Rio Grande do Sul

PRIVATIZAÇÃO

Entidades criticam aumento de vantagens a investidores no novo edital de concessão do Cais Mauá

Após ausência de propostas, governo Leite aumenta benefícios a vencedor do leilão do espaço no centro de Porto Alegre

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Projeto apresentado pelo governo do estado traz previsão de construção de nove torres na área das docas do Cais Mauá - Reprodução

O edital de concessão do Cais Mauá à iniciativa privada, publicado pelo governo do Rio Grande do Sul nesta segunda-feira (18), foi criticado pelo Coletivo “Cais Cultural Já” e o Projeto de Extensão “Ocupação Cais Mauá Cultural”, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Em nota conjunta, o grupo aponta uma série de problemas e inconsistêncuias jurídicas na nova tentativa de privatização do espaço da capital gaúcha, como prazo prolongado para restauração dos Armazéns e diminuição do tempo destinado para uso público dos espaços.

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O novo edital foi lançado pelo governo Leite com uma série de mudanças a fim de tentar atrair a iniciativa privada para assumir o Cais Mauá por 30 anos. O leilão anterior, que seria realizado em dezembro de 2022, foi cancelado por nenhuma empresa ter enviado propostas para participar da disputa. Agora, as propostas serão recebidas até 14 de dezembro e o leilão está marcado para o dia 21 do mesmo mês, na B3, em São Paulo.

A nota pública do grupo contrário à privatização ressalta que o prazo anterior para a qualificação e restauração dos armazéns era de 390 dias após a fase preliminar de ajustes, que era de 180. “Este prazo agora foi multiplicado por três: são 1170 dias após a fase preliminar, o que resulta num prazo de quase quatro anos entre o Termo de Entrega e a finalização das obras”, diz o documento.

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Enquanto o primeiro edital previa 90 dias por anos de uso por parte do estado para feiras e eventos públicos, agora estão previstos apenas 30 dias. Como exemplo da insuficiência de tempo para uso público, lembra que a Feira do Livro de Porto Alegre, que ocorre anualmente, já ocupa mais do que todo o prazo. Ainda que a Bienal do Mercosul, que ocorre a cada dois anos, tem duração de aproximadamente 60 dias. “Que relação se estabelece entre o patrimônio da cidade e a cultura quando eles são impedidos de dialogar?”, questionam.

O grupo destaca que suas propostas não foram acatadas com relação a equipamentos para os Armazéns A e B e Pórtico. Estes foram mantidos sob responsabilidade do estado e com destinação cultural e serão reformados pelo vencedor da licitação. A nota diz que foi sugerido que o empreendedor também dotasse os espaços com equipamentos. Com a negativa, entendem que o uso cultural “dependerá do aporte de recursos públicos”.

Para o grupo, preocupam as vantagens concedidas através do potencial construtivo. “Trata-se da possibilidade do investidor usar para negociação índices construtivos, caso não utilize os máximos permitidos para a área”, explica. Como o Plano Diretor do Centro de Porto Alegre não estabelece limites de altura nem de ocupação na região, chamam a atenção para possibilidade de edifícios de até 200m.

São apontadas também inconsistências jurídicas como a ausência de garantia à preservação dos armazéns, que são tombados. Conforme portaria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o entorno de áreas tombadas não ter "contrução que lhe impeça ou raduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes".

O edital

Conforme explica o governo do estado, o edital prevê investimentos de R$ 353,3 milhões para a ampla revitalização e qualificação do local. O vencedor da licitação terá o compromisso de, nos cinco primeiros anos de concessão, reestruturar o patrimônio histórico (armazéns tombados e pórtico central) e revitalizar as docas. Ao todo, são 12 armazéns e três docas, estas com possibilidade de edificações para uso residencial e corporativo.

O objetivo da entrega do espaço histórico para a iniciativa privada, conforme o titular da Secretaria de Parcerias e Concessões (Separ), Pedro Capeluppi, “é entregar de volta o cais para o uso da população. Fazer que este espaço tenha vida, gere renda, emprego e desenvolvimento”.

O uso do recurso do potencial construtivo também foi destacado como incentivo à iniciativa privada pelo secretário. A medida permite que o investidor, com aprovação do estado, possa fazer intervenções. Para Capeluppi, “o momento de maior estabilidade econômica e política no país” pdem contribuir para que hajam interessados.

Confira a nota completa:

NOTA PÚBLICA A RESPEITO DO NOVO EDITAL DE PRIVATIZAÇÃO DO CAIS DE PORTO ALEGRE

O Coletivo “Cais Cultural Já” e o Projeto de Extensão “Ocupação Cais Mauá Cultural” (UFRGS) vêm a público fazer as seguintes considerações sobre o novo Edital 020/2023 para concessão do Cais Mauá, publicado em 18/09/2023, em comparação com o Edital anterior (06/2022) cuja concorrência havia restado deserta.

Prazo prolongado para a contrapartida O novo edital concede ao futuro concessionário mais prazo para realização das ações de qualificação e restauração dos Armazéns e demais áreas da concessão. No contrato anterior, havia um prazo de 390 dias para essa ação, após a fase preliminar de ajustes, de 180 dias. Este prazo agora foi multiplicado por três: são 1170 dias após a fase preliminar, o que resulta num prazo de quase quatro anos entre o Termo de Entrega e a finalização das obras. Como o Termo de Entrega depende de outras providências formais da concessionária para se habilitar, é possível estimar um prazo de quatro a cinco anos entre o resultado do leilão e o usufruto completo do espaço pela população. Ainda que a entrega dos imóveis das docas, que é a contrapartida do Estado, esteja atrelada aos prazos de conclusão dessas obras, como suposta garantia, aumenta o risco de intercorrências e atrasos para a completa “revitalização” (termo com o qual não temos acordo) do Cais.

Menos tempo para uso público de armazéns de eventos Enquanto o prazo para qualificação e restauração dos Armazéns aumentou do edital anterior para o edital atual, o tempo destinado anualmente para uso público dos Armazéns para feiras e eventos por parte do Estado diminuiu consideravelmente. No edital anterior estavam previstos 90 dias por ano destinados ao uso público por parte do Estado, já no atual estão previstos apenas 30 dias ao ano. É importante ressaltar que a cidade de Porto Alegre tem um forte papel cultural no estado e no país, e, por exemplo, a Feira do Livro de Porto Alegre, evento anual que mobiliza grandes e diversos grupos e setores educacionais e culturais da cidade e do estado, já ocupa mais do que todo esse prazo. Eventos bianuais como a Bienal do Mercosul, tem duração de aproximadamente  60 dias. Que relação se estabelece entre o patrimônio da cidade e a cultura quando eles são impedidos de dialogar?

Vantagens ao investidor através do potencial construtivo Tem-se outra novidade preocupante no novo Edital de concessão em relação às possibilidades construtivas oferecidas ao hipotético concessionário, pois permitirá o uso para negociação do potencial construtivo da área. Trata-se da possibilidade do investidor usar para negociação índices construtivos, caso não utilize os máximos permitidos para a área. Como a área do Cais estará hipoteticamente submetida ao Plano Diretor do Centro de Porto Alegre, aprovado em novembro de 2021, aliás, durante a pandemia de COVID, e esse não estabelece nem limites de altura, nem de ocupação para novos empreendimentos no Centro Histórico, o Edital abre imensas possibilidades para negociação de índices, o que garantiria novas possibilidades de ganhos ao investidor. Importante notar que a região da Rodoviária poderá, conforme esse novo Plano do Centro que fragmenta a cidade, ter edifícios de até 200m, ou cerca de 60 andares. E a área das docas, oferecidas para a produção imobiliária, está próxima a Rodoviária. As vantagens ao capital só aumentam, talvez para tentar compensar as inseguranças jurídicas latentes.

Equipamentos para os Armazéns A e B e Pórtico Os Armazéns e o Pórtico foram mantidos sob a responsabilidade pública do Estado do RS e com destinação cultural. A reforma deles está

incluída nos investimentos privados no conjunto dos Armazéns a serem realizados pelo vencedor da licitação. Entretanto, o Edital não acatou a proposta do Coletivo Cais Cultural Já e Projeto de Extensão UFRGS de previsão de recursos para dotá-los dos equipamentos necessários às atividades culturais, como contrapartida do empreendedor privado na PPP. Dessa forma, o uso cultural dos Armazéns A e B e Pórtico dependerá do aporte de recursos públicos.

Preservação no entorno ao patrimônio As garantias à preservação dos armazéns, regulamentadas por uma portaria do IPHAN de 2016, afirmam que no entorno das áreas tombadas não poderão “fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes”. Em suma, a legislação federal garante a preservação do  entorno aos edifícios tombados pelo IPHAN, enquanto o Edital não. Este regramento do IPHAN sobre as intervenções nos bens tombados procura assegurar importâncias culturais presentes na materialidade dos armazéns do Cais do Porto. Os necessários trabalhos de ressignificação desses espaços para um acolhimento de usos culturais contemporâneos não necessitam abrir mão de seu caráter social diverso e popular, como já foi demonstrado durante os debates do primeiro edital e as atividades culturais realizadas durante os anos de 1990 e 2000 no Cais.

Defesa do patrimônio público e uso cultural Entendemos que o novo Edital concede mais vantagens ao hipotético futuro investidor e mantém um conjunto de garantias pelo Estado, tornando o investimento isento de riscos. Todavia, salientamos que o Edital mantém inconsistências jurídicas.

A sociedade porto alegrense e gaúcha, declaramos que seguiremos atentos e abertos ao diálogo para resgatarmos e potencializamos o uso público cultural do Cais do Porto de Porto Alegre.


Edição: Marcelo Ferreira