Após um ataque surpresa do Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) em 7 de outubro, que resultou em centenas de mortes de civis e militares israelenses nos primeiros dias, Israel lança a “Operação Espada de Ferro” contra Gaza, multiplicando exponencialmente a morte de civis palestinos, majoritariamente crianças e mulheres, causando também o deslocamento massivo e forçado de centenas de milhares de palestinos da região.
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É preciso somarmos as vozes em defesa do Direito Humanitário Internacional (DHI), Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) e do direito fundamental à autodeterminação dos povos na conclamação por um imediato cessar fogo na guerra declarada por Israel. Diferente do que sugerem os meios hegemônicos de comunicação, esses têm sido os pontos defendidos por ampla maioria dos 15 Estados membros nas duas reuniões do Conselho de Segurança da ONU (16/10/23 e 18/10/23). É preciso apontar para a sistemática e brutal violação de direitos humanos a que está sendo submetido há décadas o povo palestino, situação já reconhecida e reiterada em várias resoluções do Conselho de Segurança (CS), Assembleia Geral (AG) e decisões do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Se os horrores a partir de 7 de outubro fossem uma fotografia, o apartheid e o genocídio em curso seriam o filme desta catástrofe humanitária.
Das dezenas de violações que constituem tipos do crime de guerra previstos no Tribunal Penal Internacional (art. 8), quase a sua totalidade já foi perpetrada neste conflito por ações diretas do Estado de Israel, estando aos olhos do mundo as imagens, as declarações e os fatos. Isso aponta para um brutal e reiterado retrocesso em relação ao DHI: a completa inobservância destas normas cogentes de direito internacional por parte do exército mais forte, com melhor tecnologia bélica, e que está sintetizada na manifestação do ministro da Defesa do Estado de Israel Yoav Gallant, que qualificou palestinos como “animais humanos”, sugerindo que ao povo palestino não se aplica a regra de humanidade. Nesse sentido de desumanização dos palestinos, está o fato de que Israel, apesar de ter ratificado as Convenções de Genebra do DHI em 1951, decidiu que as mesmas não teriam aplicação nos territórios ocupados de Gaza e Cisjordânia, pelo argumento de que “não estavam sobre a soberania de nenhum Estado antes da ocupação, portanto não podem ser considerados ocupados”, esquivando-se assim das responsabilidades internacionais e humanitárias de força ocupante.
Sionismo, ideologia racial hegemônica no Estado de Israel
É impossível compreender a complexidade da situação atual sem olhar para o sionismo, enquanto ideologia racial hegemônica no Estado de Israel, presente desde sua fundação, e que se tornou Política de Estado. Em 1975, a AG da ONU aprovou a Resolução 3379 que considerou o sionismo uma forma de racismo (Resolution 3379: Elimination of all forms of racial discrimination Arquivado em 6 dezembro 2012 no Wayback Machine. UNGA, 10 de novembro de 1975 - doc.nr. A/RES/3379 (XXX)), a qual foi revogada em 1991 como condição para Israel iniciar as conversações de Oslo. Esta política do Estado de Israel, há décadas tem promovido um apartheid, crime contra a humanidade, dentro de suas próprias fronteiras e ocupações ilegais dentro do território palestino, estas condenadas por várias resoluções da ONU: Resolução 446 de 1979 do CS; Resolução 51/223 de 1997 da AG; Resolução 10/6 de 1999 da AG; Decisão de 2010 do Conselho de Direitos Humanos.
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Um Estado racial, diferente de um Estado nacional, significa que os direitos não decorrem de um vínculo de nacionalidade, mas de pertencimento a uma etnia, portanto, de supremacia desta sobre outras. Israel manifesta essa discriminação na sua legislação interna sobre cidadania, residência, casamento, acesso à terra e propriedade e legislação específica para territórios ocupados, promove tribunais de exceção, vigilância e controle total sobre o povo palestino (COCONI, Luciana. Apartheid contra el pueblo palestino. 2010. Editora Ediciones del Oriente e del Mediterraneo).
Além das políticas discriminatórias domésticas, os territórios palestinos ocupados pelos assentamentos israelenses considerados ilegais, conforme Resolução 334 de 2016 do CS (Resolução 2334 de 2016 do CS), estão submetidos às ordens militares de Israel, configurando o estado de exceção, com violações, segundo relatório da Anistia Internacional, à vida, liberdade, segurança e tratamento igualitário perante a lei, acesso à medicamentos, liberdade de expressão e reunião pacífica, igualdade e não discriminação, moradia, liberdade de movimento, direitos das crianças e adolescentes, bem-estar físico e mental, água, educação e ao trabalho. A União Europeia também declarou que “os assentamentos construídos no território palestino ocupado, incluindo Jerusalém do Leste, são ilegais sob a lei internacional, constituindo um obstáculo para a paz e ameaçando a possibilidade de uma solução de dois Estados”.
“Maior prisão a céu aberto do mundo”
A Faixa de Gaza, território palestino com 2,3 milhões de pessoas, uma das regiões com maior densidade populacional do mundo onde cerca de 47,3% da população tem menos de 18 anos, tornou-se conhecidamente como a “maior prisão a céu aberto do mundo”, cercada pelo mar, controlado pelas forças israelenses, pela fronteira com o Egito (até o momento fechada) e por muros construídos ao longo de todo perímetro por Israel. Os muros são condenados pela ONU, conforme Resoluções 10/13 da AG de 2003 e 10/15 de 2005 (UN General Assembly Documentation).
Embora Israel tenha retirado os assentados israelenses da Faixa de Gaza em 2005, o poder de força ocupante subsiste: “Na perspectiva do direito internacional, Gaza permanece ocupada, devido ao controle das fronteiras, aéreas e marítimas e periódicas incursões militares”, apontou Richard Falk, em relatório especial para a AG em 2014. Na condição de força ocupante, ainda cabe a Israel o respeito à IV Convenção de Genebra de 1949, fonte do Direito Humanitário Internacional, conforme o art. 4º que dispõe sobre as obrigações do poder ocupante em território ocupado, das quais uso proporcional da força, manutenção do bem-estar da população entre outras. Além do DHI, Israel está obrigado a respeitar o Direito Internacional dos Direitos Humanos neste território. Em flagrante violação a este arcabouço jurídico cogente internacional é recorrente a prática de bloqueio por parte de Israel da entrada e saída de pessoas, mercadorias e bens essenciais à sobrevivência, constituindo o que se tem chamado de “punição coletiva” em reação aos ataques de grupos de resistência organizados.
A “punição coletiva”, nas palavras do Secretário Geral da ONU, António Guterres, “não pode ser executada como justificativa para os atos repreensíveis do Hamas que horrorizaram e aterrorizaram os civis israelenses”. No entanto, esta tem sido a prática do Estado de Israel contra o povo palestino, um genocídio em curso, negado por uma falsa equivalência de forças ou exercício de “legítima defesa” com ataques em territórios ocupados. Tal alegação não se sustenta perante o Direito Internacional: “Um Estado não pode simultaneamente exercer controle sobre um território que ocupa e militarmente atacar esse território, alegando que é estrangeiro e representa uma ameaça à segurança nacional, fazendo precisamente isso, Israel está afirmando direitos associados à dominação colonial, que simplesmente não existem ao abrigo do Direito Internacional.”
Protocolo I das Convenções de Genebra
O uso indiscriminado da força e os ataques desproporcionais são proibidos pelo Protocolo I das Convenções de Genebra, artigos 51 e 57. De 7 de outubro a 12 de outubro, o exército israelense anunciou que “As forças aéreas israelenses largaram 6 mil bombas em alvos do Hamas”, matando cerca de 1500 palestinos até aquela data, sendo metade de crianças e mulheres. Estima-se que até o momento, em média uma criança palestina é assassinada pelas forças israelenses a cada 15 minutos, o número já passa de mais de 2.055, estando mais de 800 desaparecidas. A ajuda humanitária internacional só foi aceita pelo Estado de Israel no 14º dia da guerra, autorizada para acontecer pela fronteira com Egito, também bombardeada por forças israelenses em diversas oportunidades nesta guerra. Apesar da autorização de ingresso da ajuda humanitária, não houve pausa nos bombardeios israelenses. A ONU estima que seriam necessários 100 caminhões de ajuda humanitária por dia.
A prática criminosa de submeter a população civil aos bombardeios incessantes, sem qualquer preocupação em minimizar a morte de civis a cada ataque, apesar da avançada tecnologia bélica, caracterizando indistintamente quaisquer bens ou civis como alvos de guerra, até o momento já levou a vida de cerca de 6.000 palestinos, incluindo 2.055 crianças e 1.119 mulheres, sendo que as vítimas fatais israelense somaram 1.405. Os bombardeios também focam na destruição de moradias, de infraestrutura de subsistência, hospitais, templos religiosos, escolas. O bloqueio de energia elétrica, a falta de água, comida, medicamentos, ajuda humanitária estão na esteira da ação de Israel contra Gaza. Apenas 54 caminhões de ajuda humanitária conseguiram entrar em Gaza.
Mais de 6 milhões de palestinos refugiados no mundo
São mais de 6 milhões de palestinos refugiados no mundo, conforme a Agência da ONU para Refugiados Palestino (UNRWA). Pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas, suas raízes, por sua existência étnica. Citamos aqui as palavras de Edward Said (SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. 2023. Companhia das Letras), palestino radicado nos EUA, para quem o exílio “é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada.”
Dentre as políticas convencionadas internacionalmente para refugiados está a repatriação voluntária, uma solução duradoura das mais importantes diante do drama do refúgio e dos desafios da integração. Desde a Nakba em 1948, que foi a expulsão de 750 mil palestinos de seu território, o retorno não tem sido uma possibilidade para o povo palestino, apesar da Resolução 196 de 1948 da AG da ONU que determinou o respeito a tal direito, sendo reiterada por pelo menos 130 vezes. Nossa luta humanitária, uma luta por justiça, direitos, dignidade e respeito, perpassa a luta pelo retorno. Não é possível que aceitemos como resposta imposta pelo Estado de Israel, ou o genocídio ou a fratura incurável da separação da terra natal, da brutalidade do deslocamento forçados.
Estabelece o art. 6 do Tribunal Penal Internacional como crime de genocídio, “o ato cuja intenção seja destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal, praticado por meio da sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial, por meio do homicídio de membros do grupo, da ofensa grave à integridade física ou mental de membros do grupo”; dentre outras situações.
Como disse Galeano, em seu texto “Quem deu a Israel o Direito de Negar Todos os Direitos?” , “em cada uma de suas guerras defensivas, Israel devorou outro pedaço da Palestina e os almoços seguem”. Israel aproveita a deflagração de um conflito para justificar uma limpeza étnica já em curso pelos crimes de apartheid, deslocamento forçado de pessoas e perseguição, tipificados no art. 7, do TPI. Desde sua fundação, Israel tem imposto ao povo palestino três opções: deslocamento forçado, submissão ou morte. Apesar disso, contra todas as probabilidades, da impotência da comunidade internacional e com o patrocínio das principais potências ocidentais do mundo, o povo palestino persiste em uma quarta: a resistência.
Dar voz ao povo palestino, historicamente oprimido, é reivindicar justiça, paz e humanidade. Quando estamos diante de fatos da história que identificam as raízes da violência, da violação e da opressão, portanto associadas ao desrespeito ao direito internacional e à autodeterminação dos povos, não é possível a complacência do discurso dos “dois lados”, das equivalências que são irreais e desproporcionais, para assumirmos uma posição de silêncio. Quando esta voz é levantada, comumente é silenciada por uma tentativa deliberada de interdição da palavra pela acusação falaciosa de antissemitismo. Uma tentativa de impedir que o sionismo seja denunciado enquanto ideologia racial, paradoxalmente, enraizado em um Estado composto por uma maioria vitimada por perseguições históricas, cujo ápice está nos horrores do holocausto.
Pelo fim do apartheid e do genocídio em curso contra o povo palestino!
* Giuliana Redin é professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Direito e Departamento de Direito, área de direito internacional, direitos humanos e acesso à justiça. Doutora em Direito pela PUC/PR, com pós-doutorado em Psicologia Social pela USP. Coordenadora do Migraidh, Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional, e da Cátedra Sérgio Vieira de Mello do ACNUR na UFSM. Alex Barcelos Monaiar é psicólogo do município de Santa Maria, RS. Mestre em Psicologia pela UFSM. Ativista dos direitos humanos.
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora e do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko