O texto busca elucidar aspectos cruciais após a análise do marco temporal das terras indígenas (PL 490/07). Este projeto de lei é relevante, pois fixa a data da promulgação da Constituição Federal, mas deixa brechas legais para reconhecer compensações pela ocupação de terras ancestrais.
Culturas de Resistência em Perspectiva
Com notável perspicácia, Sahlins Marshall, em seu livro "Esperando Foucault, ainda", lança luz sobre as "culturas de resistência" e a frequente associação destas a uma narrativa global de vitimização. Ele argumenta que essas culturas, quando vistas pelo direito liberal, são simplificadas em defesa de uma identidade étnica de grupo, perdendo seu conteúdo emancipatório na política e na sociedade. Neste contexto, é fundamental dizer que o Direito não representa apenas um marco de regulação econômica. Ele oferece também uma leitura de classe que é intrínseca à cultura política brasileira.
:: O marco temporal e o nome da rosa - ou 'de como transformar uma derrota em vitória' ::
O argumento que afastou o marco temporal repercute internacionalmente a busca por direitos a uma soberania que – ainda que tardia, caminha para superar heranças coloniais, mas esquece que elas estão infiltradas nas instituições.
No entanto, enfrentamos outros problemas subsequentes, de natureza política. Há uma preocupação de que o mesmo voto do ministro Alexandre de Morais, em prol dos povos indígenas, possa produzir uma contradição, em relação à garantia constitucional que determina o cumprimento desse direito. Ou seja, é possível que a discussão se complexifique tanto ao Estado, de maneira que o cumprimento destas determinações torne impraticável o direito.
Assim, reconhece-se, publicamente, o alcance dessa decisão de controle constitucional, ao passo que pelo argumento da incapacidade (financeira, política e administrativa do Estado), ele deixe de garantir o seu cumprimento. Logo, mantém-se estruturalmente rígidas e permissivas as forças que interatuam no direito à propriedade, tornando, na prática, essa decisão sem efeitos conclusivos.
:: Indígenas denunciam à ONU violações de direitos previstas no marco temporal aprovado pelo Congresso ::
Ao estabelecer um valor de reparação para indenizar fazendeiros que se apossaram, ilegalmente, das terras no passado, o julgamento empaca outra vez. Esse próximo capítulo promete estancar a situação, considerando a previsibilidade indenizatória pelo estado através de TFPs (títulos da fazenda pública), com valores exequíveis em até 20 anos para serem amortizados. Em algum momento, relembra o ministro Gilmar Mendes que, ao apurar determinada região contestada por fazendeiros e indígenas, descobriu-se que as áreas em disputa pertenciam ao Estado e foram invadidas por particulares, onde passaram a áreas produtivas outra vez.
Agenda ambiental e dependência política
Negar o acesso à Justiça definindo que a legitimidade do direito só poderia declarar titularidades, através do Poder Judiciário, até o limite da Constituição de 1988, parecia uma injustiça tremenda. No entanto, reconhecer o direito à terra e a soberania cultural do povo indígena, mas não a cumprir, me parece um forme de injustiça ignóbil.
A reação causou agitação no Senado e na Câmara, com alguns parlamentares defendendo a inconstitucionalidade, e mandando um recado explícito ao STF - “que não se meta onde não é da sua competência”. Uma astuta manobra que engessa o Direito para preservar interesses de classe, de quem é parte interessada, e age sob a influência pervasiva da ideologia do mercado. Utiliza-se, assim, o direito como forma de “manufaturar” as leis, e desfaz-se do direito, para legislar em benefício próprio.
Nesse aspecto, a reação ao viés “ideológico” (como se este devesse ou pudesse ser eliminado da política), geralmente, parte daqueles que não percebem o quanto estão contaminados por ela. Não existe ideologia maior do que aquele ou aquela que acredita estar imune a todos os tipos de ideologias. Em resposta a isso, quando negamos esse quadro de violências implícitas na política institucional brasileira, estamos positivando a neutralidade do agir, dentro de uma estrutura manifesta de dominação e poder.
Assim segue nosso país, em um percurso jurídico-defensivo contra a regulação tributária, contra a reforma agrária e rural, mas convicto no direito de defesa de uma humanidade civilizatória para a propriedade. Essa disputa, frequentemente, prioriza a agricultura orientada pela ideologia patronal, religiosa e familiar, gerando impactos devastadoras ao meio ambiente e às sociedades.
De alguma forma, precisamos contabilizar nossa sabotagem à soberania alimentar, com a hiperconcentração de terras improdutivas, com o uso de agrotóxicos e transgênicos proibitivos em outros países, além da desertificação ambiental, em curso no Brasil. Tudo isso alinhando-se com uma economia primário-exportadora de commodities, refém dos preços do mercado internacional e da insuficiência alimentar da sua própria população. Essa questão requer uma reflexão urgente a ser feita com a sociedade. Principalmente, quando áreas de petróleo e gás, recém descobertas na foz do rio Amazonas, são anunciadas como promessas de riqueza e emprego, pelo presidente Lula no G20.
A campanha pró-marco temporal está vinculada ao tráfico de influência de setores empresariais que financiam parlamentares para manter esquemas contínuos de corrupção institucional. Do outro lado, o empasse da restituição econômica coloca o agro como credor do Estado e as suas receitas, dentro da esfera da “ilegalidade”. As indenizações também são prometidas às comunidades, o que contraditoriamente, aponta um entrave ao cumprimento do teto de gastos ao direito. O Judiciário decide favoravelmente ao cumprimento, mas o Legislativo e a sua bancada do agro, buscam soluções contornáveis impedi-la.
Rumos contornáveis à sustentabilidade ambiental
Considerando as atividades ilegais por trás de 90% do desmatamento da Amazônia, como garimpo ilegal, monocultura, agropecuária e tráfico de drogas, é fundamental avaliar a contribuição do setor agropecuário em contraste com outros setores para o PIB brasileiro. O setor agrícola, por exemplo, recolhe muito pouco, apenas 16,3 mil em exportações, representando 5,4% do PIB, em contraste com o setor industrial (25,5%) e o setor de serviços (52,4%). Esses dados ressaltam a complexidade das alianças entre os setores econômicos e destacam a necessidade de uma abordagem política abrangente que não recorra às práticas de neoextrativismo, que deixa a iniciativa privada para passa a ser praticada pelo Estado.
Uma vez disse Millôr Fernandes sobre o Brasil ter um passado enorme à sua frente. Sabendo disso, a maioria conservadora no congresso tem explorado a situação desfavorável do governo, determinando ajustes na agenda ambiental por meio de um presidencialismo de coalizão. Assim, perpetuam-se práticas de dependência política da bancada ruralista, da bala e da bíblia, criando releituras escatológicas que remetem a um passado de continuidades, com a manutenção de tutelas indianistas pelo Estado, pelos genocídios que passam impunes desde antes da ditadura militar.
Nesse sentido, torna-se mais evidente como a dimensão da propriedade molda diversas perspectivas para sustentar seus monopólios. Defender o monopólio do agro, é, de certa forma, colonizar também o uso da razão neoliberal, que explora povos e recursos naturais, recebendo incentivos substanciais para isso.
Levantar uma defesa justa e igualitária significa ir além dos excepcionalismos que excedem o discurso étnico de proteção e reconhecimento, por meio do direito. Tudo isso em prol de um desenvolvimento financeiro que já nasce fadado ao fracasso desde o início, e que parece negligenciar o esgotamento em potencial de nossos recursos básicos às custas do sacrifício alimentar e desenvolvimentista do nosso país.
* Advogada e Professora especializada, com mestrado em Direito pela Universidade La Salle e formação pela PUCRS. Especialização em pesquisa empírica nas áreas de trabalho, democracia e política e Membro do GPTC/USP e GPTC/UFRGS.
** Este é um texto de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira