Tiremos o aborto do armário, pois isso acontece em nossos corpos-territórios
Esta data, o Dia Latino-americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, no ano de 2023, é histórico em nossos territórios e ilustra a transversalidade das lutas feministas de Abya Yala. As diferentes consignas que sintetizam nossas pautas demonstram: nem uma a menos, vivas, livres e desendividadas nos queremos, nem presa nem morta. A grande onda verde que se espalha e se multiplica por América Latina emociona, ao mesmo tempo torna visível as manobras discursivas e institucionais que incidem sobre o tema, sobretudo em momentos de eleição.
A intrínseca relação entre aborto e democracia é flagrante e hoje, milhões de argentinas, argentines e argentinos estão nas ruas afirmando a importância da garantia e manutenção de direitos humanos frente à ofensiva do candidato de extrema direita, Javier Milei que, tal como Trump e Bolsonaro, busca angariar votos dos setores mais conservadores através de promessa de banimento e proibição do aborto. Segundo o deputado e economista neoliberal, seria legal vender um órgão ou um filho, mas jamais uma interrupção voluntária, o que expõe as estratégias da política partidária que, esperamos, se torne obsoleta com o avanço da discussão e a desestigmatização do tema. Como a luta pelo direito à memória, verdade e justiça encontra-se em outros patamares, o efeito marea verde tem sido usado e conclamado como analisador do perfil político dos candidatos: de um lado, os lenços brancos e verdes e, do outro, os lenços azuis, que condenam tanto o aborto como a educação sexual integral sob o jargão “não se meta com meu filho” (con mi hijo no te metas).
Já no Brasil, a descriminalização do aborto do é uma questão de justiça reprodutiva, social e, também, epistêmica: o misoprostol teve seus efeitos uterotônicos (indutores de contração uterina) e uso para propiciar abortos seguros descoberto pelas mulheres brasileiras periféricas. As “Anônimas do Cytotec”, como ficaram conhecidas aquelas que acolhiam e orientavam outras mulheres a utilizar o fármaco, vendido até então sem restrições para tratamento de desconforto gástrico, foram as precursoras do que chamamos hoje de acompanhantes, e cujo trabalho incidiu diretamente na drástica redução da mortalidade materna ao longo dos anos 90. Tais práticas começaram a ser estudadas pela comunidade científica e, atualmente, é um medicamento considerado essencial pela Organização Mundial da Saúde (OMS) dada a sua importância na assistência à saúde reprodutiva, e que deveria ser disponibilizado ainda no nível da Atenção Primária.
Esta é uma tecnologia social potente, tão contemporânea quanto ancestral, que se espalhou pelo continente e é uma característica marcante do ativismo: consolidou uma identidade coletiva, um modo de ação direta e práticas transfronteiriças de feminismo. Exemplos disso são o movimento socorrista, na Argentina, e grupos que se espalham por toda a América Latina, como as Las Libres, no México, que tem apoiado estado-unidenses a interromper suas gestações a partir do envio de medicamentos desde que a decisão que considerava constitucional o direito ao aborto nos EUA, a Roe vs. Wade, foi derrogada em 2022. Verónica Sánchez, diretora da organização mexicana com larga atuação no enfrentamento ao encarceramento de mulheres condenadas à morte por “homicídio em razão de parentesco”, foi considerada pela revista Time como uma das mulheres mais influentes do ano de 2023, e têm relatado o desconhecimento das práticas de aborto com fármacos por parte das mulheres do gigante imperalista. A garantia de acesso à medicação de forma gratuita, bem como exames e acompanhamento na rede pública configura a implementação do direito ao aborto na Argentina para além do procedimento realizado em hospitais.
Atualmente, no contexto brasileiro, o misoprostol configura como uma medicação de uso exclusivo hospitalar e, devido a normativas relativamente recentes e elaboradas durante governos de esquerda, também figura a criminalização de seu porte. Ou seja, atuar onde o Estado falha, empregando um método recomendado por diretrizes científicas internacionais, no Brasil, significa múltiplas criminalizações: por abortar, por apoiar quem busca abortar, e crime contra a saúde pública. Como vimos, o Estado brasileiro tem dívidas históricas com as mulheres, especialmente as mulheres negras periféricas, e o conhecimento produzido e construído com e através dos nossos corpos. Quem produz os abortos clandestinos e toda a insegurança em torno da impossibilidade de acolhimento e acesso seguro aos insumos é o próprio Estado, e não as pessoas que abortam em condições tão desfavoráveis. O que acompanhantes realizam, em todo mundo, nada mais é do que garantir que direitos humanos fundamentais sejam possíveis.
Como o aborto se descriminaliza e se torna legal não são questões menores. Ainda observamos o discurso, mesmo entre aliadxs à causa, que ninguém é favorável ao aborto, mas ao acesso. Esta é uma colocação que exemplifica a larga estrada em direção à desestigmatização social do aborto: para que cheguemos ao nível de massificação da discussão, precisamos parar de temer falar sobre aborto, para então deixarmos de temê-lo. Se este evento na vida reprodutiva de metade da população de todo e qualquer território é tão comum ao ponto de ser inevitável, por que sustentam-se ainda posições ambivalentes? Ser favorável ao aborto, desde que aconteça segundo determinadas circunstâncias (violência, risco de vida ou incompatibilidade), por determinados profissionais (médicos, quando a própria OMS reconhece que mesmo agentes comunitários, quando capacitados, são suficientes) e até certa idade gestacional (ignorando que, quanto mais avançada a gravidez, maiores são as vulnerabilidades de quem busca interromper a gravidez) NÃO é apoiar essa causa histórica, mas seguir operando um certo regime de silenciamento dessas experiências e ignorar o largo histórico de sequestro dos nossos conhecimentos e pautas.
Tiremos o aborto do armário, pois isso acontece não em determinados países, mas em nossos corpos-territórios: liberdade sexual e reprodutiva, ainda que tardia.
* Benke Yelene é ativista por direitos humanos.
** Este é um artigo de opinião. A visão dx autorx não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko