Rio Grande do Sul

ARTIGO

A ocupação do Postão em 1988 e a desobediência civil na Grande Cruzeiro 

'A repercussão das ações de uma minoria está vinculada à sua capacidade de entrega para a busca de um objetivo'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Um dos maiores desafios no Brasil é a construção de uma consciência cidadã - Foto: Divulgação

Mantermos viva a memória da luta comunitária é fundamental para o fortalecimento de uma identidade coletiva embasada em experiências e estratégias de defesa de uma saúde pública de qualidade. Logo, entendemos como de grande relevância um fato histórico ocorrido em 1988 na Grande Cruzeiro, periferia da zona Sul de Porto Alegre/RS no bairro Santa Tereza: a mobilização e ocupação do Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul (PACS), conhecido como Postão da Cruzeiro, pelos líderes comunitários, devido aos profundos problemas relacionados ao atendimento médico da população, verdadeiro ato de desobediência civil no nosso entendimento. Problemas que em grande medida se estendem até os dias de hoje. 

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É inerente a qualquer governo o risco sempre iminente de cometer excessos que se traduzem em opressão das mais variadas formas, ou seja, não está necessariamente vinculada à violência física, mas afeta a vida do cidadão, ainda que o Estado seja reconhecido por muitos como representante dos anseios do povo. Para o autor estadunidense Henry Thoreau “o governo em si, que é apenas a maneira escolhida pelo povo para executar sua vontade, está igualmente sujeito ao abuso e à perversão antes que o povo possa agir por meio dele”. 

É nesse contexto que ao homem é reconhecido o “direito de revolução”; em outras palavras, há a possibilidade de o indivíduo desprezar a autoridade governamental, bem como apresentar resistência. O autor chama a atenção para a necessidade de coerência nas ações. Cita os autoproclamados abolicionistas estadunidenses, que “deveriam retirar seu apoio pessoal e econômico ao governo de Massachussets, e não esperar até que se constituam em maioria de um só para então obter o direito de predominar”. 

A repercussão das ações de uma minoria está vinculada à sua capacidade de entrega para a busca de um objetivo. Thoreau menciona: “Uma minoria é impotente enquanto se conforma à maioria, nem chega a ser uma minoria então, mas torna-se irresistível quando se põe a obstruir com todo o seu peso”. 

Thoreau recorre a Confúcio para apresentar a necessidade de plena consciência como pressuposto para a construção da igualdade entre os cidadãos: “Se um Estado for governado pelos princípios da razão, a pobreza e a miséria serão objeto de vergonha”. É a razão que desperta a autoconsciência contra o escárnio da desigualdade. 

O instituto da desobediência civil está vinculado necessariamente à condição e ao exercício da cidadania como expressão da democracia. Segundo Gandhi: “A desobediência civil é o direito imprescritível de todo cidadão. Ele não saberá renunciá-lo sem deixar de ser um homem”. Para o ativista indiano, a resistência civil é a forma mais adequada para a manifestação da “angústia da alma”, bem como para enfrentar um “Estado nocivo”. 

No que se refere à ação, a desobediência civil é um “ato público, não violento, consciente e político contrário à legislação, trazendo mudanças na lei e nas políticas”, segundo o professor estadunidense Hugo Bedau. As regras constitucionais são falhas, mas as ações pacíficas estão a demonstrar que é preciso respeitar as leis. Esses atos se direcionam a quem detém o poder e se justificam por princípios políticos ou de justiça, “regulados pela Constituição e pelas organizações sociais em geral”, ensina Rawls (tradução livre). Ao contrário, não estão relacionados a questões religiosas ou a normas morais, ainda que os objetivos às vezes coincidam. A minoria deseja que suas queixas sejam reconhecidas pela maioria, apelando a seu senso de justiça. 

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Sobre os casos em que esses atos se justificam, o autor lembra que uma condição é se restringir a situações de clara injustiça, em que haja sérias violações aos princípios de liberdade e igualdade de oportunidades. Adverte, porém, que nem sempre essas infrações à lei são visíveis.

Para o professor brasileiro Nelson Nery Costa, o ato de desobediência, via de regra, é promovido a partir de uma perspectiva coletiva, no qual grupos exercem pressão sobre o Estado para “modificar leis ou as práticas governamentais”, assim vislumbrando uma maior celeridade para a resolução do problema. 

O autor prossegue dizendo que a desobediência civil é praticada quando a atuação do Estado é contrária aos interesses de seus cidadãos. Não podemos ignorar também o seu aspecto residual, ou seja, deve ser praticada somente como última alternativa, depois que todas as formas de resolução da situação terem sido tentadas. Nas palavras do professor: “Somente depois de seguidas e infrutíferas tentativas de resolver a controvérsia”. 

No que se refere aos objetivos, Costa é enfático sobre os anseios dos desobedientes em relação às práticas governamentais: “A desobediência civil tem o propósito de efetuar reformas nos estatutos e nas práticas do governo”. Sendo ainda mais didático, afirma: “É praticada em circunstâncias determinadas sobre assuntos específicos, visando impedir ou alterar a aplicação de determinadas leis, práticas governamentais ou decisões judiciais”. Para tanto, o motivo da desobediência deve estar embasado em uma “seriedade moral” que possibilite o reconhecimento social da legitimidade do ato. 

As estratégias de efetivação da desobediência civil são variadas. Como lembra Costa: “resistência individual, passeata, ocupação de determinados lugares, paralisação trabalhista e outras”. Nessa senda, temos o desdobramento dessas estratégias, dentre outras, como “o pleito de reconsideração, que objetiva modificar a decisão do governo nos problemas que afetam toda a comunidade”. Esse pleito deve repercutir para os interesses de toda a sociedade, assim “para reverter a aplicação de determinadas leis ou políticas governamentais que consideram prejudiciais aos compromissos do Estado”. 

Portanto, é possível compreendermos a desobediência civil como uma ferramenta de grande valia para a construção da democracia em um cenário no qual o indivíduo ou grupo, como sujeitos de direitos, adotam uma postura de enfrentamento de determinadas ações do Estado justamente com o intuito da preservação e reconhecimento de seus direitos. 

Pois bem, em 1988, a menos de um mês da promulgação da Constituição Cidadã, em Porto Alegre, a comunidade da Grande Cruzeiro e arredores intensificava a luta coletiva em relação aos pleitos em prol da saúde pública, uma vez que vivia situação dramática no que se refere às condições mínimas de atendimento à população: faltavam desde medicamentos, estrutura e profissionais em número suficiente para oferecer uma atenção básica minimamente adequada. A inexistência de assistência às crianças levou a localidade a atingir o maior índice de mortalidade infantil em trânsito, no município. 

Em um documentário produzido pelos próprios líderes sobre a ocupação, relatam que havia uma demanda de emergência pediátrica e pronto-socorro. Se já não funcionava bem, o setor para atendimento de casos graves e urgentes de crianças tinha sido desativado, o que gerava a necessidade de deslocamento para os hospitais situados em outras regiões da cidade. Diante da reabertura do setor de forma precária, depois de oito meses de fechamento, com a falta de médicos à noite e nos finais de semana, reduzido quadro de pessoal e disponibilização de apenas uma ambulância, foram feitas inúmeras denúncias e encaminhamentos aos governantes. Todavia, sem obter sucesso algum. 

Cansadas das infinitas protelações por parte do poder público em relação aos problemas, as lideranças comunitárias resolveram, em um ato de desobediência civil, ocupar pacificamente o então PAM 3 – Posto de Atendimento Médico 3 – em 14 de setembro de 1988, para assim dar maior visibilidade à situação difícil que as comunidades viviam, bem como pressionar o poder público para que medidas concretas e eficazes fossem tomadas. 

Essa movimentação teve como objetivo denunciar a irresponsabilidade do poder público no que se refere ao direito fundamental do povo à saúde, que nada mais é do que o desdobramento do direto à vida. 

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Compreendemos a referida ocupação como um verdadeiro ato de desobediência civil por grupos que, sem mais alternativas, optaram por uma ação direta e pacífica para exigir do Estado o fim de sua omissão em relação aos serviços de saúde pública tão caros à população carente. É importante ressaltarmos que as demandas de saúde carecem de resolução até os dias de hoje. Principalmente agravadas com a saída dos milhares de médicos cubanos que atuavam justamente nas comunidades pobres, levando atendimento onde a falta de profissionais é um problema histórico. 

O movimento promovido em 1988 por cidadãos cansados da negligência do Estado entendemos como resistência civil na medida em que objetivamente ocuparam um prédio público a fim de chamarem a atenção do Estado e da sociedade para os graves problemas que estavam sofrendo. Como descreveu Costa, desobediência civil é cabível quando houver a situação de “negar eficácia a determinada lei ou decisão que se mostrem bastante prejudiciais aos cidadãos e aos grupos”. 

Ora, não por acaso os problemas sofridos pela população alcançaram razoável publicidade somente depois da ocupação. Como menciona o filósofo Peter Singer, a desobediência civil tem a capacidade de dar visibilidade a determinados assuntos através da publicidade gerada por tais atos. 

Não fosse a ação de resistência no Pronto Atendimento, dificilmente a omissão do poder público naquela região teria tido repercussão. A médica sanitarista Maria Helena Alencar destaca a ocupação como ato de vanguarda que já atentava para a municipalização de serviços públicos de saúde, antecipando a lógica consolidada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Cita ainda fatos posteriores que seguiram a busca pelo controle social nessa área fundamental, ou seja, vários movimentos populares se sucederam no intuito de melhoria das políticas estatais relacionadas à saúde pública. Logo, não é exagero concluirmos também a referida ocupação como um marco do controle social em Porto Alegre. Assim, elevando a condição de cidadania a um status de participação democrática inédita. 

Em um país com uma desigualdade social inversamente proporcional à sua própria economia, onde a opressão estatal se manifesta das mais variadas formas, o instrumento da desobediência civil adquire papel de grande relevância para o cidadão na busca da tutela de seus direitos. As ações diretas e contundentes são inafastáveis para a construção de um país mais igualitário que historicamente beneficia uma elite conservadora em prejuízo da grande maioria do povo. Como bem disse Martin Luther King, a desobediência civil “é uma arma sem igual na história porque corta sem ferir e enobrece quem utiliza”. Segundo ele, os resultados importantes da luta dos negros nos Estados Unidos da América se deram justamente pela forma pacífica da resistência. 

Um dos maiores desafios no Brasil é a construção de uma consciência cidadã a partir da compreensão da responsabilidade de todos em face do bem comum, assim possibilitando um comportamento pró-ativo superando as meras delegações de poder aos representantes eleitos. Cenário fértil para iniciativas democráticas como a desobediência civil. 

* Advogado e militante comunitário

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko