Na quinta-feira à noite (2), peguei o ônibus em Porto Alegre rumo a Três Passos. Pela frente, 500 km que meu pai Diógenes Oliveira fez nos últimos anos dezenas de vezes. O velho guerrilheiro participou da rearticulação da velha guarda da luta armada nas margens do Rio Uruguai por Memória, Verdade e Justiça.
Em algumas dessas idas, estive junto e lembro com carinho da travessia de balsa em Porto Soberbo rumo ao município argentino fronteiriço Aristóbulo del Valle, onde o italiano Roberto de Fortini vive até hoje em uma base da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Fortini afirma com convicção que aquela base onde mora há décadas não lhe pertence, mas sim a Organização, extinta na década de 1970. Talvez seja ele o último dos clandestinos.
:: Vanguarda Popular Revolucionária receberá Memorial em Esperança do Sul (RS) no próximo domingo ::
Fazia vento na estrada, era o maldito ciclone varrendo novamente nosso combalido Rio Grande. Pensei nesses caminhos do meu pai Diógenes e vi nas macegas já altas, essas trilhas se fechando com sua partida e a idade avançada dos seus companheiros que aqui resistem. Bravamente, diga-se de passagem, pois encarar a velhice com as sequelas da tortura não é coisa pouca.
Cheguei na rodoviária de Três Passos no dia seguinte, onde me esperava o companheiro de todas as horas Paulo Faccioni. Um dos fundadores do MST, Paulo nasceu no distrito de Lara, conhecida como a aldeia dos “briguentos” pelo povo de Esperança do Sul, conforme destaca Faccioni com orgulho. Hoje, mora em uma casa mais próxima ao centro do município, o qual pertenceu a Três Passos até 1995.
Nessa casa, meu pai Diógenes também esteve algumas vezes com seus irmãos castilhenses Aristóteles e Iguatemi comendo um bom churrasco de porco criado ali mesmo. A esposa de Faccioni, dona Claudete e seu filho Matheus compõe a família rural ítalo-germânica do município de ascendência em maioria alemã. Não tem casa naquelas colinas sem um jardim repleto de flores, para lá de caprichado. E com mesa farta também de produtos coloniais, tipo queijo, salame, pão de milho, chimia e requeijão.
Em sua casa, Faccioni me contou sobre a origem do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a relação dela com a Teologia da Libertação e esse noroeste insurgente que dá nome a matéria. Quando jovem, Paulo iniciou sua militância na Pastoral da Juventude Rural e participou das conspirações nas igrejas que driblaram a repressão para ocupar, com milhares de trabalhadores rurais, acampados em lonas pretas, os enormes latifúndios gaúchos improdutivos. Na carona de sua pick-up FIAT vermelha baleada pelos anos de estrada de chão articulando mandatos como os dos deputados finado Adão Pretto, Frei Sérgio, do qual foi chefe-de-gabinete, Edegar Pretto e agora Adão Pretto Filho, Paulo também me contava sobre os países que conheceu representando o MST. E foram vários.
Agora, Faccioni, o agitador do caminhão de som que, junto com Severiano (atualmente no gabinete do deputado estadual Adão Pretto Filho), ajudou a levantar Sem-Terras Rio Grande à fora para marchar em fileira, estava de volta à ativa. Já na sexta-feira, me levou na rádio local, onde entrei com Clarissa Mertz ao vivo para falar sobre o evento de inauguração do Sitio de Memória da Barra do Turvo. Ambos, filhos de ex-presos políticos da VPR. Aliás, em uma baita sacada, os organizadores, e aí entra também o histórico articulador cultural e político de Três Passos, Juarez Braga Zamberlan, pensaram a cerimônia dentro da programação da 8ª Feira do Peixe de Esperança do Sul. Evento que bomba na região!
Além de uma bela cerimônia de inauguração do Sítio de Memória, também teve depois uma baita festa com aquele peixe bem composto na taquara verde. Mas, antes disso, quase que nada acontece.
O Rio Uruguai subiu 16 metros, tomou a casa dos ribeirinhos e a travessia de balsa foi proibida um dia antes do evento. Se a polícia pegasse alguém atravessando, recolhia o motor do barco na hora e retirava a habilitação do balseiro infrator. Roberto de Fortini, 87 anos, mentor do pesqueiro de fachada que iria receber os guerrilheiros da VPR em 1970, dependia dessa travessia para vir da Argentina. Sorte que pelas bandas de Misiones também existia um “Guma”, marítimo mais popular do escritor Jorge Amado.
Após um dia percorrendo caminhos rurais em condições muito precárias na Província argentina de Misiones, Fortini conseguiu embarcar em uma lancha clandestina na Barra do Turvo. Nem a correnteza violentíssima do Rio Uruguai, que fez o balseiro “Guma” criado naquelas barrancas ter que subir para soltar a lancha quilômetros de distância para conseguir atracar no ponto mais abaixo que estava em linha reta inicialmente, pode o impedir. Ao desembarcar com seu filho de criação Alejandro, de Fortini puxou aquele calhamaço de notas de pesos argentinos, moeda pra lá de desvalorizada, pagou o balseiro e então nos abraçamos no Bar da Daia, point tradicional dos ribeirinhos do lado brasileiro do Rio Uruguai.
Outro que não poderia faltar no evento, o “arqueólogo” da Memória Política, Aluízio Palmar veio em um carro lotado a partir de Foz do Iguaçu, no Paraná, por um caminho muito longo e acidentado devido as cheias dos adjacentes do Rio Uruguai que interditaram os trajetos convencionais mais curtos e com melhores condições. Não foi pouca água que caiu no Sul do Brasil, região que vem sofrendo tragédias sucessivas em virtude do aquecimento global.
O fato é que no dia, um domingo com sol, a cerimônia foi emocionante!
A população ribeirinha foi chegando ao local do Sitio de Memória na Barra do Turvo cedinho da manhã. Militantes de outros municípios, como Frederico Westphalen, autoridades locais e dirigentes sindicais de diversas categorias aplaudiram de pé os heróis da resistência democrática contra a ditadura de 21 anos da elite covarde. Do mais simples camponês a mais alta autoridade presente na figura do prefeito de Esperança do Sul, Moisés Alfredo Ledur, todos estavam lá representados. Talvez esse tenha sido o primeiro engarrafamento político da história na Barra do Turvo, onde agora estudantes, curiosos do tema, turistas e familiares de presos políticos como eu terão um lugar para refletir sobre a importância da memória, verdade e justiça. Para além do slogan.
:: Filho converte casa do pai guerrilheiro em um espaço de memória e cultura ::
Meu pai Diógenes Oliveira foi o homem que, mesmo barbaramente torturado, não entregou Carlos Lamarca. Sabia exatamente onde Lamarca se encontrava, mas daquele gaúcho taura os torturadores não arrancaram nada. Naquele local da beira do Rio Uruguai onde hoje vive a memória, guerrilheiros como ele pensaram em um porto seguro para receber o Capitão da Guerrilha. Era um refúgio repleto de mata atlântica pujante, de vida para Lamarca e os tantos companheiros que precisavam se curar das sequelas da tortura, sair da mira da repressão ditatorial que já chegava atirando sem nenhum direito a defesa. Uma realidade que infelizmente persiste até hoje, principalmente contra a população negra das periferias brasileiras.
Em uma guerra totalmente desigual, os imortais guerrilheiros da VPR deram exemplo de bravura e lealdade para que hoje possamos inaugurar um Sítio de Memória pela democracia como esse da Barra do Turvo, base sul da legendária VPR. Nestes pagos do noroeste insurgente, um povo composto por muitos Faccioni’s, “os briguentos do Lara”, seguem desafiando o status quo em pleno interior gaúcho, agora com um Sítio de Memória em homenagem aos que enfrentaram com armas os ditadores referenciados por Bolsonaro. Em seu gabinete enquanto deputado federal, o ex-presidente (2018-2022) estampava com orgulho o retrato dos cinco cruéis ditadores brasileiros.
Pelos caminhos de meu pai Diógenes, o guerrilheiro da liberdade, voltei satisfeito com as macegas já baixas indicando que esse caminho, de Porto Alegre até Três Passos, vai perdurar. Com meus filhos e netos, ali estarei embaixo da árvore na Barra do Turvo lendo em voz alta os dizeres da placa do Sítio de Memória da VPR e contando, “Essa também é a tua história. Tu não vieste do nada.” Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça. Saberemos cumprir!
Confira entrevista com Paulo Faccioni
Guilherme - Qual era a leitura até então do povo ribeirinho sobre onde é hoje o Sítio de Memória?
Faccioni - A leitura que eles faziam é que era uma furna, cavocada pelos comunistas. Não sabiam muito do que se tratava. Ocorreu em uma época em que não se falava, era ditadura. Hoje, com a democracia e a iniciativa do Sítio de Memória, as pessoas estão falando sobre isso. Comentam que algum parente trabalhou na empresa pesqueira que na verdade era uma fachada para abrigar guerrilheiros perseguidos, entre eles, o comandante Carlos Lamarca.
Guilherme - Como enxergas esse Noroeste Insurgente?
Faccioni - O Noroeste gaúcho tem uma vasta tradição de luta. Por essa região passou a Coluna Prestes com forte adesão da população local, ocorreu o primeiro movimento armado contra a ditadura civil-militar no Brasil e foi fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Essa fundação ocorreu graças a Teologia da Libertação e com ela uma visão progressista da igreja e seus agentes.
Guilherme - Como imaginas esse Sítio no futuro?
Faccioni - No governo passado, durante quatro anos, ouvíamos todo dia pronunciamentos sobre a volta da ditadura sem as pessoas saberem de fato o que ela foi, achando aquilo normal. Então, esse monumento aprofunda o debate sobre o que foram os horrores da ditadura, o estrago que a ditadura fez nesse país. Muitas pessoas vão conhecer o Sítio de Memória, pois na Barra do Turvo circula muita gente em virtude do turismo da região do Salto do Yucumã. Que as gerações mais novas reflitam, porque isso foi tão reprimido, tão trancado que agora queremos que esse espaço possa ser de perguntas e respostas.
* Jornalista e escritor
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko