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Coluna

Constelação familiar: uma polêmica pseudocientífica no Judiciário

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Um grupo de cientistas elaboraram uma carta, solicitando um debate público sobre a utilização da Constelação Familiar no sistema Judiciário - Reprodução da obra 'Una familia', de Botero
A utilização da Constelação Familiar no sistema Judiciário é um tema controverso

Nos últimos dias, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, deu voz a um grupo de cientistas que elaboraram uma carta, solicitando um debate público sobre a utilização da técnica conhecida como Constelação Familiar (CF) no sistema Judiciário, especificamente na mediação de conflitos em varas de família.

No início deste ano, o Conselho Federal de Psicologia emitiu uma nota técnica (1/2023) expressando sua posição contrária à utilização da CF, argumentando que esta abordagem carece de fundamentação científica e epistemológica sólida, além de entrar em conflito com o código de ética da Psicologia. 

Em resumo, a CT foi desenvolvida pelo ex-padre alemão Bert Hellinger (1925-2019). Hellinger combinou elementos de técnicas como psicodrama (envolvendo dramatizações), gestalt terapia (focada na consciência do momento presente) e também incorporou influências da tribo Zulu, originária do continente Africano, onde se acredita que os ancestrais possam ter influência na vida cotidiana.

A técnica também se baseia nas chamadas “Três leis do amor”, que compreendem: 1 - Pertencimento: todos têm o direito de pertencer a uma família, independente de ações passadas em relação aos membros da mesma; 2 - Hierarquia: aqueles que chegam primeiro na família têm um status hierárquico superior em relação aos outros membros, incluindo homens em relação às mulheres; 3 - Equilíbrio: a família é considerada como tendo uma alma própria, na qual todos os membros compartilham responsabilidade por tudo que ocorre. O desequilíbrio em relação a essas leis pode resultar no sofrimento de todos os envolvidos. 

As sessões de CT envolvem a coordenação de um facilitador, conhecido como constelador, que ouve os problemas apresentados pelos indivíduos em sofrimento, denominados constelados. Em seguida, selecionam-se voluntários dispostos a representar os envolvidos no conflito, dramatizando-o. Com base nas leis do amor, o constelador formula hipóteses para entender o caso.

Acredita-se que exista um campo chamado “morfogenético”, no qual todas as informações energéticas, tanto de pessoas vivas quanto daquelas que faleceram, permanecem armazenadas. Esse campo pode ser acessado por qualquer voluntário disposto a fazê-lo.  

É curioso observar que essa suposta “energia” no campo morfogenético poderia ser acessada de maneiras diversas, incluindo objetos flutuantes em uma bacia d’água, que supostamente se movimentariam de acordo com os questionamentos do constelador, bem como por animais, como o cavalo. Alguns consteladores argumentam que os cavalos têm um sistema límbico mais desenvolvido e, portanto, uma maior predisposição para acessar esse campo morfogenético.

Entre todas as polêmicas questões levantadas, é importante refletir sobre alguns pontos essenciais: (1) A utilização deste método pseudocientífico, que levanta sérios questionamentos éticos, deveria integrar o sistema Judiciário? (2) A lei da hierarquia na CT, que sugere que quem chegou primeiro na família ou os homens têm mais poder, pode ser vista como reforçadora da desigualdade de gênero. Será que esta técnica tem a neutralidade necessária para ser aplicada no contexto judiciário? (3) a noção de campo morfogenético autoriza o constelador a fazer inferências sobre conflitos apresentados, criando respostas imaginárias que podem ou não ser precisas. Essas inferências poderiam agravar a situação e inclusive prejudicar o sistema de justiça? (4) E quando se trata, por exemplo, de casos de abuso, a aplicação da lei do equilíbrio não seria extremamente problemática? Já que a mesma afirma que todos são responsáveis por tudo que ocorre na família. Não teria, como efeito, criar situações em que a vítima seja responsabilizada pelo crime cometido? 

Em última análise, a utilização da Constelação Familiar no sistema Judiciário é um tema controverso que requer uma análise cuidadosa, bem como um exame crítico de suas bases científicas e éticas. Também é importante lembrar que o Estado é laico, e o próprio criador da técnica frequentemente associava essa prática a elementos religiosos e espirituais.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko