Enquanto não se partilhar melhor a terra, seguramente não se conseguirá partilhar melhor o pão
Em 1945, o dia 16 de outubro foi escolhido pela ONU como o Dia Mundial da Alimentação, certamente pelo fato de a criação da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) ter-se dado nesta data. Não é de se descartar a hipótese, porém, de a ONU ter visado recordar também, para todo o mundo, quantas pessoas tinham morrido de fome, sede, frio e doenças consequentes durante a segunda guerra, naquele ano encerrada. Hoje, parece que essa intenção está longe de mobilizar poderes socioeconômicos privados e públicos responsáveis pelo destino do que a terra produz de alimentos, para saciar a fome da humanidade toda.
A história está mostrando que, se essa realidade continuar sujeita à deriva das conveniências do capital e do mercado, o problema da fome só pode piorar. Basta lembrar-se o que agora acontece na Ucrânia, um dos maiores países do mundo na produção de grãos, hoje envolvido numa guerra que, dependendo da sua duração, pode matar de fome mais de 4 milhões das suas filhas e filhos, como aconteceu no início da década de 30 do século passado, por força da política stalinista da, então, União Soviética. Aí se testemunha como o problema da utilização da terra e da água, para universalizar o direito à alimentação antes de sujeitar-se às técnicas do que produzem, necessita inspirar-se no que é indispensável à sua justa partilha, da qual dependem a justiça, a paz, a própria vida da humanidade toda.
Antes de ser uma questão puramente técnica, é uma questão ético-política: Quantas pessoas passam fome e sede e estão com a vida em risco deveria ser o indicativo primeiro do quanto é necessário produzir-se de comida para que nenhum comensal siga ausente de uma mesa que deveria ser comum.
A FAO no Brasil atesta, por exemplo, numa sequência preocupante de dados que ela publica sobre a fome e a sede da população no mundo, como está errado o tratamento da terra e da água que estamos fazendo e necessita de urgente correção: “95% dos nossos alimentos são produzidos em terra e tudo começa com o solo e a água.” “Quase um bilhão de toneladas de alimentos – 17% de todos os alimentos disponíveis para todo o mundo – são jogados fora a cada ano, resultando no desperdício de recursos preciosos, como a água, que foi usada para produzi-la.”
Em uma advertência que parece ter sido feita para todo o Sul do Brasil, sobre o que vem acontecendo por aqui, especialmente neste sofrido 2023, revela mais o referido site: “Desde 2000, os desastres relacionados às inundações aumentaram 134% e o número das secas aumentaram 29%.” Se a tanto for levado em conta o número vergonhoso de famílias brasileiras pobres passando fome, não há como desconsiderar-se a urgência com que as relações ambientais que mantemos com fontes de vida do tipo terra e água se refletem nas relações sociais às quais o mundo do direito não tem dado resposta condizente com a gravidade da fome.
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Na revista Memórias da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, recém editada pela Associação das Procuradoras e Procuradores do Estado, lembramos do seguinte: “A que Tribunal se pode pedir justiça para a tragédia que o Senado Federal publicou recentemente, em 14 de outubro do ano passado: “Em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil, apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer – o que representa 14 milhões de brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.” Fontes de vida, pois, como são a terra e a água, é do respeito ao meio ambiente que as preserva e trata que depende garantir-se um direito como o da alimentação e, por via de consequência, o dos outros direitos humanos fundamentais, indivisíveis e interdependentes como todos esses direitos são. Enquanto não se partilhar melhor a terra, seguramente não se conseguirá também partilhar melhor o pão.
Ao contrário de uma forte defesa da doutrina jurídica normativista brasileira seguir acreditando que só a previsão legal da função social da propriedade, seja esta pública ou privada, baste para garantir a partilha dos frutos de toda a terra, assim legitimando o domínio privado e coibindo os abusos costumeiros desse direito e saciando fome da humanidade, essa função pouco passa do papel. Mesmo que ela procure apoio até em Santo Tomaz de Aquino, pois lá a dita nunca esteve, como denunciou Franz Hinkelammert na sua obra “As armas ideológicas da morte” (São Paulo: Paulinas, 1983, p. 337) de forma categórica: “...não se trata de atribuir à propriedade privada alguma função social, mas sim de demonstrar que enquanto estrutura é capaz de desempenhá-la.” Não o demonstrou e nunca o fará, particularmente no que se refere aos direitos fundamentais sociais como o da alimentação, pela absolutização dos valores que a propriedade mantém subentendidos, na sua defesa: “A absolutização do valor é a exigência da morte do homem para que viva o valor. O valor se transforma na expressão de um fetiche, um Moloc. Em sua forma absolutizada, o valor tem sempre essa forma: deixa o homem morrer para que viva o valor. Tem a forma admissiva, não ativa. Entretanto, transforma-se na forma ativa frente ao homem, que não aceita sua morte em função do valor absoluto. Assume a forma: “mata-o.” (idem, p. 334).
Durante a pandemia da covid-19, quem mais se mobilizou para denunciar e agir contra essa absolutização, no sentido de cuidar da fome, da sede e da saúde de milhares de famílias pobres do país, foram os movimentos populares do tipo MST, para lembrar-se apenas um dos mais conhecidos. O “devido processo legal”, a indisposição ou até a indiferença com o caso, essas outras pandemias tão mortais como a da covid, serviram para grande parte dos Poderes Públicos se defenderem de toda a injustiça social que a doença deixou nua. É por tudo isso que a reforma agrária, o despejo zero, as regularizações fundiárias, o direito à cidade e o de acesso à terra, indispensáveis meios legais de eficácia dos direitos humanos fundamentais de vida e bem-estar como é o de saciar-se fome pela alimentação, estão sendo garantidos, de fato, muito mais pelas organizações e movimentos populares do que pelos Poderes Públicos.
Sentem-se legitimados por corajosos “ancestrais” históricos, que deram a própria vida para defenderem outras, especialmente as mais injustiçadas e necessitadas, como Zumbi, Sepé Tiaraju, Tiradentes, Margarida Alves, Roseli Nunes, Elton Brum da Silva, padre Josimo Morais Tavares, o advogado Eugenio Lyra, entre tantos outros mártires da terra e da gente da terra. Refletem a validade de algumas das consignas de um judeu, prisioneiro do nazismo, Emmanuel Levinas, que nem a guerra (agora tão lamentavelmente presente entre nós) e a tentação da vingança conseguiram dobrar, podendo elas servirem de inspiração para quem, ainda hoje, não admite que o direito dê preferência à liberdade antes da justiça.
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Vale lembrar algumas, retiradas do livro “O homem messiânico” de Luiz Carlos Susin, um crítico de Levinas (Petrópolis: Vozes, 1984): “A multiplicação do pão começa pelo próprio bocado” (responsabilidade pelas/os outras/os); “Desde o para outro, o afeto como primeiro teto” (note-se a beleza da amamentação, como a primeira satisfação da necessidade vital de alimentação); “Pensar a fome dos homens é a função primeira da política.” (!); “Que o centro da história se fixe no clamor do pobre;” “Nem pão sem palavra, nem palavra sem pão;” “Justiça social: o temor por mim, por causa dos outros.”
Falou e disse. Convém ouvi-lo com muita atenção.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko