Uma psicanálise feminista e decolonial não é retórica, é a clínica em seu mais pleno exercício ético
Hoje uma colega me disse, sobre eu escrever nesta coluna, que era bom para a relação da psicanálise com a cultura. Sim, mas meu esforço maior é o de desnudar os mitos que circulam na cultura a respeito da clínica psicanalítica, e que são construídos e nutridos pela própria psicanálise. Então, para usar um termo conhecido, escrever aqui me ajuda a fazer um “detox” dos prejulgados teóricos e clínicos com os quais venho me deparando nestes mais de 40 anos de travessia pelas instituições psicanalíticas, tanto no Brasil quanto na França e na Argentina.
Além de escrever, tenho buscado também falar disso tudo com as novas gerações de psicanalistas. Aproveito toda oportunidade possível para estimular nelas um exercício crítico rigoroso a respeito dessa famigerada sacralização da psicanálise, que acaba produzindo um efeito cultural de repulsão à sua clínica.
Há cerca de dois anos, publiquei um artigo em um periódico psicanalítico, cujo título era “Uma psicanálise feminista e decolonial é possível?” Neste texto, que aliás passou em brancas nuvens pelos meus pares institucionais da época, eu tentava esclarecer os fundamentos éticos do Projeto Gradiva, que é um coletivo de psicanalistas, hoje uma Associação, onde atendemos mulheres em situação de violência.
Eu falava da importância desta clínica popular de psicanálise que havíamos fundado, a primeira da cidade a instituir atendimentos prioritariamente gratuitos e dirigida a mulheres periféricas, pobres, e em grande parte, negras. E também, do quanto é incontornável, a psicanálise se desfazer de seu ranço com o feminismo e vice-versa, e mais do que isso, o quanto é urgente que as mulheres psicanalistas se posicionem também como feministas, e isto como condição para que uma psicanálise decolonial possa acontecer.
Além de escrever, fizemos muitas tentativas de abrir o debate entre nossa equipe clínica e a comunidade institucional sobre nossa prática clínica feminista e decolonial. Infelizmente, essas tentativas, em muitos momentos, se revelaram ser um diálogo impraticável.
Terrível dificuldade, se considerarmos que Freud em 1918, em Budapeste, fez um discurso enfatizando a urgência em que os Institutos de Psicanálise formassem psicanalistas preparados/as para atender a população desfavorecida economicamente, e que tais tratamentos deveriam ser gratuitos.
A partir de então, até 1938, quando o fascismo dominou a Europa, várias clínicas públicas gratuitas de psicanálise foram criadas nas capitais europeias. Espero sinceramente que o livro de Florent Gabarron Garcia “Uma história popular da psicanálise”, recentemente publicado no Brasil, seja lido por psicanalistas, e que tal leitura possa produzir um vivo desejo de intervir no social.
No mínimo que os/as psicanalistas do Brasil não rejeitem o livro deste autor, já que ele é um psicanalista. Ou seja, desejo-lhe um melhor destino do que o livro de Elizabeth Ann Danto, “As clínicas públicas de Freud: Psicanálise e justiça social” que tem sofrido uma recusa sarcástica por parte dos devotos da psicanálise sagrada, alegando que a autora não é psicanalista, apenas historiadora. Obviamente que a recusa não está na formação da autora, mas na carga crítica do livro ao colonialismo de uma psicanálise que não abre mão de estar a serviço dos ideais burgueses neoliberais.
Então, falar de psicanálise decolonial não é evidente. Obviamente que se tem correntes muito abertas dentro da psicanálise institucional, e em várias delas se fala de psicanálise e decolonialidade. Pessoalmente, só vou acreditar na decolonialidade dessas instituições quando elas promoverem clínicas populares gratuitas, ou seja, quando elas desmonetizarem a psicanálise, tornando-a acessível a quem tem desejo e não somente a quem tem dinheiro. Enquanto isso, só escuto uma tagarelice de aristocratas libertários, preocupados com o mundo todo, porém inertes.
Quanto ao feminismo, fico torcendo pela publicação urgente no Brasil do livro de Laurie Laufer, “Em direção a uma psicanálise emancipada: reatar com a subversão”. Nele encontramos uma desconstrução impactante dos dogmas da psicanálise freudiana e lacaniana, e uma denúncia das resistências ao diálogo com os estudos de gênero. Muito necessário!
Na próxima coluna falo mais disso com vocês, mas adianto que este livro lança muita luz sobre as complexas relações da psicanálise com o feminismo, e o quanto a colonialidade da psicanálise está entranhada na sua resistência ao feminismo. É um verdadeiro soco no estômago dos barões e das baronesas da psicanálise, que até leem Lélia Gonzales e Isildinha Batista Nogueira, por exemplo, e admiram, em um formidável exercício retórico.
A urgência em acabar com os entraves deste diálogo é imensa, e torço para que muitos grupos como o “Projeto Gradiva” aconteçam. Uma psicanálise feminista e decolonial não é retórica, é a clínica em seu mais pleno exercício prático, e logo, ético. Devolver a palavra a mulheres invisibilizadas e silenciadas pela desigualdade social e pelo patriarcado, que são o caldo grosso do capitalismo, que é, em essência, racista e neoliberal, é uma tarefa incontornável da psicanálise. Menos palavrório e mais escuta, colegas!
* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora Bestiario, 2022).
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko