Rio Grande do Sul

PAPO DE SÁBADO

Campeã de votos reclama maior valorização para o Conselho Tutelar

Dona da maior votação para o conselho no Rio Grande do Sul, Vitória Sant’Anna critica o descaso da prefeitura da Capital

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Com 5.066 votos, a pedagoga Vitória Sant'Anna foi a conselheira mais votada do Rio Grande do Sul - Divulgação

No primeiro domingo deste mês, Porto Alegre elegeu novos 45 conselheiros tutelares. Ao todo, 43.908 eleitores votaram para escolher os eleitos da gestão 2024-2027. Foram 163.522 votos válidos, 41.923 brancos e 13.913 nulos. O número de votantes superou ligeiramente os números de 2019, na escolha dos responsáveis pela proteção de crianças e adolescentes.

Com 5.066 votos, a pedagoga Vitória Sant'Anna, líder comunitária do condomínio Princesa Isabel, na zona central de Porto Alegre, foi a conselheira mais votada do Rio Grande do Sul.

Aos 27 anos, Vitória é pedagoga e possui mestrado em educação pela UFRGS. Ingressou na universidade através das cotas. Em 2021, assumiu a presidência da associação dos moradores do condomínio, trabalhou como coordenadora pedagógica e atualmente é gestora da escola comunitária. Também idealizou a biblioteca Ágata Felix no condomínio para incentivar a leitura e proporcionar um espaço de estudo.

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Após a eleição, ela conversou com o Brasil de Fato RS. Confira:

Brasil de Fato RS - Qual a tua avaliação dessa votação tão expressiva e como vês a eleição do Conselho Tutelar, que não é obrigatória e que ainda parece estar distante da vida da população?

Vitória Sant’Anna - Minha candidatura foi uma construção dos últimos anos. Comecei a participar da eleição em 2011, quando a minha mãe, que é uma liderança comunitária, se candidatou. Acompanhei de perto o processo eleitoral, que não é obrigatório, tem pouquíssima divulgação e não parece estar presente na vida das pessoas, mas, na verdade, está cotidianamente.

O conselho tutelar é uma porta de entrada, principalmente para a periferia, em situações de abuso, negligência, violência. Durante a campanha, ouvi de uma pessoa ´Poxa, a minha família já precisou do conselho, mas nunca imaginei que aquelas pessoas que estavam lá nos atendendo eram escolhidas pela sociedade`. Então, é um desses espaços da democracia.

É uma eleição que movimenta as organizações da sociedade civil, associações comunitárias, espaços de educação. Lá no condomínio, temos uma associação que gera uma escola de educação infantil. Onde estamos nos organizando? Qual é a maneira desses espaços formarem novas lideranças?

A gente tem que estar mais presente nos espaços na cidade, nas comunidades, na periferia. Não apenas pedíamos votos, mas trazíamos a importância do conselho, o que faz o conselheiro. Para muitas pessoas tive de informar onde votavam, qual era a microrregião...

O conselho é a porta de entrada para a periferia em situações de abuso, negligência, violência

Foi a primeira vez que eu, Vitória, me candidatei. Mas não me sinto como se fosse a primeira vez já que venho fazendo essa campanha há muito tempo. Não para mim, mas para outros candidatos. Nunca é tarde. Nosso campo progressista não está dentro desse debate, mas ainda há tempo de estarmos nele. O resultado expressivo também foi a grande divulgação através dos meios de comunicação alternativa, dos movimentos. A prefeitura optou por não fazer divulgação.

BdF RS - Já fazes um trabalho com crianças não só as do teu condomínio, mas também com outras crianças de Porto Alegre. Fala um pouco dessa militância.

Vitória - Ingressei na Pedagogia da Ufrgs em 2014 através das ações afirmativas. A gente chega numa faculdade de educação e começa a ver as várias possibilidades educativas. Não é só a escola que nos educa. É bem importante pensar sobre isso. A comunidade está nos educando, a ausência de educação está nos educando, a ausência de cultura, ou a presença de determinadas questões, a gente está cotidianamente se formando. Até chegarmos na escola, passamos por muita coisa. Há espaços de educação não escolares, não formais. O que está nos educando? O que a gente está pensando? O que tem dentro do condomínio Princesa Isabel? O que falta aqui nesse conjunto habitacional?

Dentro da minha militância foi proporcionado esse olhar também por uma luta por moradia, quando eu consegui permanecer na região central com a minha família. O condomínio Princesa Isabel é fruto de uma luta por moradia. Era a antiga (rua) Cabo Rocha, nos anos 1990. Conseguimos permanecer.

Já fiz projeto de cinema, de levar filmes para as comunidades

Minha militância começou aí, a pensar espaços de educação dentro do condomínio e fora também. Já fiz projeto de cinema, de levar filmes para as comunidades. Fiz na (vila) Bom Jesus, na Ilha da Pintada, no próprio condomínio. Fui me construindo como liderança comunitária, mas também pedagoga em formação. Participei de projetos de extensão na Ufrgs, em escolas municipais da zona sul, na Restinga, no Morro Alto.

Em várias escolas consegui ir construindo esse entendimento: Qual a cidade que a gente quer? Queremos só a educação escolar? Sim, ela é muito importante. Mas precisamos também de outros espaços dentro do nosso território, da nossa comunidade. Que a gente acesse a educação de outra forma, o que complementa a educação escolar.

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Fiz um projeto para levar as crianças negras para ver o (filme) Pantera Negra para entender esse espaço também, acessar o cinema. O filme traz uma questão de representatividade superimportante. Atuo como educadora no centro da juventude da (vila) Cruzeiro com o EJA (Educação de Jovens e Adultos) também. Quando um adulto, um jovem, tem direito à educação que não teve no tempo certo, mobiliza outros direitos que a pessoa começa a acessar.

Ter uma criança pequena bem assistida vai trazer qualidade para a mãe, para a avó

BdF RS - Os conselhos tutelares têm como principal papel garantir os direitos que estão no ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Desde que foi aprovado, o ECA sofre ataques por uma parcela da sociedade que não reconhece esses direitos. Chega a ser uma discussão um pouco rebaixada tipo, ´Querem se meter na educação do meu filho. Agora, não posso mais dar uns tapinhas no meu filho`. Vejo que temos ainda um longo caminho para realmente implementar o ECA. Ou seja, não é fácil o trabalho de um conselheiro tutelar...

Vitória - Exatamente. O ECA traz algo que precisa ser consolidado. A criança ou o adolescente é um sujeito em desenvolvimento. Deve saber que não está sozinho. Quando garantimos o direito para uma criança, uma qualidade na primeira infância, por exemplo, de acesso à educação, à alimentação, à saúde, à proteção, garantimos um direito para uma família. Ter uma criança pequena que está sendo bem assistida vai trazer qualidade para a mãe, para a avó.

Qual é a realidade das famílias brasileiras hoje? É composta por mães que são responsáveis pelo sustento, pela vida, pelo cuidado, pelo financeiro, pelo emocional. Quanto mais cuidado essa criança tiver, melhor para a comunidade e a sociedade. Precisamos defender o ECA. Defender o ECA e fazer com que ele seja cumprido é primordial para um conselheiro tutelar. Dentro do ECA estão as atribuições do conselheiro tutelar e também o que deve ser garantido para aquela criança ou adolescente.

Trabalhei por quase dois anos como educadora de adolescente aprendiz no programa de aprendizagem do Banco do Brasil. Eles ficavam quatro dias trabalhando no banco com uma carga horária de quatro horas, com carteira assinada, e um dia no projeto, estudando e aprendendo conteúdos básicos do mercado de trabalho.

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Acredito que foi uma conquista da nossa candidatura chegar em muitas pessoas com esse discurso. Para sair daquele senso comum que a gente ouviu nos últimos quatro anos, com muita notícia falsa.

Quando chegam as mães falando: ´Eu não tenho vaga na escola, me ajuda`. Como eu faço? A gente está garantindo o ECA coletivamente. Não vamos conseguir vaga na educação infantil sozinhas.

Vou atender a região central, que são 19 bairros. Na região central, acontece de tudo. Muitas negligências das zonas afastadas acabam desembocando aqui: trabalho infantil, exploração infantil...

O conselheiro tem que ser um agente da comunidade, não pode ser um servidor público

Tem muitas pessoas que falam: ´Tem que ser concurso público`. Não, o conselheiro tem que ser um agente da comunidade, não pode ser um servidor público. O ECA pede que o conselheiro tenha vínculo com aquele território porque, quando chegar uma mãe lá, vou conhecer a trajetória dela, sei que naquela comunidade está faltando escola por tal razão, aquela comunidade está sofrendo nas últimas semanas com uma violência policial mais intensa, pela guerra às drogas que sabemos que tem aí. Esse é o olhar que o conselheiro precisa ter.

Precisamos lutar para que o ECA seja garantido e executado da forma que ele traz a atribuição do conselheiro que se perdeu por essa nossa baixa organização comunitária, que acabou dando força para pessoas que não defendem o ECA estarem lá.

BdF RS - Pensando nas forças contrárias, estás preparada para as batalhas que virão? A luta é muito grande, ainda mais depois desses quatro últimos anos. E outras pessoas também estão compondo o conselho...

Vitória - Não é fácil. Mas me coloco como conselheira não sozinha, mas com o coletivo, com as pessoas que fizeram todo um esforço em conjunto para que eu estivesse lá. Um conselheiro tutelar não atua sozinho e sim em colegiado. Estou com muita esperança nesses próximos anos. Quero fazer o meu trabalho da forma que a comunidade precisa dele agora, seguir as atribuições do ECA, zelar e garantir pelos direitos.

Como um conselheiro vai atuar? Vai atuar com a rede de atendimento e com expedientes que estão lá. Vou atender, procurar acolher, lutar para que o ECA seja implementado, lutar por políticas públicas e que se pense a cidade coletivamente.

BdF RS - A tua preparação é fundamental, mas precisa ter uma estrutura, o município precisa oferecer uma estrutura. Como que está hoje essa estrutura do Conselho Tutelar?

Vitória - Hoje, o Conselho Tutelar é gerido pela prefeitura. Temos 10 conselhos na cidade com cinco conselheiros em cada. São 10 microrregiões e, ao todo, 50 conselheiros. Já está defasado esse número. Existe uma resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que (define), se não me engano, que a cada 200 a 300 mil habitantes, precisa haver mínimo um conselho tutelar. Assim, Porto Alegre deveria ter, no mínimo, mais dois conselhos.  Hoje, há sobrecarga para os conselheiros, muita demanda e poucos recursos humanos.

É importante o conselheiro que, entre suas atribuições, está a de assessorar o poder executivo, cobrar dele mais investimento. Direito se garante com recurso. Mais conselheiros e mais condições de executar o trabalho também é uma das batalhas para se garantir direitos e atender as famílias.

Como uma eleição superimportante não tem propaganda na TV, em outdoor, no rádio, na internet?

O Conselho Tutelar de Porto Alegre precisa se consolidar, ser mais valorizado. Tem vários estigmas sobre o conselho, como a baixa formação. A gente passa por uma prova do ECA e comprova trabalho na área. A grande questão é como esse trabalho é fiscalizado, como é mostrado para a sociedade.

A forma como a prefeitura tratou a eleição já mostra qual é a importância que ela dá para esse órgão. Como uma eleição superimportante não tem propaganda na televisão, em outdoor, no rádio, na internet? E sem passe livre (a prefeitura de Porto Alegre não concedeu passe livre nos ônibus no dia da votação) já mostra a importância que dá para esse órgão.

A gente tem que cobrar mais isso. Fizemos a campanha de maneira bem pedagógica, cobrando cotidianamente, informando as pessoas que elas podem votar, que não tem divulgação, a importância do órgão. A prefeitura precisa entender a dar mais condições para o conselheiro fazer o seu trabalho.

BdF RS - Como conselheira, como vais fazer essa união da comunidade, a união desses bairros para além do condomínio?

Vitória - Como funciona o trabalho no conselho? Basicamente, vou pegar o expediente, vou ler e aplicar a medida que aquela família precisa. Às vezes, é uma questão no espaço escolar, é um encaminhamento de saúde, uma aplicação de medida. Qual é a violação de direito que essa criança está tendo? O conselheiro precisa ter esse olhar e entender. Hoje, o maior violador de direitos é o Estado. De direitos da criança e adolescente, das suas famílias. Então trabalha-se com aplicação de medidas, zelando e garantindo direitos.

:: Atuação do Conselho Tutelar tem que ser baseada na Constituição Federal e não na Bíblia ::

O conselho é muito encastelado. Vou estar presente nos espaços que tem de educação. Quais são as escolas que estão no território? Estamos dispostos e abertos. Quais são os movimentos sociais, as organizações que estão construindo políticas, que estão atendendo no território? De fato, é sair desse encastelamento, que existe essa imagem do conselho e estar cotidianamente assim como já estou. Vou estar como uma conselheira, trazendo essa proximidade do órgão com a comunidade.

BdF RS - Uma mensagem final?

Vitória - Quero seguir trazendo cada vez mais informações, a comunicação é muito importante para aproximar as pessoas. Em Porto Alegre, ainda falta votar uma microrregião. As ilhas (microrregião 1) não participaram da votação pela questão das chuvas e ainda não ficou definido o dia da eleição. É importante as pessoas saberem e acompanharem esse processo eleitoral que vai acontecer.

Confira a entrevista em vídeo:


Edição: Ayrton Centeno