A ampla mobilização das escolas contra o projeto de municipalização de instituições de ensino estaduais adquiriu proporções ainda mais significativas na audiência pública realizada na manhã desta terça-feira (31), no plenarinho da Assembleia Legislativa (AL), em Porto Alegre. O encontro, promovido pela Comissão de Educação Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da AL, trouxe relatos de direções de escolas sobre a falta de diálogo com as comunidades locais na implantação da medida e de prejuízos ao aprendizado dos estudantes. Convidada, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) não participou.
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A participação dos docentes e de diversas entidades representativas abordou a unilateralidade do processo implementado pela Seduc - que não está contemplando as opiniões das comunidades escolares atingidas pela medida. Além disso, também apontou a incapacidade das prefeituras suprirem o aumento da demanda por matrículas em suas redes de ensino, visto que muitos municípios já enfrentam dificuldades orçamentárias e não conseguem cumprir as metas previstas pelo Plano Nacional de Educação (PNE) de atendimento da Educação Infantil.
Dentre as dezenas de manifestações no evento, uma das mais contundentes foi a da diretora-geral do 39º núcleo do Cpers Sindicato, Neiva Lazzarotto. Ao comentar sobre o trabalho de mobilização da entidade contra as medidas do governo nas escolas gaúchas, ela lembrou que a informação sobre a municipalização foi divulgada pela imprensa em agosto passado.
A dirigente salienta que, somente no raio de abrangência do 39º núcleo – que conta com 130 escolas na Zona Sul dentre as 250 da Capital – existem grandes dificuldades de acesso à educação pública que são negligenciadas pelo governo. Somada às dificuldades de atendimento para a demanda da educação infantil em Porto Alegre, a situação tende a se tornar insustentável caso o projeto seja implementado.
“A fila de espera de seis mil crianças não atendidas na educação infantil da Capital representa o tamanho da omissão desse governo de Sebastião Melo na educação. Não vamos nos negar a acolher as crianças nas escolas estaduais, mas essa decisão não pode ser de cima para baixo. Consideramos um retrocesso e nos somamos a quem diz não à municipalização. A secretária usou um argumento cínico de que racionalizando despesas com escolas iria ter mais dinheiro para pagar os professores. Isso é uma grande mentira”, destaca Neiva.
Secretária Estadual de Educação não enviou representante
A audiência ocorreu em formato híbrido, o que garantiu participação de centenas de pessoas, entre estudantes, pais, professores e lideranças da educação de todo o território gaúcho. A Seduc também foi chamada, contudo, enviou ofício poucos minutos antes da audiência descartando a participação, alegando “conflito de agenda”.
A presidente da Comissão, deputada Sofia Cavedon (PT), lamentou a ausência da titular da pasta, Raquel Teixeira. Ela ressaltou que o governo foi convidado com bastante antecedência e que poderia ter enviado alguma representação.
De acordo com ela, as comunidades das escolas nas quais são anunciadas a municipalização enfrentam uma série de dificuldades em função das decisões autoritárias da Seduc e das Coordenadorias Regionais de Educação. Ela lembrou que a legislação atual determina que a opção pela municipalização deve partir da própria cidade, sob pena dos estudantes, funcionários e pais de alunos sofrerem as consequências de um modelo que não busca o desenvolvimento das condições de ensino.
Conforme a parlamentar, a reivindicação é que que exista parecer prévio do Conselho Estadual de Educação para efetuar a mudança de gestão, tal como ocorre em Porto Alegre. A normativa vigente exige a consulta à comunidade para a mudança de gestão das escolas.
“Nós queremos mudança da norma que permite que o fato aconteça sem ouvir a comunidade. Queremos que o Conselho estadual de educação analise os documentos e exija uma justificava maior para a municipalização. O modelo atual deixa à mercê da discricionariedade do Executivo essa medida”, ressaltou.
Para a deputada Luciana Genro (PSOL), o projeto de municipalização tem o objetivo de enfraquecer a gestão das escolas e o Cpers Sindicato.
"O governo tem um projeto, que é muito claro, que está representado nesses projetos de lei que não têm nenhuma conexão com a comunidade, e tem como objetivo restringir a participação na gestão das escolas. É um projeto que visa quebrar a unidade dos professores a nível estadual, o Cpers, e dispersar estas forças que hoje defendem a escola pública”, destacou.
Municipalização dificulta matrículas
A necessidade de cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) e os limites de gastos pelos municípios foi abordada pela titular da Promotoria Regional de Educação de Santa Maria, Rosângela Corrêa. Segundo ela, a municipalização pode piorar os já baixos índices de matrículas na educação infantil.
“Apenas 46,3% dos municípios atingem a meta de ofertar vagas para crianças em creches. Além disso, apenas 45,1%, menos da metade atendem 100%, que é uma meta do PNE. Tem que fazer um chamamento para ver como que eles vão atender o seu dever de casa antes de assumir as escolas. Devendo vagas quem será acionado, se o Estado ou município. Também é importante que seja verificado o limite prudencial da responsabilidade fiscal, pois se (os municípios) assumirem mais escolas não vão poder contratar professores”, avalia.
“Que sociedade nós vamos ter no futuro se abrirmos mão de uma gestão democrática nas escolas?”
Os depoimentos de diretoras das escolas incluídas no projeto de municipalização mostraram a situação de incerteza a respeito das medidas planejadas pelo governador Eduardo Leite (PSDB) para a educação. A possibilidade de eliminação dos vínculos entre professores e estudantes a partir da municipalização é um temor que perpassa toda a categoria.
Uma das escolas que estão na mira do governo para ser municipalizada é a Escola Estadual de Ensino Fundamental Anita Garibaldi, localizada no bairro Belém Velho, em Porto Alegre. A diretora, Laura Vey, manifestou a indignação com relação à afirmação da secretária Raquel Teixeira em uma reunião fechada com as direções, dizendo que as diretoras teriam que se “desapegar das escolas”.
“Nessa reunião, nós fomos orientadas a desapegar das escolas. Desapegar das escolas é desapegar das famílias e de todo o trabalho pedagógico que está sendo feito, e ninguém vai desapegar das escolas. Que sociedade nós vamos ter no futuro se abrirmos mão de uma gestão democrática nas escolas?” afirmou ela, arrancando aplausos do público.
Além da Anita Garibaldi, outras escolas que compareceram presencialmente na audiência foram Escola Estadual de Ensino Fundamental Jardim Renascença, Escola Estadual de Ensino Fundamental Coronel Tito Marques e a Escola Estadual de Ensino Fundamental Euclides da Cunha.
Ao todo, a audiência encaminhou 17 ações que devem ser feitas nas mobilizações regionais para impedir que o processo de municipalização seja colocado em prática. Dentre elas, estão o planejamento da da educação na perspectiva do Plano da Educação e através do processo de gestão democrática, uso do Regime de Colaboração entre prefeituras e municípios para a otimização dos espaços no ambiente escola e abrir Educação de Jovens e Adultos (EJA) e Ensino Médio onde há necessidade.
Além disso, a Comissão de Educação deve encaminhar uma moção de repúdio contra a municipalização e a garantia de uma gestão democrática na próxima Conferência Estadual de Educação, que ocorre em 17 de novembro, em Porto Alegre. Também será encaminhada ao governo gaúcho uma contraproposta à municipalização, buscando a implantação de tempo integral com regime de colaboração, acolhendo inclusive a educação infantil.
Ao longo das próximas semanas, a Comissão deve realizar visitas em escolas no alvo da municipalização. A ata de audiência será encaminhada ao Ministério Público (MP), Conselho Estadual de Educação, Seduc e A Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), dentre outras entidades.
Edição: Marcelo Ferreira