No usufruto dos espaços, os encontros, o respeito à diversidade devem preponderar
Direito à cidade se transformou numa palavra de ordem poderosa, que impulsiona muitas pessoas a lutar por cidades mais democráticas, justas e inclusivas. A expressão deriva do título de um livro do filósofo francês Henri Lefebvre, escrito no final da década de 1960. Como toda expressão que toma vida própria, muitas vezes se desconhece não só a origem, mas todos os significados originais trazidos pelo autor.
O objetivo aqui não é discutir a genealogia da expressão, mas aproveitar alguns insights e desdobramentos de Lefebvre a partir de seu livro, pois podem nos ajudar a iluminar muitas questões que continuam na ordem do dia.
O título deste artigo fala em usufruir a vida urbana. Por que isto? Porque Lefebvre sempre tratou o urbano como um resultado contraditório das relações sociais e espaciais. E mais do que isto, como um resultado que cria novas contradições, como um espaço que passa a influenciar a maneira pela qual as relações sociais vão acontecer.
No livro O direito à cidade, Lefebvre diz que a cidade até o início do capitalismo era muito mais obra do que produto. Isto porque nem a cidade nem a terra (tanto urbana como rural) haviam se transformado em mercadoria. Anteriormente à industrialização, a cidade era o centro não só da vida social e política, não só um centro de acumulação de riquezas, mas um lugar de produção de conhecimento, técnicas e obras. Em outras palavras, a própria cidade era muito mais um valor de uso do que de troca. Dizer que a cidade pode ser (e foi no passado) obra significa então constatar que a cidade, ao longo da história de várias civilizações, sempre foi muito mais uma elaboração humana que deveria ser usufruída do que algo que poderia ser mercadoria. É o mesmo sentido que damos quando falamos, sobre algum objeto artístico, que ele é uma obra de arte. Por que chamamos estes objetos de obra? Porque eles têm um valor que é primordialmente de uso, de usufruto, nos traz sensações agradáveis, etc.
Transporte agora o mesmo raciocínio para a cidade: por que, mesmo sem entrar em raciocínios muito complexos, a maioria da população acha errado que um prefeito venda um parque público? Porque o real valor de um parque é dado pelo seu uso, uso de todos(as) sem distinção; pelo prazer que é passar uma tarde em meio às árvores com os amigos, por exemplo. Isto não parece impagável? Exatamente: como se diz, bons momentos não têm preço, portanto, não deveriam ter valor de troca.
A partir deste raciocínio, uma das formas de enxergar as contradições urbanas é através do par valor de uso/valor de troca, ou entre obra/produto. Em que outros sentidos isto pode ser pensado?
Pense na habitação. A moradia é considerada um direito humano básico e essencial pela obviedade que todos nós precisamos de algum abrigo para podermos viver. Ter um teto, portanto, é um direito à cidade elementar. E mais: a grande maioria da população tem casa porque precisa... usá-la como moradia. Na verdade, durante milhares de anos a habitação, de qualquer tipo, sempre foi um valor de uso.
E aí chegamos na sociedade contemporânea e seu paradoxo: se moradia é valor de uso, só tendo sentido se tem gente morando, porque o último Censo Demográfico mostrou mais de 100.000 moradias vagas (portanto, com o valor de uso não sendo exercido) em Porto Alegre, assim como milhares de outras na mesma situação no país inteiro?
A resposta é que na sociedade atual, o valor de troca passou a preponderar. O desenvolvimento do capitalismo faz com que, para eu poder morar (usar a habitação) eu preciso comprar a mesma. Em outras palavras: para eu poder exercer o direito do valor de uso de uma casa, eu preciso passar pelo valor de troca (compra/venda). O que acontece, então, é que muitas vezes o valor de troca se torna mais importante que o valor de uso (quanto alguém pode ganhar se vender uma determinada propriedade?). E mais: é possível acumular riqueza se alguém construir, comprar e vender inúmeras propriedades. Para isto acontecer, é “apenas” necessário que a maioria acredite que imóvel é um “investimento seguro”.
Quando a moradia se torna investimento, significa que para o investidor não importa se alguém mora lá, ou mesmo se existem pessoas sem acesso à habitação. Para o investidor, a única coisa que importa é poder comprar por um preço e poder eventualmente revender por um preço maior. Ou seja, o valor de troca se tornou mais importante que o valor de uso. A partir daí, temos cidades onde a indústria imobiliária não para de construir novas unidades e cada vez mais algumas (poucas) pessoas compram imóveis não porque querem usá-los, mas porque querem ganhar dinheiro. O resultado? Imóveis vazios, mas cada vez mais caros. Isto impacta inclusive (por conta do encarecimento) aqueles que precisam acessar sua primeira moradia, por exemplo, jovens recém-casados.
E assim, voltamos para um assunto recorrente aqui na coluna do Observatório das Metrópoles: a revisão do Plano Diretor.
A reclamação comum que aparece frequentemente nos meios de comunicação coloca a culpa do “caos” urbano na falta de planejamento ou na falta de aplicação e fiscalização das normas existentes. O problema não é a falta de leis reguladoras, o problema está em não entender que existe uma contradição entre a privatização do espaço e do consumo e as tentativas de ação de cunho coletivo (ou social) representadas pelo planejamento.
A ideia de planejamento é exatamente ordenar, organizar os vários interesses existentes na cidade na busca por um comum, em que o interesse de todos seja mais importante que interesses individuais.
Uma forma de resumir a disputa em torno da revisão do Plano Diretor é dizer que o que está em jogo é uma visão de cidade enquanto valor de uso versus uma visão de cidade enquanto valor de troca. Qual o significado de Planos como o do 4º Distrito ou do Centro Histórico? Ora, o que estes Planos fizeram foram liberar índices construtivos, permitir mais e maiores construções, ou seja, dar preferência para o valor de troca de parcelas da cidade.
Por que tanta insistência em privatizar transporte, parques, praças, DMAE, vender prédios, etc.? Novamente, porque a preferência é a do valor de troca.
É isto que queremos de nossas cidades? Nossas cidades não passam de mercadorias que a gente usa e joga fora? Ou queremos que o valor de uso seja o guia para planejarmos nossas cidades?
Ter o valor de uso como guia significa dar preferência para a vida urbana: isto supõe que o usufruto dos espaços (de moradia, de uso comum, de mobilidade, etc.), os encontros, o respeito à diversidade devem preponderar. Todas as cidades do mundo consideradas as melhores para se viver, são exatamente as que o valor de troca não predomina sobre o valor de uso. É o que todos queremos: usufruir da vida urbana, sentir o pertencimento da cidade. Quando gostamos de algo, queremos vender esta coisa? Ninguém quer vender o que gosta. Isto também deveria valer para o urbano. Usufruir também é direito à cidade.
* Mario Leal Lahorgue, professor do Departamento de Geografia da Ufrgs e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko