Seu Adolfo, como era conhecido, faleceu na manhã do último sábado (16), no Espírito Santo, onde residia com sua esposa, Dona Angelina, filho, netos, netas e bisnetos.
Ele tinha 108 anos, foi uma vida longa doada por Ñhanderu a esse grande homem, de uma generosidade inigualável.
Era o ser humano da reciprocidade. Tudo ele partilhava e compartilhava. Carinhoso, zelava pela cultura Mbya. Mas, em relação a ela, era radical. As regras culturais deveriam ser adotadas e vividas. E com rigor nunca as relativiza e nem abria mão delas.
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Amava a terra, cultiva-la era sua predileção. Um homem das madrugadas. Acordava e rezava, mas antes de amanhecer o dia, depois do mate aquecido pelo fogo de chão, seguia com a enxada na mão para lidar e cuidar da roça. Sempre diversa, nela tinha de tudo – banana, milho, feijão, amendoins, abóboras, melancia, mandioca – de variadas qualidades – batata doce, cana de açúcar, fumo e as ervas para servir com o chimarrão.
Junto a ele a Dona Angelina, inseparável companheira, mulher linda, cuidadosa, gentil e de sorriso acolhedor. Eles dois estavam sempre acompanhados dos netos, que eram filhos, tratados e amados como tais.
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Ao redor os bichinhos, cachorros, gatos, galinhas, patos e não raras vezes bugios e quatis.
Lembro dele com saudades. Foi quem, junto com Seu Turibio Gomes, já falecido, e Dona Laurinda, atualmente com cem anos de idade, ocuparam e retomaram a luta pela demarcação da Terra Itapuã, Tokoa Pindó Mirim, em Viamão.
Depois seguiu seu constante caminhar, residindo em Varzinha, Torres, Canelinha – Santa Catarina – e retornou ao Espírito Santo.
Escrevi um artigo – no ano de 2011 – sobre as formas de organizações criadas pelos Mbya Guarani para enfrentarem os desafios das lutas pela terra e políticas públicas. Eu cito, logo no início do texto, uma fala de seu Adolfo. Na época ele vivia na terra de Varzinha, litoral do Rio Grande do Sul. Me dizia ele:
“Nós, os Guarani, conhecemos a natureza. Sabemos como cuidar dela. Eu, quando vou dormir, rezo pra Ñanderu. Quando acordo, tomo o chimarrão e converso com Ñhanderu e depois vou trabalhar na minha roça. Assim eu vivo e cuido de minha família. E quando vou para as reuniões quero que as nossas questões sejam resolvidas. Quero uma terra boa, uma tekoha onde a gente consegue viver bem, plantar, criar nossos bichinhos, andar no mato. Nas reuniões os Karaí têm que estar juntos com a rapaziada. Se não tiver Karaí na reunião elas não tem valor”.
Com esta manifestação Seu Adolfo expunha algumas das estratégias de articulação e mobilização desenvolvidas por lideranças e comunidades Guarani no estado do Rio Grande do Sul, especialmente aquelas localizadas na região metropolitana de Porto Alegre e no seu entorno. Na fala de seu Adolfo condensavam-se alguns princípios das lutas do Povo Guarani: o entrelaçamento entre a dimensão política e espiritual, a centralidade da terra, como espaço de produção da pessoa e de um modo de viver – O Teko; as lutas no cenário político (em forma de reuniões, mobilizações, marchas etc.) como estratégias que visam assegurar esse lugar de viver e de realizar plenamente o modo de ser Guarani e a participação dos mais velhos, os Karaí e as Kunhã Karai, acompanhando, aconselhando, dando a direção aos mais jovens.
Seu Adolfo foi para Ñhandeuru, deixa-nos boas lições de vida, deixa-nos boas memórias, deixa-nos ancestralidade e vida a ser compartilhada.
Que Ñhandeuru o abrace no acolhimento da plenitude de sua imortalidade, na Terra Sem Mal.
* Coordenador do Conselho Indigenista Missionário - CIMI - da Região Sul do Brasil
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira