A chuva que caiu na última quinta-feira (2), finados, não impediu que as pessoas prestigiassem o bate-papo entre o escritor baiano ganhador do Prêmio Jabuti de 2020, Itamar Vieira Junior, e Jeferson Tenório, carioca radicado em Porto Alegre e também ganhador do Jabuti em 2021.
Os escritores participaram da mesa “Conversas Inspiradoras” que foi mediada pela escritora pernambucana Nathallia Protazio. O encontro aconteceu na 69ª Feira do Livro, no Espaço Petrobras Carlos Urbim. Com o local lotado, do lado de fora muitas pessoas sob capas e guarda-chuvas escutavam atentamente a conversa permeadas por perguntas instigantes e risadas.
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Já de quebra a mediadora indagou quantas pessoas eram da periferia da capital gaúcha, poucas levantaram as mãos. O que fez suscitar a primeira intervenção da conversa feita por Tenório, que afirmou que a leitura salvou sua vida.
“A coisa mais transgressiva que fiz na vida foi me tornar leitor. Não foi a escrita que mudou a minha vida, foi a leitura. Ela me deu a possibilidade de imaginar e inventar o futuro. E eu acho que quem vive na periferia, em lugares que são difíceis de viver, muitas vezes a imaginação é um modo de resistência, no sentido de que quando você imagina, quando você projeta o futuro, você valoriza mais a sua própria vida e a sua existência", ressaltou.
Ele conta que quando veio morar em Porto Alegre circulou por vários bairros periféricos da Capital, e nas cidades de Alvorada e Viamão. Para Tenório, o maior papel da literatura é proporcionar às pessoas a possibilidade de inventar e imaginar futuros possíveis.
“Eu sou profundamente grato aos professores, as pessoas que apareceram no meu caminho e me disseram, leia, leia porque isso vai transformar a sua vida e, de fato transformou. Eu me considero essa pessoa que fez essa trajetória, saiu de determinado ponto, atravessou esse ponto. Mas eu entendo que o centro pode ser em todo lugar.”
Nordeste como ficção
Vinda do Nordeste, Nathallia contou sua experiência ao chegar ao Sul e da presença de Belchior. Nessa linha ela indagou a Itamar como ele se relaciona com o Nordeste, como ele traz a região em sua literatura. O escritor baiano começou comentando que há quatro anos quando lançou Torto Arado esteve na Feira do Livro de Porto Alegre.
“Foi um evento importante naquele momento, e agora chego aqui e tem um público muito maior. Quando eu vi essa chuva, eu disse, não vai ter ninguém. E aí eu cheguei nesse auditório e vi tanta gente reunida para ouvir, falar sobre literatura, sobre ficção. Eu me senti miserável. Por quê? Porque eu disse que sou de açúcar. Se tivesse essa chuva, eu estaria em casa. Se fosse eu, como leitor, eu não estaria aqui. Eu estaria em casa me abrigando. Mas que maravilha que vocês estão aqui.”
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Itamar afirmou que a literatura é esse espaço onde ele busca referências. “Essas referências são carregadas de reconhecimento sobre o lugar de onde eu vim, lugar de onde eu nasci, elas aparecem na minha literatura como algo inescapável”, pontuou.
Sobre a ficção ele destaca que é algo tão humano, e que talvez seja ela que nos diferencie de outras espécies. “É difícil que o Nordeste saia de mim, onde eu vou, vou carregar esse Nordeste, que é referência, que é a história, que é a trajetória, que é essa força, essa potência brasileira, cultural, literária. Eu carrego essas referências como algo que faz parte de mim. Tanto que eu nem consigo falar como algo extra a meu corpo. Eu estou falando sobre o meu corpo.”
Vida, dor e literatura
Questionado sobre se a literatura deveria ensinar, Tenório opinou que não. Também foi questionado o que dói mais, a vida ou a literatura. “Não acho que a literatura deva nos ensinar alguma coisa. Não acho que a literatura é edificante, que ela vá tornar alguém melhor. Mas eu acho que a literatura deveria nos dar vontade de viver, o que é diferente de você entrar em um livro e buscar algum tipo de ensinamento. Justamente porque a literatura não vai te dar esse ensinamento. Ela vai te provocar algumas questões. Ela vai te perguntar coisas. Mas ela não vai te oferecer respostas”, apontou Tenório.
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Para ele o que a literatura faz é dar vontade de viver, viver outras vidas, outras experiências. “Ela vai te oferecer uma vida, uma experiência que talvez você nunca tenha, mas ali, naquelas páginas, você vai ter. Pelas coisas que eu já passei, as coisas que eu já vivi, eu não tenho dúvidas que a vida dói mais. Já me perguntaram se me doem as cenas violentas, trágicas que acontecem no livro. E eu disse muito tranquilamente que não. Não me dói escrever. Não é algo ruim, é uma alegria escrever. Não é um sofrimento da escrita.”
Sonhar com os personagens
“Eu sonho com os personagens, e às vezes eu sonho com coisas que vão acontecer no livro. Eu passei um tempão sonhando com a Bibiana e a Belonísia, e a faca. Era faca para todo lado. E depois sonhava com a Luzia (Salvar o Fogo), não com o Moisés”, contou a mediadora que questionou se Itamar também sonha com os personagens.
O escritor baiano afirmou que vive com os personagens. Afirmou que para ele é preciso acreditar nas personagens como existências reais. “Senão eu não consigo falar delas. Então elas existem em toda a sua plenitude para mim. Eu estou aqui conversando com vocês, mas lá no fundo tem uma história que me acompanha. A gente está sempre acompanhado, e essa companhia é importante, acho que ela nos lembra todo o momento, olha você é humano. Acho que a nossa vida, a nossa existência tem esquema sagrado mesmo. E tudo aquilo que a gente faz com paixão, inclusive a leitura, guarda esse sentido do sagrado.”
Existe paternidade sem maternidade?
Ao comentar sua experiência com o livro Avesso da Pele, Nathalia provocou Tenório com a pergunta se haveria paternidade sem maternidade, ao que o escritor afirmou que não. Aliás a paternidade é tema da tese de doutorado do escritor.
“Eu queria encontrar uma paternidade perfeita. E eu achava que essa paternidade estava nessa representação africana. A conclusão que eu cheguei é que pai é traumático em qualquer lugar. Em algum momento, ele vai exercer esse papel de causar algum tipo de trauma nos filhos. Ao final da tese percebi que eu não estava falando do pai. Eu estava falando, muitas vezes, da mãe, da maternidade.”
Segundo ele, na ausência do pai, cabe a mãe a tarefa de educar os filhos. “O último capítulo da minha tese se chama A busca pelo pai é a busca pela mãe, que é quando eu comecei a perceber que não existe paternidade sem maternidade. No Avesso da Pele eu tentei criar uma representação paterna que não fosse violenta, que não fosse bruta, mas que também não fosse idealizada”, expôs.
Onde a literatura não está
Livrarias deveriam conter todo tipo de literatura, contudo, não foi o que aconteceu quando Nathallia precisava dar um presente de aniversário a sua mãe. Estando em Porto Alegre, e sua mãe em Pernambuco, mais especificamente em Garanhuns, pediu ao primo que procurasse um livro de uma escritora. Não havendo os nomes sugeridos, pediu que tirasse foto da estante onde havia um exemplar de Torto Arado em meio a vários livros de auto-ajuda.
“Qual é a sensação que você fica quando você sabe que o seu livro, às vezes, é o único de literatura, em uma livraria que devia ter literatura?”, questionou.
“Eu fico triste. Acho que tem muita coisa que merece estar lá também. Mas tem uma coisa em relação a esse livro que me deixa muito feliz, que é a capacidade de, talvez sem querer, com que eu tenha escrito essa história, a narrativa tem de se ligar às pessoas de uma maneira muito direta, nos lugares mais inimagináveis, onde você não espera encontrar literatura e lá tem alguém com o livro”, afirmou.
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Segundo Itamar, o melhor prêmio que poderia receber é ter escrito um livro que não é inacessível para a maioria das pessoas. “Não estou falando do ponto de vista econômico, porque a gente sabe que um país tão desigual quanto o nosso, o livro ainda é um objeto de luxo para muitas pessoas. Mas do ponto de vista da compreensão daquela história, independente do tempo, da escolaridade, do lugar onde ela vive. Essa é uma história que pode comunicar algo importante pra ela, algo relevante.”
Ainda de acordo com o escritor, quando se escreve, a escrita está direcionada a um corpo, contudo sem idealizar o mesmo. “Sou amante da literatura, apaixonado por leitura, para mim os livros deveriam estar em todos os lugares. Os livros de literatura, os romances literários, de conto, poesia. A gente deveria encontrar em supermercado, no posto de gasolina, no ponto de ônibus. Esse livro deveria ser acessível para todos.”
Grande personagem
Indagado sobre qual seria a personagem mais difícil que criou, Tenório comentou que uma que deu bastante trabalho foi o da Estela, do livro Estela Sem Deus, por se tratar de uma história que acompanha a vida dela dos 13 aos 16 anos, que tinha como sonho ser filósofa.
“Me deu muito trabalho por uma questão óbvia, por uma questão de gênero, e o meu receio de cair em determinados estereótipos, determinados caricaturas. Foi uma personagem que eu me aproximei nesse sentido, de reescrever até a exaustão. Foi a personagem em que eu mais estive próximo, mais me apeguei justamente por causa desse trabalho, desse convívio que eu tive com ela”, expôs.
Liberdade e literatura
Provocado sobre como se constrói liberdade com a literatura, Itamar ressaltou que o princípio da literatura já guarda o sentido do que é a liberdade. “Acho que a liberdade irrestrita, esse conceito que nós temos de liberdade é um pouco utópico. Mas só o fato de você escrever, de você poder expressar o que você pensa, de você refletir o mundo, tentando que essa reflexão tenha o mínimo de amarras, eu acho que isso já guarda esse sentido de liberdade”, afirmou. Conforme destacou a relação de literatura e direitos humanos, não é uma relação nova.
“Direitos humanos não é algo que está dado, é algo que é construído em sociedade, que nós elaboramos a partir dos nossos interesses e da vida em comum. Ela vai sendo alterada ao longo do tempo, porque vai incorporando outras questões, que muitas vezes não surgem a princípio. Nós, como leitores, quantas vezes somos atravessados pelas questões que atravessam os personagens que nos cativam. É no processo de leitura que a gente vai imaginando, projetando personagem, vai encadeando os acontecimentos. É um ato de profundo engajamento, e nesse engajamento a gente vai se reconhecendo, a gente reconhece nossa própria humanidade. Porque a dor, o preconceito, tantas coisas que nos atravessam, atravessam os seres humanos de uma maneira definitiva.”
Por fim, ao voltar a comentar o livro Avesso da Pele, Nathallia indagou a Tenório se no ato de matar o pai ele estaria matando a tradição. Sobre essa questão o escritor pontuou que no contexto do livro a figura do pai era uma referência de autoridade que para quem escreve causar essa morte é necessário, e recorda de um debate recente em que participou sobre Nietzsche e a morte simbólica de Deus.
“Se você ficar preocupado com o que a sua mãe vai pensar, não vai conseguir escrever. Nós temos a tendência de, e é muito mais fácil, delegar as suas escolhas a algo superior. Para quem escreve, eu acho que não é um bom negócio. Justamente porque a escrita vai te exigir esse, digamos, divórcio de Deus ou dessa autoridade para que você tenha liberdade de criar. Se você ficar vinculado a essa ideia de autoridade, você não vai conseguir fazer uma escrita que, de fato, seja até libertária.”
Para ele a melhor definição de maturidade é quando você consegue negociar com o seu desejo. “Se você negocia bem com o seu desejo, está tudo certo. Se você realiza o desejo, tem condições de lidar com as consequências dele depois, e acho que na escrita vai por aí. As escolhas que você toma na escrita, e aquele é o seu desejo, e depois você vai conseguir negociar com esse desejo e com as consequências dele, eu acho que aí você consegue realizar uma boa obra. Eu tive que matar esse pai, essa ideia de autoridade, para que seja livre e consiga escrever.”
Edição: Katia Marko