Rio Grande do Sul

LEI DAS FEIRAS

Agricultores ecológicos criticam esvaziamento da autogestão em projeto de regulamentação do governo Melo

Ato chamou a atenção para teor do projeto da prefeitura de Porto Alegre que regulamenta as 7 feiras ecológicas da cidade

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Manifestação ocorreu na manhã deste sábado (28) na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE), próximo ao Parque da Redenção - Foto: Marcelo Ferreira

Há anos os agricultores ecológicos das feiras ecológicas de Porto Alegre se organizam na luta por uma legislação que regulamente a atividade de forma adequada, já que hoje estão enquadrados na lei de ambulantes. Neste mês, o prefeito Sebastião Melo (MDB) encaminhou à Câmara de Vereadores um projeto de lei com esse intuito. A proposta, porém, desagrada o grupo, que aponta um esvaziamento do protagonismo do Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre, que representa os produtores das sete feiras da Capital. O que motivou uma ato contrário ao projeto, neste sábado (28), na Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE).

:: Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre entrega propostas para Prefeitura Municipal ::

Representante do colegiado do Conselho de Feiras Ecológicas de Porto Alegre, a agricultora Franciele Bellé destaca a experiência democrática de autonomia e gestão das feiras na capital gaúcha, que sempre contou com a participação ativa dos produtores. “O que está acontecendo aqui hoje tem 34 anos de organização e serviu como base para outras experiências em todo o mundo”, afirma. Segundo ela, os agricultores lutam pela regulamentação da experiencia que já acontece.

Contudo, frisa que o Projeto de Lei 037/23 retira a legitimidade desse acúmulo de organização e gestão, onde tudo é debatido entre os produtores e diversas entidades. O Artigo 22 da proposta diz que “a organização, estrutura e funcionamento das Feiras Ecológicas serão definidos através de Decreto Municipal”. Já o 23 diz que “compete ao Executivo Municipal estabelecer normas de funcionamento dentro dos critérios de conveniência e oportunidade, ouvidas as comissões das respectivas feiras ou o Conselho das Feiras Ecológicas, inclusive no tocante aos equipamentos a serem utilizados nas unidades de feira”.

“Nesse PL a gente vê esse esvaziamento, se torna uma consulta a esses órgãos e não um respeito, um respaldo, uma deliberação”, assinala a representante do colegiado.


Franciele Bellé foi uma das produtoras que falou durante o ato, onde também se manifestaram representantes de consumidores, entidades e movimentos sociais / Foto: Marcelo Ferreira

Franciele destaca ainda a dificuldade de dialogo com o Executivo para que o Conselho de Feiras fosse ouvido no debate da construção da legislação. Recentemente, a entidade realizou uma série de seminários e reuniões com a participação de agricultores das sete feiras ecológicas da cidade, entidades representativas do meio ambiente, de segurança alimentar, além de parceiros urbanos, para construir uma lei que respeitasse a construção histórica das feiras.

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“Em vários momentos, a prefeitura, através das suas secretarias, através do próprio prefeito, do gabinete, foram convidados a participar desses movimentos promovidos pelo Conselho de Feiras, mas não compareceram”, aponta. Ao contrário, critica, “realizaram reuniões à revelia e em contraponto ao Conselho”.

História de luta da agroecologia

Durante o ato neste sábado, produtores, consumidores, representantes de entidades, movimentos sociais, parlamentares e apoiadores se reuniram em meio às bancass para defender o futuro das feiras ecológicas da cidade. Ao longo de toda a feira, uma banca recolhia assinaturas para um abaixo-assinado contra o projeto de lei encaminhado pelo governo Melo. Também foram distribuídas fitas laranjas, em alusão aos aventais dos feirantes, representando o apoio à luta.


Banca coletou assinaturas contra o projeto e distribuiu fitas laranjas / Foto: Marcelo Ferreira

Uma da falas foi a da vice-presidenta da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), a bióloga Simone Portela de Azambuja. Trabalhadora de políticas públicas na área de agroecologia há mais de 25 anos, ela destacou que a Feira dos Agricultores Ecologistas (FAE) é “a maior e a mais antiga feira agroecológica do Brasil, com uma história e um contexto anterior que inicia com o movimento ambiental”, lembrando de ecologistas como Balduíno Rambo, José Lutzenberger, Hilda Zimmermann, entre outros.

Ela recordou que o movimento agroecológico do Rio Grande do Sul nasceu há mais de 50 anos em contestação ao modelo da revolução verde. “Toda essa história precisa ser respeitada, e essa feira se fez em cima de uma relação maravilhosa entre os consumidores de Porto Alegre e os agricultores de diferentes locais do Rio Grande do Sul. Essa historicidade não pode ser negada”, defendeu.

O presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (Consea-RS), Juliano de Sá, disse que o Consea “está comprometido em defender a história de luta da agroecologia”. Ele considerou o projeto de lei “um atentado à agroecologia” e “um atentado à população ter o direito a uma alimentação adequada e saudável”.

“O próximo passo depois de mudar a lei, ele vai dizer quem é que pode entrar na feira e quem é que de sair. Ele vai colocar critérios que vão fora do nosso acúmulo histórico. E é isso que a gente está de olho”, disse. Para Juliano, é importante que a população da Capital seja sensibilizada na defesa das feiras ecológicas.

Presente no ato, o vereador Jonas Reis disse que “o projeto de retirada da autonomia e da capacidade de autogestão das feiras é nefasto para cidade”. Segundo ele, “mais uma vez o governo retira a democracia do centro do debate e quer tratar com imposições via decreto novos regramentos e inserções, o que é um absurdo”.

O parlamentar defende o processo auto-organizativo que “se mantém saudável a mais de 30 anos”. Afirma que a oposição está mobilizada e não vai aceitar “retrocessos na capacidade do povo se auto-organizar, seja do ponto de vista da participação, seja do ponto de vista da comercialização”.


No final do ato, alguns manifestantes que ainda estavam presentes fizeram uma foto para demarcar a luta / Foto: Divulgação/FAE

O que diz a prefeitura

Em nota, a prefeitura de Porto Alegre afirma que a regulação das feiras ecológicas cabe ao Executivo municipal. Diz ainda que grande parte da exigência do Conselho de Feiras está contemplada no projeto de lei. Confira a nota na íntegra:

Sobre a construção da proposta para a regulamentação das Feiras Ecológicas de Porto Alegre, informamos que é atribuição da Prefeitura de Porto Alegre, por meio da Secretaria de Governança Local e Coordenação Política (SMGOV), regular as Feiras Ecológicas realizadas nos espaços públicos do município. Atualmente, são sete: José Bonifácio quadra 1, José Bonifácio quadra 2, Tristeza, Três Figueiras, Auxiliadora, Rômulo Telles e Park Lindóia. O interesse de avançar na formulação de uma legislação específica sempre foi mútuo entre o poder público e os feirantes. Este tema vem sendo abordado desde 2018. A SMGOV incorporou a política de produção primária entre as suas atividades em julho de 2022.

Em novembro, por solicitação do Conselho de Feiras, a Secretaria passou a elaborar a proposta de regulamentação, que só pode ser apresentada e debatida com seus representantes no dia 14 de março de 2023, em função da disponibilidade da agenda da entidade. Desde então, o texto foi debatido em diversos encontros, que contaram com a participação de produtores, feirantes e representantes do Conselho de Feiras. Nestas ocasiões, todos os pontos da proposta foram discutidos detalhadamente, observando-se cada sugestão ou questionamento dos presentes que se manifestaram. A partir destas contribuições, o documento foi atualizado diversas vezes.

Entre as garantias legais, o Projeto de Lei apresentado contempla a continuidade e publicação da relação dos feirantes que hoje têm o alvará vigente emitido pela prefeitura, a sucessão familiar e a autogestão das feiras. Após diversos encontros ao longo do ano com o secretário de Governança, Cassio Trogildo, e a equipe técnica da pasta, em agosto, os representantes do conselho foram recebidos pelo prefeito Sebastião Melo.

Em setembro, o grupo apresentou suas observações, em sua maioria, já contempladas no projeto. As questões legais foram esclarecidas por meio de ofício encaminhado à entidade. O Projeto de Lei do Executivo (PLE) 037/23 foi protocolado em 19 de outubro na Câmara Municipal de Porto Alegre, depois de oito meses de amplo debate. Haverá ainda uma Audiência Pública, já solicitada pelo líder do governo, a ser realizada pelo Legislativo antes da votação do projeto.


Edição: Katia Marko