Fiquei deslumbrada com o último livro que li, “O parque das irmãs magníficas”, de Camila Sosa Villad
Faço parte de uma geração de psicanalistas, a dos anos 1980, que não prescindia da literatura em sua formação. Aliás, quero enfatizar aqui que, apesar de ter passado por uma faculdade de Psicologia, apenas passei por ela. Foi minha formação em Letras que me levou para a Psicanálise, clínica que pratico há 35 anos. E como já escrevi em outras colunas, minha relação com a língua e a cultura francesa é afetivamente intensa, de modo que me tornei uma ávida leitora de Marguerite Duras, e uma psicanalista lacaniana. Posso afirmar que foram estes dois que me levaram a desejar escutar, e a desejar escrever.
Até hoje, a cada grande tratado de clínica psicanalítica que leio, corresponde a leitura que faço de pelo menos 7 ou 8 obras literárias que me fisgam e me ajudam a elaborar minha experiência com os pacientes sobre o divã. Gosto dessa (des)proporção, me dá segurança para intervir, quando a situação de trabalho me exige. É uma espécie de reservatório de recursos éticos, a literatura, talvez porque ela imita a vida e apresenta com radicalidade os atos humanos.
E como já falei de Marguerite Duras, permito-me dizer-lhes que foi a escritora de sua geração que virou a cabeça de muitos psicanalistas, entre eles Jacques Lacan, que foi seu contemporâneo. A “Homenagem” que ele escreveu para Duras em uma importante revista literária do início dos anos 60, pela publicação de “O deslumbramento de Lol V. Stein” dá bem conta da importante influência da escritora sobre o psicanalista. O contrário não se aplicou, ela não deu a menor importância ao que Lacan escreveu, apesar dos efeitos do artigo dele sobre sua carreira de escritora. E ele reconhece, em seu artigo, que ela sabe, sem ele, o que ele ensina, ou seja, ela o antecipa.
Todo este introito para lhes dizer que fiquei deslumbrada com o último livro que li, “O parque das irmãs magníficas”, de Camila Sosa Villada. Fico feliz em constatar que vários colegas publicaram recentemente artigos sobre esta obra arrebatadora, a qual Juan Form, em seu prefácio, compara com muita justeza, aos escritos de Marguerite Duras. Embora não esteja explicitado no prefácio, entendo que a comparação passa pela forma magistral como Camila, assim como Duras, revela a relação de cada ser humano com sua sexualidade e com sua existência com seus outros, que nunca deixa de ser tormentosa. A radicalidade da relação da narradora e das personagens com o que chamamos em psicanálise de “romance familiar”, que nada mais é do que a história da relação de cada um de nós com nossos primeiros outros, que organiza nosso desejo, é lindamente e dolorosamente descrita na trama, e nos remete à nossa própria história, a uma certa dimensão trágica do nosso “romance familiar”.
E justamente, a dimensão trágica da nossa existência nessa estranha ultramodernidade em que vivemos é fortemente presente na narrativa, que trata da história de um grupo de travestis da lendária “zona verde” do Parque Sarmiento, em Córdoba, Argentina. Entretanto, em momento algum sentimos falta de poesia na leitura. Ao contrário, a densidade poética da obra é enorme, um verdadeiro tratado sobre o amor e sobre o que eu costumo chamar de “comunidade feminina”.
A sororidade e a dororidade que consolida o vínculo entre este grupo de mulheres é colocada em relevo para nos confrontar com a alegria e com o desespero de uma maternidade que o social condena e apedreja com a mesma crueldade que conhecemos dos escritos bíblicos que falam de Madalena. Elas tentam enfrentar juntas, mas acabam se dispersando, por medo e por horror à própria destruição. Gradualmente, a comunidade que formaram se dissolve pela violência do social, do Estado, e mesmo pelo efeito dessas duas últimas sobre muitas delas.
O parque, onde elas construíram uma frátria, uma nova possibilidade de família, se transforma em uma espécie de deserto mórbido. O excesso de luz, que caracteriza nosso mundo contemporâneo, aparece na exacerbada preocupação do poder público em iluminar ao máximo o local, e com isso enxotar as travestis que eram, até então, figuras da penumbra. O casarão Rosa da tia Encarna, onde todas um dia conviveram, também sofre a extrema pressão da cidade sobre o controle dos corpos. A avalanche de ataques verbais, das pichações e pedras que a vizinhança envia, não poupa nenhuma delas. Isolamento e solidão, é o resultado deste terrível processo.
Contra os efeitos de toda essa fúria destruidora, a narradora só tem uma arma: a escrita. É através dela que tudo pode ser revisitado, que ela consegue reencontrar e dar voz às suas magníficas irmãs. É sua resistência à dor, à violência e à morte, seu jeito de fazer o luto daquelas que a acolheram e a escutaram em sua difícil e sofrida caminhada de menino que virou mulher.
Verdadeiro tratado sobre a feminilidade, esta obra, além de nos presentear com nossa imagem no espelho, é, para os psicanalistas, uma magistral lição sobre filiação, desejo e sexuação, principalmente para aqueles que desreconhecem as sexualidades do nosso tempo. Mais uma vez, a literatura antecipa a psicanálise. Ainda bem que é assim.
* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora Bestiario, 2022).
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko