo, a música andina está sendo misturada com pop, o que seria o brega no lado brasileiro. Então, eu acho que são fenômenos parecidos.
A música brasileira, na região do Amapá e do Pará, é muito parecida com a cultura musical caribenha
Agora, tem uma música afro-peruana, o Festejo, que tem certa semelhança com o Jongo. Não diria igual, mas uns compassos nos tempos. Mas, sim, na hora que eu sinto um samba, uma bossa nova, uma célula rítmica brasileira, evidentemente, é diferente da peruana. A afrodiáspora, em si, tem uma potência muito penetrante. Então as pessoas sentem um groove, mesmo que elas não entendam. Pelo menos na audiência que eu formei nesses cinco anos, as pessoas que vêm no meu show se sentem permeadas, sentem que dialoga com elas.
BdFRS - Que influência você traz da arte do seu pai para a música?
Martha Galdos - Meu pai é uma pessoa muito despierta de reconhecer uma criação muito originária. Ao estudar as iconografias pré-hispânicas, pré-colombianas, ele procurou uma fonte originária e por isso que ele é o mestre do ancestralismo. Esse é um aspecto mais acadêmico. Mas ele também é uma pessoa muito alegre, que faz piadas, que gosta do palco, gosta de cantar. Ele me botou no palco desde criança. Eu cresci no ateliê do papai, com os amigos artistas, com a boemia da época. Com cinco aninhos eu já estava fazendo meus primeiros showzinhos com essa galera.
Outro apelido que ele tem é o mago das cores. As cores representam a vida alegre, boemia, o vinho, a força da paixão, o sangue. Eu também me sinto muito colorida nesse sentido. Mas ao mesmo tempo que eu cito que sou filha dele, é muito importante também estar dentro da minha individualidade, de ter uma criação pessoal, de não ficar refém de ser a filha de um pai tão importante, tão mestre. É importante eu encontrar meu caminho, fazer a minha arte. Mas eu honro e trago as raízes, trago essa força, que é bem do lado do meu pai e da minha mãe também. Então eu gostaria de dizer que minha mãe é uma pessoa muito talentosa, mesmo que ela seja de outra época, não se dedicou ao canto, por exemplo, que ela faz muito bem.
BdFRS - Como foi o processo criativo ao lado de Dante Ozzetti e Joãozinho Gomes?
Martha Galdos - Eu tinha ouvido o trabalho de Dante com a Patrícia Bastos [do Amapá]. Achei super interessante a maneira que ele metabolizou os ritmos de lá e reconstruiu a história. Eu senti uma modernidade, ao mesmo tempo que uma raiz muito potente.
Tivemos a chance de conversar para participar de um edital para o centenário da Chabuca Granda, compositora peruana. E decidimos criar uma música. Isso foi em paralelo com a direção musical dele num projeto que fazemos com o Sesc, que se chama Colores. Dante fez a direção e a gente começou a trabalhar nessa música. Eu tinha dado algumas referências. Comentei, por exemplo, do merengue venezuelano, que é um ritmo que tem cinco tempos, cinco por oito, como chamam os músicos nessa linguagem nossa. É um tempo que nem no Brasil, nem no Peru, se conhece muito. E aí ele também tinha ouvido os landós, que são as músicas afro diaspóricas nossas, peruanas.
Dante desenvolveu essa história que fala justamente do nascimento da Chabuca nos Andes e do nascimento do rio Amazonas. O rio dos rios
Um dia, Dante apareceu com a melodia, sem letra ainda. Aí ele passou para seu parceiro, Joãozinho Gomes, letrista paraense que mora no Amapá. E ele fez uma pesquisa e desenvolveu essa história que fala justamente do nascimento da Chabuca nos Andes e do nascimento do rio Amazonas. O rio dos rios. E, nossa, foi uma coisa muito especial!
Eles me convidaram para fazer a letra em espanhol. E fomos criando uma canção que não pertence a um gênero específico, mas que traz uma memória. Eu acho que a música percorre a ancestralidade de uma maneira livre. Que é um pouco a maneira que o próprio Dante trabalha. Eu acho que ele se alimentou, se nutriu muito bem, e depois jogou para fora esse processo criativo ao encontro do nosso. Então, foi um trabalho de várias mãos e corações.
Edição: Katia Marko