Diante da enchente que assustou Porto Alegre, o Brasil de Fato RS foi conversar com a arquiteta Mima Feltrin. Seu trabalho de conclusão de curso intitulado “Das Águas à Cidade” foi premiado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, seção RS. Nele, ela desenvolve um projeto de prevenção contra enchentes na capital gaúcha, ao mesmo tempo em que resgata o rio Guaíba, hoje oculto pelo muro da Mauá, para o olhar dos porto-alegrenses, além de propor uma mudança profunda da região central da cidade.
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Formada pela PUC/RS, Mima também estudou na Universitat Internacional da Catalunya, em Barcelona. Hoje, atua e pesquisa áreas da arquitetura como espaços públicos, waterfronts e desastres ambientais. Confira:
Brasil de Fato RS - Que projeto é esse teu que trata de uma “relação mais franca do centro da cidade com o cais Mauá, e então com o rio Guaíba”?
Mima Feltrin - A gente está falando do Brasil, Rio Grande do Sul, de Porto Alegre e da região do cais Mauá. Lá por 2019/2020, o Brasil já estava sofrendo vários desastres ambientais: Amazônia, litoral do Nordeste, Rio de Janeiro, Brumadinho e, ao mesmo tempo, tivemos a primeira convenção sobre terraplanismo e soubemos que 11 milhões de brasileiros acreditavam que a terra era plana.
Veneza estará submersa em 100 anos e Porto Alegre em 400
BdFRS - Terra plana é muito bom...
Mima - Pois é. Então, vivíamos - e ainda vivemos - uma grande dicotomia. Nessa mesma época, Veneza registrou seu pior índice de inundações. Não é só Porto Alegre que convive com as inundações. São diversas cidades no mundo que, a partir do aquecimento global, tem sofrido. Daqui a 100 anos, Veneza vai estar submersa, Nova York daqui a 600 anos, e Porto Alegre, segundo métricas e estudos da Nasa, em 400 anos...
BdFRS - Não é um caso isolado.
Mima - É uma realidade mundial. Xangai, cidades holandesas, já estão se preparando para sofrer com essas inundações e alertando seus cidadãos. Enquanto nós, aqui no Brasil, estamos começando a discutir se existem ou não inundações. O próprio Atlas Brasileiro de Desastres Naturais mostra que, em uma década, os desastres quase triplicaram. O Sul do Brasil é a segunda região mais afetada pelas inundações. A primeira é o Sudeste. Em 2010, o governo federal gastou R$ 167,5 milhões em prevenção, e R$ 2,3 bilhões para reabilitação. Ou seja, gastou 14 vezes mais em reconstrução do que prevenção. O Brasil está com uma lógica completamente inversa.
BdFRS - Porto Alegre teve uma grande enchente, que invadiu o centro da cidade, que foi a de 1941...
Mima - O professor Carlos Tucci, que leciona hidrologia na Ufrgs, mostra que os riscos existentes em 1941 continuam os mesmos. Diz que, em qualquer ano, poderão ocorrer enchentes superiores. Então sim, pode haver uma enchente superior a de 1941 a qualquer momento. Basta conflitarem os ventos x, y, a conversão dos rios da Serra, uma série de fatores climáticos podem causar essa mesma enchente.
Fazendo um breve histórico dessa época: em 1940, Porto Alegre tinha uma franca relação com o Guaíba, o porto era operante; em 1941 e 1967 houve grandes enchentes, que deixaram população e governo com muito medo. Então, se teve a brilhante ideia de construir um muro de contenção e o cais continuava em operação. Não é só uma barreira que separa o centro da cidade do cais Mauá, mas tem também a avenida Mauá, o muro do trem, depois o próprio trem e a própria barreira de contenção. Ficou quase que uma área desmembrada. Os pedestres não têm fácil acesso ao cais para contemplar a belíssima orla. E o porto já estava desativado...
Metade das pessoas não sabia o que havia atrás do muro da Mauá
BdFRS - Tua tese também trata desse aspecto...
Mima - Fazendo o meu TCC, comecei a ir ao Centro e perguntar para as pessoas se elas sabiam o que havia atrás do muro. E metade das pessoas não sabia. Atrás do muro tem uma fauna e uma flora, um rio lindíssimo, que poderia ser usufruto da população da cidade e que hoje é muito mal aproveitado. Então (poderíamos) trazer diferentes atividades ao longo desse percurso do muro para torná-lo mais atrativo. Dentro dessa questão de deixar ou não o muro, surgiram várias indagações. Como poderia ser o acesso dos pedestres? Fazer uma passarela?
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O próprio IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) descarta essa possibilidade. Os armazéns são patrimônio histórico, a paisagem também é um patrimônio cultural. Não pode haver nenhuma intervenção acima da altura dos armazéns. Sem passarela, então. Caso venha uma nova enchente, sabemos que o muro apresenta fissuras e que é preciso colocar vários sacos de areia ao longo dele para ele aguentar. Se vier a inundação, será que o muro cumpriria a sua função? Ele não tem um restauro e provavelmente teríamos que contar com outra barreira de proteção...
BdFRS - Levando isso em consideração, não seria melhor, para também preservar o nosso patrimônio histórico e cultural, como os armazéns, levar essa barreira para a frente dos armazéns e proteger a orla?
Mima - Levar esse muro para a frente não é a única solução, porque ainda tem a barreira da avenida Mauá, do trem, e mesmo que a gente levasse uma barreira vertical de três metros para a frente dos armazéns, quem está na frente dessa barreira não conseguiria ver o rio. O problema da população não saber o que existe atrás do muro da Mauá continuaria.
O que seria possível fazer então? Poderíamos ter na estação da Rodoviária uma paralisação do metrô e dali até a zona Sul da cidade fazer um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos). Já diminuiria o muro do trem e toda a questão física, sonora, visual e poluição que o trem causa. A avenida teria uma redução de velocidade. Não precisaria mais ser uma via expressa. E ainda assim a gente teria como solucionar essa questão visual do muro lá na frente dos armazéns.
Leite quer uma barreira de 1m20cm. Não é suficiente. Precisaria de 2m
Por que que barreiras móveis não funcionam no caso de Porto Alegre? Trago dois exemplos: barreiras móveis acopláveis e barreiras móveis desdobráveis. Vi que (o governador Eduardo) Leite fez um vídeo no Tiktok dizendo que essa será a solução. Estudos do IPH (Instituto de Pesquisas Hidráulicas) da Ufrgs demonstram que, no caso de Porto Alegre, como não há um plano de contenção de inundações consolidado, como não se tem uma equipe especializada para montar essas placas e também não existe um bom sistema de (contenção) de inundações, essas placas já criariam conflito na hora de montar...
BdFRS - Por quê?
Mima - Porque é uma extensão muito grande. As placas funcionam quando se tem uma curta extensão e são necessárias poucas placas. Mas, na extensão do cais Mauá, são quilômetros. Para se proteger toda essa área seriam necessárias algo como 350 placas. Se uma só placa desse errado, tivesse alguma fissura, comprometeria todo o sistema. Fora que, em se tratando de Porto Alegre, como vemos que o nível do rio sobe com a chuva e, mesmo com a sequência de dias de sol, o nível da água não recua (tão rapidamente). Esse sistema não é feito para aguentar durante muito tempo. É de encaixe. Pode ter uma fissura e as placas não aguentarem a força da água.
Porto Alegre está na cota 2.70m do nível do mar e aqui a cota indica que a água pode chegar a 4.75m. Assim, precisaria uma barreira de dois metros de altura. O Leite falou que seria 1m20cm. Não é suficiente. O suficiente são 2m de altura.
Podemos ter uma rota, tanto de ciclovia quanto do VLT, até a zona Sul
BdFRS - Você diz que existem cinco pontos de protagonismo do pedestre no centro da cidade, que poderiam devolver o vínculo da cidade com a sua orla. Quais são?
Mima - São a praça Brigadeiro Sampaio, a igreja das Dores, a entrada principal do cais Mauá, o próprio Mercado Público e o antigo frigorífico da cidade. Hoje, o pedestre tem uma calçada super estreita na avenida Mauá. Com o alongamento da própria orla à frente dos armazéns, teríamos uma possibilidade de aumentar essa calçada. Na quina onde hoje é o cais Embarcadero, poderíamos ter piscinas públicas aquecidas. Teríamos passeios sobre a água, com pontes, um parque para as pessoas correrem, mirantes ao longo desse parque para poder contemplar a fauna e a flora. Esse parque pode permitir que o pedestre desça e fique no nível do rio.
O trecho que decidi detalhar melhor é a área entre o Mercado Público e o frigorífico da cidade. No mercado, o que queria resgatar para o projeto era o cenário de antigamente, muito diferente do que existe hoje. Resgatar a relação do mercado com o próprio rio, criando espaços públicos para a comunidade, usando os módulos dos armazéns como módulos de paisagismo. A avenida Mauá seria rebaixada nesse trecho, e todo esse espaço seria uma praça, com luzes para baixo, um lugar de acolhimento dos entregadores.
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O visual do mercado até o cais é franco, sem barreiras, é possível até ver as ilhas. Seria essa relação de quem desce a avenida Borges de Medeiros e sai nesse espaço para contemplar uma das paisagens mais lindas da nossa cidade. Falando de ciclovia, podemos ter muito bem uma rota, tanto de ciclovia quanto do VLT, indo desde a Rodoviária até a zona Sul, fazendo integração com a avenida Ipiranga.
Em Nova York, o escritório de arquitetura chamou a população para desenhar o projeto junto
BdFRS - Há também a ideia do terminal hidroviário...
Mima - É um terminal hidroviário para Porto Alegre realmente aproveitar esse benefício de estar à beira de um rio, de ter uma comunidade ribeirinha, que mora no entorno e trabalha na cidade. Quais pontos esse terminal poderia atender? Poderia atender a Tristeza (bairro), a zona Sul, o 4º distrito, a zona Norte. Não tem porque Porto Alegre não aproveitar esse fluxo hidroviário. Seria um projeto completamente voltado para a população, tentando melhorar a vida dos moradores das ilhas, das pessoas que utilizam o centro de Porto Alegre.
BdFRS - Quais foram as tuas principais referências? Temos falado muito sobre as cidades resilientes e toda a adaptação que algumas cidades estão fazendo já para esse enfrentamento das mudanças climáticas. Quando estavas pensando o teu projeto já tinhas tais questões em mente?
Mima - Sim, em Nova York tem o projeto que é o BIG U. Gosto dele porque o escritório de arquitetura, o Bjarke Ingels BIG, chamou a população local para desenhar o projeto junto. Para ouvir a população local, saber quais eram as suas necessidades, o que ajudaria no dia a dia dessas pessoas. Para, então, desenhar uma orla que também fosse uma barreira para as inundações, mas que, quando não tivesse cheias, favorecesse o cotidiano dessas pessoas.
Esse projeto envolve toda Manhattan. É um dos mais avançados do mundo. Tem etapas que já funcionam, essa contingência de inundações. Ao projetar, eu pensaria, no que as pessoas de Porto Alegre gostariam. Quais as necessidades desse público, o que poderia trazer mais qualidade de vida para quem mora no Centro ou para quem trabalha? Foram as (minhas) referências para montar esse projeto. Fora projetos holandeses também.
Estudei muito em um livro, que é só sobre inundações e projetos públicos e que a gente vê em diversas orlas da Europa, onde foram dadas soluções que acompanham o relevo local. Não precisa ser um muro de contenção duro, mas tornar essa barreira algo que contribua com a população local.
BdFRS - Falaste sobre as comunidades ribeirinhas - como as pessoas que vivem nas ilhas de Porto Alegre. Teria algum efeito para elas também?
Mima - Para as ilhas teríamos que pensar, mas não na barreira. Se a gente tivesse uma fauna e uma flora restauradas, essa área toda da orla já conseguiria enxugar essas águas da enchente e amenizar a situação dos ribeirinhos. Seria necessário um projeto específico para cada uma das ilhas, levando em consideração a população local, as suas necessidades, como é a entrada da água nessas ilhas, qual o nível em relação à ilha e ao rio... O projeto poderia contribuir, além do terminal hidroviário, com a fauna e flora restauradas, renaturalizada, sendo um ponto de absorção dessas águas.
O Brasil é o quarto país no mundo com mais chances de sofrer inundações
BdFRS - O projeto chegou a ser apresentado para algum órgão público, como a prefeitura de Porto Alegre? Houve algum debate sobre ele?
Mima - Não. Queria muito ter levado esse debate para a frente. Era, também, época de eleições (para a prefeitura) então não tinha um governo definido para ser apresentado. Depois, me mudei aqui para o Rio de Janeiro para fazer o mestrado sobre inundações. Mandei o projeto para um debate da Ufrgs e também para conhecimento do cais Mauá, mas nunca tive retorno.
BdFRS - E agora qual será o teu caminho, qual a pesquisa do teu mestrado?
Mima - O Brasil é o quarto país no mundo com mais chances de sofrer inundações. Em primeiro lugar vem a China, depois os Estados Unidos, a Índia e o Brasil. Fiquei muito tempo buscando essas referências para entender como países subdesenvolvidos dariam respostas às inundações, visto que a gente não tem o mesmo poder econômico e possui uma sociedade com vulnerabilidade muito mais agravada.
Comecei a buscar quais cidades do país seriam mais suscetíveis a inundações e cheguei ao Rio. Então, logo de cara defendi meu TCC, apliquei para o mestrado no Rio para vir estudar as inundações e passei pela UFRJ. Em dezembro, vou defender o meu mestrado com uma aplicação das inundações pensando na comunidade da Maré.
BdFRS - O Brasil não tem uma política para controle de inundações?
Mima - Não tem. Se não me engano, tem um conselho. Mas precisaríamos que cada estado tivesse o seu plano hídrico contra as inundações. E que ainda cada cidade tivesse o seu plano de contenção contra enchentes. Esse seria o mundo ideal, mas o Brasil não possui isso ainda.
BdFRS - E quais seriam os passos para se chegar a isso?
Mima - Teríamos que reunir diferentes esferas, universidades, governos federal e estaduais, para produzir um plano unificado. Entender, em primeiro lugar, como as inundações estão afetando diferentemente cada estado, quais são as áreas mais assoladas, quais são as sociedades mais vulneráveis. E começar um plano de contingência. Saber se aqui vamos usar barreiras acopláveis ou não. Então, tem que ser uma barreira realmente construída, o que levará mais tempo.
Temos um território muito grande, com diferentes características geográficas e com mudanças climáticas cada vez mais agravadas. Então, no Sul está chovendo e o Rio tem um calor de 40 graus. Temos que pensar não só em áreas inundáveis, mas em seca também. Para começar um debate teremos que entender quais as áreas que estão sofrendo com as mudanças climáticas, que tipos de desastres naturais temos em cada região, quais as soluções para cada um deles, trazer a academia e os órgãos públicos para debater as soluções, discutir um plano, ver como aplicá-lo, descobrir quanto tempo demorariam as obras, qual o investimento...
A gente tem uma política da concretação das orlas. Cada vez colocamos mais concreto
BdFRS - Vistes as imagens da inundação no Vale do Taquari? Estive lá. As cidades foram erguidas na beira do rio, que é muito desmatado nas suas margens. Acho que existe todo um processo de repensar essa reconstrução, que precisaria levar em consideração essa política de inundações que estás falando...
Mima - Com certeza. Enquanto vemos muitos países adotando a política da renaturalização das suas orlas, a gente tem uma política da concretação das nossas orlas. Cada vez colocamos mais concreto. Ao mesmo tempo, retiramos dessas margens a própria fauna e a flora local, que tem um ecossistema todo, importantíssimo, para se levar em conta quando houver inundações.
Não é à toa que tínhamos muitas áreas de mangue junto a esses rios. A gente vai desmatando, removendo as áreas que existem para o rio poder se ajustar, as águas baixarem e ele voltar a sua conformidade original. A gente constrói em cima. Com esse processo vão ocorrer inundações cada vez mais fortes. Respeitar as margens é um dos passos desses novos planos.
Falta a população acreditar que as mudanças climáticas afetarão as nossas vidas
BdFRS - Uma última observação?
Mima - Algo que me deixou bem preocupada foi o novo projeto para o cais Mauá. Eles (os autores) não pensaram nenhuma questão envolvendo essas inundações. Possivelmente, o governo dizer que vai fazer barreiras acopláveis seja uma consequência dele não ter pensado numa solução já no projeto. É preciso aprofundar a discussão das inundações. E a população também deve levar isso mais a sério.
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Não se trata da retirada ou não do muro. Se o muro é feio ou não é feio. Mas sim levar em conta que estamos vivendo uma era em que as mudanças climáticas afetarão as nossas vidas. Falta a população acreditar nisso. Falta o próprio governo ver como outras cidades estão se mobilizando e levando isso a sério. Vamos ter que lutar contra essas enchentes. Meu projeto nasceu da preocupação de enxergar esse problema e começar a levá-lo em consideração.
Edição: Ayrton Centeno