Os tornados que afligem o estado enquadram-se bem na ultrapassagem dos “limites dos bens do planeta"
As consequências dos tornados que têm acontecido no Rio Grande do Sul desde junho, de tão alarmantes e assustadoras, estão sendo atribuídas, predominantemente, por conta de raciocínio sumário e reducionista, como um fenômeno climático “natural,” uma fatalidade que causa muita dor e sofrimento para milhares de pessoas, só restando agora amenizar os seus efeitos. Embora haja um consenso sobre a extrema gravidade disso, é de tanta aceitação esse juízo fácil, que causa espanto e até revolta não se identificarem em tempo tais fenômenos por políticas públicas de precaução que impeçam esses desastres.
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A transferência atribuída exclusivamente à natureza, porém, de estar causando fenômenos antiambientais, está esquecendo responsabilidades que não são dela e sim do nosso sistema socioeconômico e político capitalista de vida, o modo predatório e poluidor como explora a terra e o meio ambiente, envenena o solo, os rios, o mar, desmata sem piedade, transformando o que pode em mercadoria, objeto de lucro e a produção desses bens de vida para todos privatizada em commodities.
Com a agravante de esse tipo de violência e estupidez, disfarçar o seu poder de grilagem e de invasão de terras possuídas por indígenas e quilombolas por séculos - sob modelo diferente de respeito à terra, que não agride nem deteriora o meio ambiente - fazendo passar as suas milhares de vítimas como as verdadeiras responsáveis pelo “atraso”, por atrapalharem o “progresso” do agronegócio exportador, mesmo que esse contribua bem pouco com a alimentação do povo, sabidamente só garantida, mesmo, pela agricultura familiar.
Já circula até um convite à resignação de todo o povo a se conformar como esse, assim agora chamado, de novo “normal” climático (!?), avisando que o nosso futuro está fadado a sofrer crescentes ondas de fenômenos como os desses tornados de 2023. É como se, em vez de nos responsabilizarmos pelas medidas urgentes e necessárias de respeito à natureza, à terra, ao meio ambiente, e todas as condições de vida aí implicadas, nossa principal preocupação deva ser a de deixarmos sempre salva-vidas ao alcance das mãos para, quando as águas subirem, ficarmos torcendo pela estiagem e não nos afogarmos. Haja arca de Noé para esse novo dilúvio.
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Nem o fato de a propalada e unânime solidariedade com as vítimas dessas tragédias, embora evidentemente necessária, só chegar tarde, quando os seus maus efeitos já estão enterrando pessoas mortas, ainda conseguiu chamar a nossa atenção para a evidência da indispensável mudança desse sistema de vida. Se a solidariedade fosse regra e não episódica exceção, o nosso modelo de respeito à terra e ao seu meio ambiente seria outro, partiria da consciência ética de que não vivemos, mas sim convivemos, há próximas e próximos de nós, e estaríamos sempre suficientemente precavidos pela convicção de que habitamos numa “casa comum”, a Pachamama, mãe terra, como o povo indígena latino americano a reconhece, respeita e cuida.
Se tornados subsistissem depois disso, ainda assim perderiam muito da sua força e do seu poder de destruição, pois então não sofreríamos os danos da nossa irresponsabilidade pelos cuidados que devemos à nossa mãe. Ainda que sejam muitas, bem fundamentadas e conhecidas as advertências de estudos científicos, de Declarações Internacionais da ONU, de ONGs e de movimentos populares de defesa do meio ambiente nos avisando, há muito tempo, como as ameaças à natureza estão crescendo sobre todo o planeta, o progressivo aquecimento das temperaturas e o derretimento das geleiras fazendo soar um alarme estrondoso, a respeito, não existe ainda um sinal seguro de que as responsabilidades humanas necessárias para elimina-las, tenham passado de promessas, por mais solenes que sejam.
Duas dessas advertências vale serem recordadas, pelo menos para sublinhar-se a extensão do quanto significam, comparada com o raro efeito que têm alcançado. A primeira é a celebrada Carta da Terra, documento da Eco 92, reunida no Rio de Janeiro, ratificada e assumida pela Unesco em 2000 no Palácio da Paz em Haia, com a adesão de mais de 4.500 organizações do mundo, incluindo o Brasil. Vale lembrar o que ela afirma em seu artigo 7:
“Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário: a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados nos sistemas de produção e consumo e garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas ecológicos. b. Atuar com moderação e eficiência no uso de energia e contar cada vez mais com fontes energéticas renováveis, como a energia solar e do vento. c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a transferência equitativa de tecnologias ambientais seguras. d. Incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço de venda e habilitar os consumidores a identificar produtos que satisfaçam às mais altas normas sociais e ambientais. e. Garantir acesso universal à assistência de saúde que fomente a saúde reprodutiva e a reprodução responsável f. Adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e subsistência material num mundo finito.”
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Na cabeça do artigo 12 figurou: Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, dando especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.
Em outro tópico a Carta parece mostrar porque redigiu essas disposições: “Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos equitativamente e o fosso entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e é causa de grande sofrimento. O crescimento sem precedentes da população humana tem sobrecarregado os sistemas ecológico e social. As bases da segurança global estão ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis.”
A segunda advertência é da Laudato Si, uma Enciclica de maio de 2015, que Leonardo Boff, um teólogo conhecido defensor da natureza e seu meio ambiente, no mundo inteiro, representante do Brasil na referida Carta da terra, sintetizou assim: “As previsões catastróficas já não se podem olhar com desprezo e ironia… nosso estilo de vida insustentável só pode desembocar em catástrofes.” A exigência é de “uma conversão ecológica global”, que implica em “novos estilos de vida” (repete 35 vezes) e “converter o modelo de desenvolvimento global”. Chegamos a esta emergência crítica por causa de nosso exacerbado antropocentrismo, pelo qual o ser humano “se constitui um dominador absoluto” sobre a natureza, desgarrado dela, esquecendo que “tudo está interligado e por isso ele não pode se declarar autônomo da realidade”. Utilizou a tecnociência como instrumento para forjar “um crescimento infinito… o que supõe a mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta que leva a espremê-lo até ao limite para além dele”. (in Brasil de Fato, edição de 26 de maio de 2020).
Não há mais como disfarçar. Os tornados que atualmente afligem o povo do Rio Grande do Sul provocando tantas mortes e prejuízos patrimoniais e morais enquadram-se bem na ultrapassagem dos “limites dos bens do planeta”. Se tivéssemos respeitado esses dois avisos talvez hoje não estaríamos agora chorando a desgraça que se abateu sobre nós. Se conhecemos suas causas e nos mobilizamos contra elas, desde agora socorrendo as vítimas dos seus efeitos, renovamos a esperança de que, eliminadas aquelas, pela superação do nosso modelo de vida presente, o futuro nos garanta que esses também sejam extintos.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko