A violência é irrepresentável, não há palavras que possam dizer o que ela produz
Em nosso grupo “Diálogos feministas”, temos falado sobre o que o extermínio de Gaza produz em nós de indignação, estupefação e revolta. E mesmo se escrevemos a respeito, é verdade que seguimos sem entender e sem palavras suficientes para dar conta do que isto nos causa. Falta sentido e faltam significações.
A violência é irrepresentável, não há palavras que possam dizer o que ela produz. O trauma, sabemos, é inenarrável exatamente por esta insuficiência da linguagem para dar conta do que a ela escapa. Lembro da declaração de Alain Resnais, cineasta da nouvelle vague francesa que produziu “Hiroshima mon amour” no final dos anos 50, para tentar dizer algo sobre a segunda guerra mundial e sobre a bomba de Hiroshima: “Tratava-se de fazer um filme para falar da impossibilidade de fazer um filme sobre Hiroshima”. É mais ou menos com esta disposição que escrevo esta coluna. E do mesmo modo como Alain Resnais contou, para seu projeto de falar do indizível, com o roteiro da escritora Marguerite Duras, recorro aqui ao que outros escreveram.
Peço perdão se a comparação lhes parece pouco modesta, mas é a que disponho. Então, vou primeiro remeter vocês à leitura do importante artigo do jornalista João Filho, colunista da Intercept Brasil, publicado neste sábado 4.11 sob o título “Jornalistas defendem exterminar Gaza”, cujo subtítulo é: “Genocídio é abertamente defendido na grande mídia”. Neste importante texto-denúncia, João Filho se refere, de saída, às declarações de James Elder, porta-voz da Unicef: “Gaza se transformou em um cemitério para milhares de crianças. É um inferno na terra”, ao que ele acrescenta: “além das bombas, a falta de água, de comida e de energia impõem uma tortura psicológica às crianças sobreviventes, que carregarão o trauma para futuras gerações”.
Na sequência, João Filho se refere ao recado deixado pelo ex-diretor do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, Craig Mokhiber, quando se aposentou, onde nos diz que o que acontece em Gaza é um genocídio. A ONU fracassou e está submetida aos interesses dos EUA e ao lobby de Israel: “Mais uma vez, estamos vendo um genocídio se desenrolar diante de nossos olhos [...] Nas últimas décadas, partes importantes da ONU se renderam ao poder dos EUA e ao medo do lobby de Israel, abandonando princípios e se afastando do próprio direito internacional”. E João prossegue nos dizendo que efetivamente, o povo palestino está cercado e na mira de um plano de limpeza étnica comandada pelo governo de Israel, com o apoio da maior potência do mundo.
Isto dito, João Filho nos informa de sua indignação pelos que apoiam abertamente o extermínio do povo palestino, referindo-se às declarações da jornalista Déborah Srour, jornalista judia brasileira residente em Nova York, recentemente demitida do grupo rede Bandeirantes, responsável pelo programa “Hora Israelita”, programa de rádio do qual Deborah Srour era integrante. A demissão da jornalista ocorreu após suas declarações de que todos os palestinos são “animais”, que “não há civis inocentes em Gaza”, e ainda: “Se eles se comportam como animais, então Israel tem de lidar com eles como animais”, ou seja, sem fazer qualquer distinção entre terroristas e a população civil.
Com essas palavras, a jornalista reproduzia, na verdade, o discurso do Primeiro-Ministro Israelense, do governo eleito de extrema direita, logo pós o massacre de 7 de outubro, quando ele comparava os palestinos com ratos que estariam camuflados por toda parte, de onde a necessidade de bombardear todo e qualquer lugar, mesmo hospitais. Déborah Srour, por sua vez, estava há 22 anos alimentando o discurso de ódio, como era o caso de toda a equipe do programa “Hora Israelita”, fortemente identificada com o bolsonarismo e emitindo frequentes comentários racistas contra palestinos.
Contudo, a emissora somente a demitiu depois da repercussão feita pelo Jornalismo Matinal. A reação da demitida foi impressionante: “Sou mil por cento judia e sionista. Não sou daquelas judias que se dobra, que vai para o gueto calada ou como uma carneira para a câmara de gás”. Zero respeito pelos judeus exterminados nos campos de concentração nazistas. Quando profissionais da palavra pervertem a linguagem a este ponto, bombardeando a memória de um povo, o que dizer?
Por ora, só consigo agradecer ao jornalista João Filho por seu escrito que me permitiu esta reprodução-denúncia, e ao Matinal, que germinou a desestabilização do absurdo estado de coisas. Não podemos deixar de falar disso tudo, por mais impossível que nos seja. E como psicanalista, tenho uma relação intensa com a memória, com as palavras e com o limite delas para dizer o trauma, que muitas vezes somente a poesia subverte. Por isso, deixo para vocês um poema inédito de Lígia Sávio, escritora que leio e admiro:
“Não sei se haverá outro tempo.
O cerco se fecha sobre nossos corpos.
Não sentes isso?
Sai de dentro do teu mundo etéreo
E vem olhar os destroços aos teus pés.
As nuvens em que vivias
desfazem-se em chuvas negras
de venenos e de morte.
O que será preciso fazer
Para que ouças as vozes dos que morrem?
Tua inércia permite que o mal se instale mais e mais
com uma tranquilidade surpreendente.
Não sei se haverá outro tempo
a não ser que venhas junto
acender as fogueiras necessárias.
* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora Bestiario, 2022).
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko