Foi no quase-ontem. Ali, dobrando a esquina da história, há 60 anos atrás, em Angicos, pequena cidade no sertão do Rio Grande do Norte, aconteceu a memorável experiência de alfabetização de adultos na qual 300 homens e mulheres do campo, da classe trabalhadora, se alfabetizaram em 45 horas, a partir do que à época se chamava o "sistema" ou o "método" Paulo Freire.
:: Pé no chão, força na luta! Descolonizar a educação, democratizar e reconstruir o Brasil ::
A experiência realizada sob o governo de Aluízio Alves (RN) contou com importante participação, sob a coordenação de Paulo Freire, de jovens professoras, dirigentes do movimento estudantil universitário, da juventude comunista, da juventude universitária católica e da juventude estudantil católica. Foi uma espécie de “piloto” a partir do qual se projetou a realização do Programa Nacional de Alfabetização, em iniciativa do governo João Goulart, com o objetivo de alfabetizar e com isso politizar 5 milhões de pessoas, em um contexto onde, lembremos, analfabetos não podiam sequer exercer o direito ao voto. Com o golpe civil-militar de 1964 essa foi uma das primeiras ações a serem perseguidas e criminalizadas.
As dobras da história
Um registro desta experiência compõe a capa do livro “Pé no chão! Na construção e defesa da EJA pública e popular”, que um grande grupo de educadoras(es) de Porto Alegre estará lançando e autografando nesta quinta-feira, 2 de novembro, às 18h, na 69ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre. Nela, à esquerda, um Freire sem barba observa uma reunião do grupo de coordenadores dos círculos de cultura, na cadeia municipal de Angicos, um dos locais nos quais se realizavam os cursos de alfabetização.
A publicação tem em sua capa frontal, à direita, uma outra foto emblemática. Em primeiro plano um animado grupo de jovens estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), da Totalidade 6, de uma das escolas da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, estão sentados em círculo em um espaço aberto, em uma aula de História na periferia da cidade. Eles debatem um dos temas geradores que organiza a aula na EMEF Saint Hilaire, no Bairro Lomba do Pinheiro, em dezembro de 2022.
Ao fundo da imagem, um sol faz vezes de moldura, a evidenciar a energia criadora que ilumina os momentos que são as aulas da EJA para os estudantes que a ela acorrerem. Na parte superior da capa há um mapa da cidade com pontos indicando no território as escolas nas quais existe a Educação de Jovens e Adultos. Muito poucas em relação à demanda existente. Sobre o mapa algumas insígnias em faixas fincadas no chão: “Escola sem mordaça”, “Resistimos em luta”. “Educação não é mercadoria”, “EJA é nosso direito”. Uma seta no extremo sul da cidade aponta o caminho de Porto Alegre: à esquerda!
Resistir é preciso
Vivemos uma conjuntura onde os atuais gestores das políticas públicas da cidade estão mais preocupados em fazer negócios ou “parcerias” com empresas privadas, utilizando os recursos públicos, e vender os espaços públicos para o mercado imobiliário revelando assim a característica privatista de suas ações. Diante da agenda neoliberal que pauta as ações dos gestores públicos da cidade, a EJA resiste como modalidade essencial para estudantes das diversas comunidades atendidas.
Sob as adversidades, nossa resposta é a reivindicação para que se cumpra esse que é um direito constitucional nos próximos Planos de Educação em 2024, e o testemunho da possibilidade, ontem e hoje, da boa luta para assegurar o direito à educação pública, gratuita, laica, democrática, antirracista, de qualidade e popular, assim, socialmente referenciada.
E não estamos sozinhos. Nossa gratidão a todas as entidades que se somaram à iniciativa para que ela pudesse chegar além fronteiras, identificadas também na capa da publicação:
A força do coletivo, sob a sombra dos jacarandás em flor
O livro que está sendo lançado na Feira reúne em 18 produções a participação de 42 autoras e autores, todos com larga experiência na modalidade. São educadoras(es) das escolas e das Universidades públicas (Ufrgs e Uergs) que trabalham com a EJA na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre.
A obra, de 254 pgs., reúne produções que abordam temas como o Mapa da EJA em Porto Alegre, diagnóstico da demanda potencial de matrículas, planejamento da política pública, Plano Municipal de Educação, financiamento, história da modalidade, alfabetização nas Totalidades Iniciais, experiências e relações universidade-escola, organização curricular, política cultural, legislação, lutas associativas, inclusão, população em situação de rua, ensino remoto sob a pandemia e perspectivas de continuidade dos estudos no Ensino Médio e profissionalização.
:: Em sua 69ª edição, Feira do Livro de Porto Alegre tem início nesta sexta-feira (27) ::
A obra é organizada pelos também professores da EJA Marco Mello e César Rolim e está sendo comercializada na Ladeira Livros além da banca dos independentes na Feira do Livro.
"Una novia muy hermosa que se chama libertad"
O belo slogan da edição da Feira do livro de 2023 é justamente “Quem lê, sabe o caminho”. Sim, mas dizemos: Quem lê criticamente o mundo, sabe o caminho! A nós, do campo democrático e popular, esse é o elo que nos aproxima e irmana todos, todas, todes: as lutas pela liberdade e o fim das desigualdades! Sob esse elo estão Paulo Freire, a EJA pública e popular, o Brasil de Fato RS e o seu público leitor.
Ao aguerrido grupo que faz acontecer e aos muitos apoiadores do Brasil de Fato RS, um farol a iluminar os caminhos, nossos cumprimentos pela reversão da decisão equivocada da plataforma Youtube, e a reconquista de seu canal na plataforma.
A última das estrofes dos versos de “Los Hermanos”, do grande Atahualpa Yupanqui, que sintetiza maravilhosamente essa e tantas lutas que temos e havemos de travar ainda:
Yo tengo tantos Hermanos / Que no los puedo contar /
Y una novia muy hermosa/ Que se llama libertad
* Professores na Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira